CNC: Quatro Ensinamentos e um Funeral

A XIII edição do Congresso Nacional dos Cozinheiros decorreu, no Centro de Congressos de Lisboa, entre 11 e 13 do ainda solar mês de Novembro.


A animação de sempre - desta vez exacerbada pela vizinhança do Encontro com Vinhos / Encontro com Sabores - e um conjunto de intervenções globalmente positivas, globalmente interessantes. De tudo o partilhado (e assisti a quase tudo) gostaria de destacar os seguintes pontos, que me pareceram os mais relevantes, numa tentativa de sintetizar o congresso e deixar, para minha memória futura, o registo:

OS ENSINAMENTOS

1. A descoberta do outro

Num congresso submetido ao tema "Os Produtos e Produtores", mais do que este ou aquele tema, foi interessante perceber na maioria dos palestrantes um caminho de descoberta que acabou por traduzir muito de si mesmo. Estas viagens interiores, na terra íntima de cada um, o modo de questionar o mundo, as perguntas feitas, os sujeitos procurados foram muito mais transparentes do que qualquer comunicado de imprensa.

Jogo de espelhos, em que o outro que se abordou revelou o outro próprio. Eu, o cozinheiro, entrevisto o outro produtor/produto, descobrindo-me aos espectadores igualmente como um outro.

Em cima: João Rodrigues (dir.) e Joaquim Arnaud; em baixo, Hugo Brito.
E assim, o convite de João Rodrigues à participação de Joaquim Arnaud enquanto produtor de vinhos direccionados para pratos específicos e o apelo para a participação de todos na gigantesca base de dados dos produtos, produtores e transformadores nacionais (e que, espero, venha a resultar numa profícua e aberta plataforma de aprendizagem e discussão da gastronomia portuguesa passada e presente) descobriu a curiosidade e abertura do cozinheiro; o microcosmos do polvo de Santa Luzia entreaberto por Vítor Sobral, explicou-nos as suas preocupações com a cozinha regional e com a preservação dos ecossistemas sociais; o porco trazido por José Júlio Vintém ultrapassou a paisagem que interiorizámos das febras e da carne "à alentejana", falando-nos das gentes e dos petiscos simples que mordiscam quando se reúnem quotidianamente, de sabores obliterados pela urbana febre da saúde, explicou-nos as origens e o presente do chefe portalegrense e a ligação aos seus; igualmente os pratos que Hugo Brito redesenhou a partir de momentos marcantes vividos em refeições criadas por colegas apresentam-nos um cozinheiro que mais do que esse desejo de conhecer o outro através da repetição pessoalizada dos seus gestos procura, de um modo enviesado e simbólico, a sua antropofagia a partir, não do seu cérebro ou coração mas da emanação dos mesmos, a sua culinária.

José Júlio Vintém e o "outro" porco (ou o porco dos "outros")
Sobre o outro foi igualmente o relato dos "estrangeirados": de Ana Leão e as memórias da sua viagem errante pelo continente australiano (e gostaria de a ter sabido igualmente a demandar a profundeza do país, a ir às suas origens e a discutir hábitos e modos dos habitantes primeiros, partilhando e confabulando com as comunidades aborígenes) a Cláudio Cardoso e o relato dos seus contactos com as comunidades da selva amazónica peruana (ainda que tenha deixado uma impressão de missionarismo que me criou algum desconforto),

Houve lugar igualmente para a nossa descoberta do outro, directamente, sem intermediários: cozinheiros estrangeiros, a falar-nos de si, das tradições que continuam das respostas que procuram as quais, por sua vez, nos induzem questões paralelas aos seus percursos (o papel da História e das tradições na gastronomia contemporânea, por exemplo) como Paco Morales e a cozinha imposta no seu Noor - uma radical exploração do passado al-andalus da região e que me deixou curioso para descobrir mais.



2. A memória do presente

Sabemos que esta é uma profissão que, para o bem e para o mal, assenta em grande parte na capacidade dos seus protagonistas para lidar com o excesso de testosterona que a organização clássica das brigadas de cozinha implica: se acrescentarmos a sua actual mediatização e consequente tietagem, perceberemos que uma das características mais evidentes na maioria dos seus actores provavelmente será a de um ego bem saliente. Apesar da maioria o usar por ausência de alternativas, há no entanto quem o envergue como uma capa, com isso sombreando traços de carácter bem mais interessantes. Confesso que, por feitio ou educação, o discurso do eu sempre me foi custoso de suportar; já a modéstia do apoio a terceiros, do seu reconhecimento sem contrapartidas, é algo com o qual me identifico e prezo salientar, sem receio de espantos ou sussurros mal-intencionados.

Vivemos de memórias. Sempre vivemos, mas parece que foi preciso o discurso sobre as mesmas entrar no domínio das modas gastronómicas para que, subitamente, todos -os indivíduos e o país - se descobrissem herdeiros da cozinha familiar ancestral (de preferência com pedigree rural). A essa
conjugação entre uma memória nem sempre verdadeira e uma realidade nem sempre tão pura, tão boa, tão perfeita há muito chama Nuno Diniz uma memória construída - uma vontade de crer e se integrar numa idade dourada, sanitarizada, perfeita, (a lembrar as intervenções de restauro levadas a cabo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais nas décadas de 30 e 40 do século passado), .

Não foi dessas memórias de Hollywood, dramaticamente perfeitas e adaptadas à emoção contemporânea e consequente procura que viveu a sua apresentação: antes da conjugação entre a memória real - o passado que ainda é presente, revivido nos gestos das gentes do seu adoptado concelho de Montalegre - e a memória futura (a que é construída no nosso quotidiano). E fê-lo, não de cátedra, mas através do convite a actores desses dois momentos: ao casal Moura que continua a produzir a alheira de fumeiro transmontana e a Diogo Veladas, futuro cozinheiro, seu presente aluno.

O resultado valeu por essa súmula efémera (o passado dos gestos e o futuro da profissão, o encontro de quem perpetua gestos com quem descobre os gestos) traduzida numa proposta que integra gestos e gostos tradicionais com as ideias válidas de quem agora chega e questiona muito, se questiona muito.

Acção em vez de discurso, vale sempre a pena parar e ouvir.

Grupo, a partir da esquerda: David Teixeira (CM Montalegre), Diogo Veladas e o casal Moura a ladear Nuno Diniz.
3. A descoberta dos outros

Nasci num Portugal com tão baixa auto-estima, tão amarfanhado pelo "orgulhosamente sós", tão convencido da incompreensão alheia que qualquer fugaz atenção alheia merecia mesa de feriado, foguetório e tapete até ao aeroporto. Confesso-me provinciano nas reacções quando descubro um apaixonado pelo país, tão interessado nos seus pormenores quanto eu, tão deliciado com os seus sabores como eu, tão disposto a levar a boa nova ao mundo e a trazer a Saudade e a Paixão à lapela... como eu. Como todos nós, deixem-se de coisas.

À sua maneira, estes três cozinheiros são bandeiras da nossa universalidade, de sementes que transportámos no passado e continuamos no presente:

Anthony Gonçalves, chef do restaurante Kanopi,  e a lusitanidade da qual, orgulhoso, se reclama e faz questão em afirmar nos Estados Unidos, onde vive.


Catalina Salcedo, cozinheira e professora universitária colombiana que escolheu Lisboa para prosseguir os seus estudos no Mestrado de Ciências Gastronómicas da FCT/UNL (que já completou), mantendo um pé em cada continente, com isso trocando experiências, técnicas e produtos dos dois mundos.


Michel van der Kroft, o chef holandês, que no bi-estrelado ’t Nonnetje, faz questão de construir uma carta plena de produtos de referência portugueses, dos carabineiros ao queijo Serra da Estrela, passando pelos vinhos de algumas das regiões mais emblemáticas (pratos lindos, vejam o site).



4. A visita da Cornélia

Éramos pequeninos e, de repente, a revolução explodiu-nos os complexos e o espaço e o país cresceu, alastrou, expandiu-se para todos os lados. Nos serões que ainda eram a preto-e-branco e bicanal, a cidade descobriu, talvez pela primeira vez, não só a efemeridade da fama mas a possibilidade aberta a cada um (não verdadeiramente a cada um, mas assim parecia) de a alcançar. De súbito, aparentes anónimos são visitas de casa, tu-cá-tu-lámos com o Fernando, o Gonçalo, o Pitum, o José, o Rui, sentimo-nos parte do movimento e não da aceitação, nos primórdios da televisão-espectáculo, da televisão-sem-gravata, sem-doutoramento, sem-solenidade. Em retrospectiva é tentador descodificar as relações e as oposições - ideológicas, sociais, profissionais, culturais - existentes entre concorrentes e jurados, perceber a enorme complexidade das diferentes camadas em que assentava o programa, as teias feitas e desfeitas, o (à altura) muito que estava (ou se julgava estar) indirectamente em jogo, ou de que o jogo era reflexo.

No rescaldo do congresso, na aferição dos gostos, nesta tentativa de elencar e, seguindo o meu critério, resumir os resultados, a visão dessa distante Cornélia, simpática vaquinha de voz irritante que, subjacente, tanto consigo trazia, surgiu-me de imediato como uma boa imagem para uma parte das intervenções e do agrado com que vi a vontade e o trabalho de alguns ir mais longe do que o papel para si esperado:



Alexandre Silva que, esquecido o interregno regionalista, continua um caminho seguro de interrogação do desconhecido (ou do menos conhecido), assegurando que o seu projecto é um trabalho em progresso e não uma expressão congelada de gestos e técnicas importadas.


Tiago Santos que, goste-se ou não do estilo, se procura afirmar como um dos mais proficientes actores no mundo do cookbiz português, a dominar a arte e os truques da comunicação atrás de uma bancada.


Mário Rolando que eleva a paixão pelo pão e pela sua actividade a um grau de sacerdócio difícil de ignorar., não trocando, no entanto, a substância da mensagem pela sua forma.

O FUNERAL

I A morte do artista

Ainda que em planos diferentes, à gastronomia também se pode aplicar o conceito da "pequena morte", aquele momento sublime em que, fechando os olhos ao mundo exterior, sentimos com uma primeira garfada (ou golada) o prazer absoluto. Pequena morte, sim, paragem do mundo, paragem de tudo.

Essa "morte" - que é o objectivo intangível de cada cozinheiro, parece-me, de dádiva a cada cliente - esteve presente nas várias intervenções mas não é a ela que me refiro aqui.

Pensei numa muito menos glamorosa mas muito mais preocupante, especialmente num momento em que, curiosamente explode a procura pelos seus sujeitos: a morte da informação enquanto objecto credível, discutida numa conversa a três, entre o jornalista Gualtiero Spotti, o ex-jornalista e próximo restaurador Kevin Gould e o moderador, Paulo Amado.

Do luto do italiano pelo fim de uma época e o advento de uma incerteza ao entusiasmo do britânico ("A crítica acabou! São vocês os autores dos vossos gostos!") eis os pólos do caminho incerto da análise gastronómica escrita. Como membro dessa classe (a dos produtores de informação e análise), umas vezes atacada, outras vezes aclamada, gosto sempre de ouvir os diversos argumentos os quais, só muito raramente divergem do resultado económico pessoal gerado pela explosão da expressão nas sociedades contemporâneas (Sou um jornalista de carreira que trata temas gastronómicos? Os bloggers são uns vendidos e os participantes nas redes sociais uns ignorantes. Sou um participante activo nos media gastronómicos? Os jornalistas não são necessariamente especialistas nem vivem acima de todas as suspeitas.)

Como sempre, com posições extremadas, as razões perdem-se um pouco e eu diria que cada caso é um caso e as generalizações apenas servem a quem as profere.

Neste presente português, parece-me óbvio que a questão da independência se coloca a todos: os jornais já não têm verba para refeições (e não só em Portugal: Gould relatou que o mesmo se passa, por exemplo, no Guardian), os independentes têm orçamento limitado, agradecendo ambos convites para lugares e eventos cuja frequência se tornaria difícil de custear. Do mesmo modo, mais do que procurar um a verdade, cada um deverá procurar na escrita uma opinião, um sentimento, dos quais se aproximará ou afastará conforme o resultado das experiências anteriores, separando o que é pessoal do que não passa de copy+paste dos comunicados elaborados pelos assessores de comunicação. E desses está o mundo cheio, no papel ou no éter informático...

Da esquerda para a direita: Kevin Gould, Paulo Amado e Gualtiero Spotti

E foi mais um Congresso dos Cozinheiros. Para o ano haverá mais, aguarda-se, de preferência com a mesma prodigalidade de propostas, mais rigor no cumprimento dos horários e menos constrangimentos da vizinhança!

PS - Estavam à espera que falasse de outras mortes? Não vi mais nenhuma.

Comentários

Ana Leão disse…
Muito Obrigada :) Nao falamos mais acerca dos arborígenes porque ainda nao tivemos contacto suficiente para poder abordar o assunto de uma forma justa para com a sua cultura. No entanto, caso tenha prestado a devida atençao à apresentação, terá reparado que trouxemos alguns ingredientes nativos, jáusados há muito pelos arborígenes, para que todos pudessem observar/ provar no congresso.

Um bem haja :)
Pedro Cruz Gomes disse…
Olá, Ana, fico então à espera da parte II da viagem, com expectativa para conhecer os resultados da troca de experiências e modos de ver o mundo. Os ingredientes mostrados foram a montra, quero ver a loja toda (ou a loja possível dado o tempo para o contacto, forçosamente limitado)!
Obrigado pela partilha e boa Austrália.
Artur Hermenegildo disse…
Só como nota paralela, eu e a Luísa fomos ao pequeno almoço que a Ana Leão fez no Café Gerrett e gostámos muito.
Pedro Cruz Gomes disse…
Obrigado pela partilha, Artur.

No último ano..