Menu de Outono, no Ipsylon


Raymond Sokolov crítico gastronómico do New York Times em 2006, escreveu na sua autobiografia (1), assim sobre os seus primeiros contactos com a cozinha europeia, no princípio dos anos sessenta do século passado:

"Now, I thought, I was in touch with the highest and best a person could experience, a variation on a great dish by the greatest of chefs -, classic. And like those other classic monuments of European culture, from Aeschylus to the mansarded roofs of the Louvre, this culinary monument, and all the hundreds of classical dishes I'd met with, were part of a tradition that had gelled for the ages.

And you could eat it. Again an again.

With cuisine, as with classical literature, you had a fixed text, or at least an archetypal recipe to which all those dishes I was eating arguably pointed back, just as the surviving manucripts of Catullus and Plato, altered by scribal recopying over the centuries, had a common ancestor. From this premise arose the concept of culinary authenticity, of getting things right in the kitchen (...)

But ( ainda que, investigando os livros publicados antes de 1850, não fosse possível datar essa cozinha para lá dessa data) in the summer of 1960, it was bliss to believe that the cuisines I had been informally studying on a shoestring in restaurants all over western Europe were as immutable as the conjugation of Latin verbs." (2)

Para um frequentador da época, o mundo restaurativo era pois uma certeza, dada pela imutabilidade das fontes. A cozinha era tanto mais sólida quanto mais imitadora, tanto mais de referência quanto mais fiel a um cânone, mais especificamente ao fixado no princípio do século XX por Escoffier.



Ora, o que caracteriza o presente da restauração - mesmo neste Portugal gastronómico que só há pouco e por graça da Internet começou a tentar acertar o passo com o mundo -, é exactamente o contrário do que falava Sokolov: a incerteza do caminho, estilhaçado em numerosas alternativas (conservadoras, radicais, clássicas, vanguardistas, vegetarianas, "moleculares", regionais, autorais, de fusão, locais) que a muitos entusiasmam e a quase todos confundem. Continuando a ser primordialmente - o que tende a parecer esquecido - um acto de alimentação (melhor dizendo, o fornecimento de alimento a alguém) que, se bem trabalhado, se revela um acto de prazer, parece que à maioria dos seu frequentadores - certamente à maioria dos que sobre ele, mais ou menos publicamente, exibem opinião - a sua importância se mede pela qualidade de outros sentimentos, nomeadamente o da surpresa e o da cumplicidade.

Assim, um restaurante "bom", não é tanto o que concilia a fome e desperta o prazer, antes aquele onde se está bem, se fica bem, se convive com gente bem. "Bom", é pois, "bem".

Se este é, por oposição à apreciação clássica, um conceito volúvel, em constante mutação, ficará assim explicado o turbilhão de propostas que, em contínuo vão aparecendo, procurando ser a nova resposta à definição de "bem", de modo a não só viabilizar economicamente o novo espaço, mas a recolher os proveitosos resultados pessoais que da brutal exposição mediática resultariam.

É um maremoto, cada uma destas marés, que tende a obliterar a maioria das construções deixadas pela vaga anterior.

Como a diversidade humana ainda permite resistências, como, apesar das respostas em rebanho ou matilha, ainda, como Alegre escrevia e Adriano cantava, há sempre alguém que resista (tanto à ditadura do gosto como à mudança), continua a ser possível alimentar - financeiramente - restaurantes que não são deste mundo, fundados numa tradição de rigor, numa noção de "escola" que ensina - exige - que experimentalismo e criatividade deverão estar, obrigatoriamente, assentes sobre um rigoroso conhecimento técnico e das matérias primas, só possível com anos de aprendizagem e práctica atenta.


O restaurante Ipsylon, do hotel Oitavos, é um destes casos. O seu Chef, Cyril Devilliers - para que não existam dúvidas, meu Amigo, de uma amizade forjada na comunhão de muitos prazeres à mesa, da sua autoria, ocasionalmente da minha, algumas vezes da de terceiros -, pode reclamar-se dessa escola, com muitos anos de aprendizagem nas cozinhas de alguns dos grandes Chefs franceses primeiro e como o Chef residente de Joachim Koerper no Eleven depois, com as suas propostas simultaneamente clássicas e de autor, galo-lusitanas, utilizando maioritariamente técnicas de preparação dos dois países.



Talvez por ficar num alto, talvez por estar integrado num hotel, talvez por não andar nas escritas do mundo, continua um quase segredo, ainda que partilhado entusiasticamente pelos clientes nele hospedados e por alguns dos que têm a fortuna de o visitar.

O entusiasmo costuma também apoderar-se de mim, quando, de moto próprio ou por convite, em ocasiões especiais, à sua mesa me sento.



Razão para este texto, foi a prova de alguns dos pratos da carta de Outono. Mesa de amigos, que compartilham o gosto por esta cozinha, pelas surpresas que a mesma ainda consegue trabalhar sem comprometer o rumo inicialmente estabelecido, cozinha de criação, de cunho próprio.

Do provado, ficam as fotos e os comentários.

Entradas

Folar transmontano, manteiga de ovelha


O cruzamento dos sabores tradicionais com um doseamento individual e uma apresentação menos "rústica".


Tarte crocante de tomate e língua escarlate, vinagreta de gengibre


Receita de um outro tempo de conservação, receita clássica francesa, a cor final escarlate não pela acção do salitre, mas, seguindo Escoffier, após pincelagem com o corante alimentar carmim, Destaque para o impacto visual e a combinação de gostos e texturas quanto o primeiro impacto visual. É um tour de force: o preparo da língua, a tarte, a qualidade da anchova. Para além de bem, nada a dizer.




Vieiras, nozes e castanhas, cebolinho e molho de cidra


Vieira ótima, o crocante uma junção esperada mas bem vinda, o molho fica muito bem visualmente mas é exagerado face à quantidade de vieira.




Garoupa da pedra, creme de potimaron e açafrão com  mexilhões




Rocaz, gnocchis de butternut, esparregado de acelgas, guisado das ramas á la creme com berbigões



Dos dois pratos de peixe, retenho a elevada qualidade dos exemplares, o sabor das combinações, o estado de paz e de maravilha que a prova de cada um me causou.


Guisado de rabo de boi, massa fresca de milho, cogumelos


Gostei muito da originalidade da apresentação e do contraste/provocação que se segue, face a um sabor - grande sabor! - que é extremamente clássico, reconfortante, evocador da cozinha caseira. O uso das pipocas, como textura contrastante é um achado, a massa paira sobre o molho, à espera do (bom) casamento.




Lebre cozinhada lentamente, puré de batata, emulsão de hibiscus com citronela e malagueta


A apresentação com a campânula tem como objectivo manter os perfumes a malagueta e hibiscos usados, de modo a serem a primeira impressão causada no cliente. Visualmente, a espuma parece-me demasiado leve para um prato que é forte, robusto. Quase etérea, tem a mesma forma do puré mas a relação é tão desequilibrada que a faz perder o interesse que poderia ter. Quanto à lebre, de lamber os dedos.



Magret de pato fumado à portuguesa, tourte de boletus com figos e foie gras


O meu prato da noite. Clássico, decadente, pleno de gula, só a fotografia me faz água na boca.

Queijos


Só pela selecção de queijos franceses que o restaurante possui, vale a pena a deslocação.

Sobremesas

Ficam as notas tiradas na altura.


A massa da bola com líquido não sei se será a melhor opção. Em Portugal, uma bola de Berlim é sempre associada (quase sempre) à praia - dentadas, boca lambuzada e dedos peganhetos de açúcar e areia. Líquido? Garfo e faca? Hum...


Bonito, saboroso, texturas diferentes, temperaturas diferentes.


Sim, sim, sim, Chocolate, texturas, sabores, crocantes...


Muito bonito, gostei do jogo das geometrias e dos sabores.


Uma refeição como poucas.

(1) - "Steal the Menu; A Memoir of Forty Years in Food", Nova Iorque, 2013

(2) -
"Agora, pensei, estava em contacto com o mais elevado e melhor que uma pessoa pode experimentar, uma variação de um grande prato pelo maior dos chefs - clássico. E como os outros clássicos monumentos da cultura europeia, de Ésquilo às coberturas amansardadas do Louvre, este monumento culinário, e todas as centenas de pratos clássicos que eu conheci, faziam parte de uma tradição que tinha gelificado para todo o sempre.

E podia ser comido. De novo e de novo.

Com a cozinha, como com a literatura clássica, tem-se um texto fixo, ou pelo menos uma receita arquétipo para a qual todos os pratos que comia indiscutivelmente apontavam, do mesmo modo que os manucriptos sobreviventes de Catulo e Platão, alterados pelo recopiar copista ao longo dos séculos, tiveram um ancestral comum. A partir desta premissa surgiu o conceito de autenticidade culinária, de fazer as coisas bem na cozinha (...)

Mas (ainda que, investigando os livros publicados antes de 1850, não fosse possível datar essa cozinha para lá dessa data) no Verão de 1960, era um conforto acreditar que as cozinhas que eu tinha informalmente estudado, com um baixo orçamento, em restaurantes de toda a Europa Ocidental eram tão imutáveis como a conjugação de verbos latinos."

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