Quarentena #1 - Silêncio
Meu Amor,
Uma semana já contada, neste afastamento que - o dever, a culpa, o amor? - quero acreditar impuseram. Há duas semanas, frente a um mar quase só nosso, a tempestade fazia-se ainda longínqua, apesar de já bater à porta do país, apesar de ser inevitável, apesar de nos parecer, na nossa dimensão egoísta, problema alheio, realidade do mundo da irrealidade televisiva.
Uma semana no silêncio do confinamento, coberto de palavras e mais palavras, dos jornalistas inundados de informação, essência das suas vidas, dos governantes, titubeantes e claramente em falta de preparação para crises não políticas, dos queixosos, dos ansiosos, dos inconscientes, dos irrelevantes.
À História que poucos ainda lêem, poderíamos ir buscar exemplos e soluções. Da queda dos mais fortes, da erosão dos mais ricos, do desmoronamento dos mais sólidos.
Com a literatura também podíamos aprender. Releio A Peste do Camus, tropeçando com frequência nas memórias do tempo em que mo descobriram, nos paralelismos com o presente, na ficção que não sei se se tornará realidade que a minha imaginação desenvolve. Lá estão marcadas as várias fases que, tenho poucas dúvidas, iremos viver. A descontracção, a apreensão, o desânimo, o medo.
A minha realidade apresenta-se pouco diferente da que vivi há dois anos, há três: fechado em casa, a saltar de livro em livro, a reproduzir um parágrafo, a aproveitar uma ideia, a seguir uma fonte e ainda outra, num turbilhão que pouco produz mas muito tempo queima.
Voltei aos horários trocados: a noite é a minha concha, ainda que, no presente, as ruas diurnas pouco divirjam das avenidas silenciosas da noite. Há pouco fui à varanda e a cidade parece tomada pela natureza, tal o frequente chilrear dos desesperados pássaros. Cantarão em protesto pela poluição luminosa ou será este o começo da revolução da Natureza, num consistente retomar do que tomado foi pelo Homem?
A quase ausência de movimento que o confinamento a um apartamento deste tamanho obriga parece fazer diminuir a velocidade do tempo. É um engano. O tempo apenas se nos molda mais viscoso, uma neblina que apaga a contagem dos dias da semana e do mês. Que dia é hoje? Quantos nos restam da Quaresma, quantos faltam para a Ressurreição? Pouco importa - amanhã terei exactamente o mesmo número de compromissos, o mesmo número de obrigações, a mesma nula oportunidade de ganhar dinheiro, de produzir.
Será assim que começa o ocaso de uma sociedade? Será assim, insidioso como a lagarta na maçã, que entrou o mal, que nos entrou o mal?
Acredito que, como na canção, nada será como antes. Nem o factor turismo, nem o factor confiança, nem a estabilidade - real ou ficcionada - que, como humanos, ansiosamente procuramos.
Temo-nos um ao outro, disseste-me há duas semanas e eu acreditei. Ainda acredito.
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