Culinary Arts 2.12 - We're (almost) ready for the close-up, Mr. Diniz


Quem, do lado de cá, se maravilha com a aparência e os sabores, se ocupa em viver com as emoções desencadeadas ou, abstraído, convive com os convivas da mesa, passa ao lado da crescente expectativa do final, que se vive na cozinha. É o último semestre e breve está o primeiro dia do resto da vida de quem se se compenetra à volta da voz do Chefe Diniz. Professor Diniz. Mentor Diniz.




Com o cinema se provocou neste almoço. E de cinema me evoco eu, entre memórias de Lisboa, memórias minhas, memórias apropriadas. Um menu que se veste de fragmentos, todos cinéfilos, levou-me a reflectir sobre quanto o cinema nos marca tanto a memória visual quanto a interpretação do mundo. Substituiu os templos românicos e góticos que, com os seus frescos, altos e baixos relevos, vitrais, capitéis, ilustravam as prédicas dos padres, substituiu a arte pictórica e escultórica, substituiu as ilustrações dos livros. Se pensamos em Deus ou no diabo, imaginamo-lo como a primeira imagem que dele vimos no grande écran; se nos falam do Oeste dos Estados Unidos, ocorre-nos a imensa paisagem do Arizona, pontuada pelas eflorescências rochosas de Monument Valley e atravessada por caravanas, destacamentos de cavalaria ou ataques índios. Para sempre acreditaremos que Ricardo Coração-de-Leão reconquistou o seu trono e que João Sem-Terra não teve as virtudes reformistas que a História nos indica terem existido. Roswell não teria sido tão credível sem os filmes B de ficção científica dos anos 50 e sem o Dr. Strangelove, o medo da guerra atómica teria sido mais pesado de suportar. Todas as histórias de amor já as vivemos no grande écran, todos os dramas alheios são pálidos perante os melodramas de Douglas Sirk, a vida é de uma sisudez insuportável sem a loucura de Groucho, a irreverência de Chaplin ou a anarquia de Hulot.

A questão nunca será sobre a possibilidade de se construir uma refeição a partir de memórias cinéfilas, antes que memórias poderá evocar uma só palavra, que criação poderá essa mesma palavra provocar e o que resultará do confronto das duas - confirmação, decepção? Para além das emoções...

Psycho



São facadas... assim nos formatou Bernard Herrmann numa das suas obras-primas. Não foram facadas mas uma evocação dos célebres 51 planos que compõem a cena do chuveiro que eu senti no primeiro prato. Sobre a areia de quinoa - corta - uma concha de ostra com - corta- cenoura - corta - a ostra - corta - romã - corta - cebola - corta -  cebolinho - corta - tomate - corta - rábano - corta - um ar com a água da ostra - corta - ovas - corta - ouriço... perdi muitas e esqueci outras, retive o choque de sabores, o ácido, a textura da quinoa, as piadas sobre o ar, mais texturas e o desejo de que o tempo

su a v e   m   e   n      t     e,

fosse parando e eu pudesse tê-lo mais para mim, e viver o sabor em câmara lenta.

Escabeche de Ostras com Couve Rábano, Ceviche de Ouriços do Mar, Tomate, Ovas de Peixe Galo e Quinoa




Brando

Let me make you an offer... And I couldn't refuse.


A ligação mais directa de Brando à gastronomia ocorre no Último Tango em Paris mas acreditei que a sua evocação talvez fosse um pouco indigesta para este tipo de refeição, pelo que me pareceu natural ter-se recorrido à Itália que norteia toda a família Corleone, como inspiração para este prato.



A Sicília do Padrinho mas também a Roma que assiste ao discurso elegíaco que Marco António faz de Júlio César, um Brando magnífico num elenco luxuoso.

Tomate, claro. E azeite. E porco curado. E pasta. E queijo. O oposto das grandes cenas dos dois primeiros filmes, um prato limpo, sereno, como o exterior do Brando sibilante e nasalado, contido, a deixar o vulcão no interior. Ou de como se pode compor a branco um prato construído com grandes vermelhos.

Migas de Pão de Centeio de Montalegre com Tomate e Alcaparra frita, coberto com Parmesão e Toucinho fumado. Tortelli com Castanhas e Camarão, coberto com Presunto de Montalegre e Pecorino.


Hundred

The Hundred-Foot Journey é um recente filme que retoma um motivo antigo: o que procuramos está perto de nós, mas precisamos de percorrer um longo caminho até o descobrirmos. E usa-o, integrando-o numa história de espelhos, entre dois mundos gastronómicos só na aparência opostos. Exuberância de cores e tons contidos, música estridente e acordes clássicos, sabores exóticos e flavours ocidentais, tudo isto visando o mesmo - a satisfação dos comensais.



Fugi da provocação cinéfila e evoquei inicialmente um livro de Agustina Bessa Luís sobre Vieira da Silva, Longos dias têm cem anos.

Maria Helena, que se construiu artisticamente longe do país, em Paris, que não voltou aqui a residir por Salazar ter proibido a emissão de visto ao seu marido, o húngaro Arpad Szenes, no decorrer da 2ª Geurra Mundial e que, ainda em vida, veria o poder político emendar a afronta, com o reconhecimento do seu génio espelhado nas várias homenagens e encomendas feitas.



Ainda hoje sei muito pouco de tudo, o que me causa embaraço quando vejo a tremenda bagagem de conhecimentos que têm as pessoas. Se ouvirmos tudo o que se diz nos autocarros, nas praias, nas repartições, ao fim do dia podíamos escrever uma enciclopédia em vinte volumes e até ter êxito com ela. Não há nada de mais aceitável do que a pequena sabedoria, os amores confessáveis e as histórias de doenças.”, retiro do livro.

Sei muito pouco de tudo e ainda menos do que está longe. Apenas sei - e afloro, porque, desde sempre se estabeleceu um fosso entre o que me penso e o meu outro, o resto - o que sinto e este arroz fez-me planar num quase êxtase, de semicerrar os olhos e esperar que o prato fosse cornucópia, para ele nunca se extinguir.

"Uns pingos do sumo de lima mandam este arroz para o céu", foi o que ouvi ao meu lado e todos dissemos amém.

Fish Moli e Vagharela Chaval
Peixe Galo escalfado em leite de Coco
Carabineiro e Manga e arroz Basmati com Garam Masala e Pistachios


Blues



De bairro, o cinema Bélgica, depois Universal, depois Universitário, só conseguiu conquistar a cidade, após ter perdido o estatuto cinéfilo, como lugar de culto musical para a geração de 80. No Rock Rendez-Vous, concertaram todo o cão e todo o gato do panorama nacional, dos Heróis do Mar ao Rui Veloso, dos Mler If Dada (Zubi zeva novi!) aos Jafumega. Também a Go Graal Blues Band, som incrível de uma incrível banda que acabou à estalada e produziu, à distância, a voz mais soul deste rectângulo, Paulo Gonzo.

Não tenho lembrança de uma molhada na rua da Beneficência, como a do final do Blues Brothers, mas pareceu-me ouvir alguns protestos iniciais pelo double take de molhos - melhor, a duplicação de textura - quando o prato foi descrito (grits e béchamel?), logo silenciados pela santidade do casamento.

Casamento que serviu de fundo às peças fritas, saboreadas, por entre memorial banda sonora, da voz da Scarlet O'Hara aos blues de Tremé, prazeres sobrepostos a este prazer que foi muito, de morder e sentir.

Frango marinado em chá e frito em banha de frango e porco,
Grits com Monterey Jack, Batata doce frita e molho de Barriga

Antoinette

E se o Coppola pai orquestrou o prato de Brando, a Sofia filha, depois de ser, também ela, uma Corleone, numa tragédia de cannoli e água benta, orquestrou uma Antonieta pop, alimentada a doçuras Ladurée.



Tarte Tropézienne, Canelé, Mil Folhas e Choux
Tão decadentes como todas as Antonietas deste mundo, herdeiras de indigências morais e excesso de fortuna, tão cheias de sentido pecaminoso como o Louvre de espelhos, tão boas na arte de finalizar quanto os Jacobinos, estas mignardises foram um  happy the end, de violinos, lágrimas e suspiros, pôr-do-sol com os heróis a festejar na cozinha, fogo-de-artifício, vive la reine. Mais uma vez, até eu me esqueci de que não me tento por doces.

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