Verde que te queria verde

De repente todos verão a luz. 

A LUZ.

Como com a cozinha "da avó".  Como com o "produto". Como com a "cozinha portuguesa".

Que desperdício de tempo, de recursos, de dinheiro.

Não, a restauração portuguesa não é composta por uma raça de iluminados. Nem sequer, maioritariamente, por cozinheiros que, ainda mais do que reflectir, gostam de ser humildes e aceitar que necessitam - como na maioria das profissões - de estudar, abrir-se a disciplinas que existem maioritariamente fora da cozinha e do restaurante (a História, a Arte, a Psicologia, a Estética, a Antropologia, etc., etc., etc....). Infelizmente, o que não faltam são adeptos das redes sociais e respectiva informação visual e confirmação social. Sobram estes chefes, fazem falta mais artífices do gosto, transformadores, daqueles que levam tempo a formar (a formarem-se).

(é provável que sejamos nós, ávidos de orgasmos gastronómicos que os construímos assim - a muitos, felizmente não a todos)

Voltemos À LUZ.

De há uns anos a esta parte, como nas outras indústrias sazonais (alta costura, pronto-a-vestir, electrodomésticos, política), passaram os cozinheiros das redes sociais no seu conjunto (reafirmo: com excepções) a adaptar as suas declarações públicas ao mais recente soundbyte, soprado, quase sempre, por uma destas três entidades:  a rede social (instagram ou facebook), a comunicação social (reportagens televisivas ou comentadores da especialidade) ou o simplesmente social (clientes ou amigos da especialidade). Todos (emissores e receptores) com uma característica em comum: o seu deslumbramento com o que vem de fora. Como diria Eça, vemos, comemos, falamos a última moda vinda de onde vier desde que vinda de outros, desde que em inglês.

Se é verdade que a convivência com o outro é salutar, se aprender com o outro é indispensável, se ser cosmopolita só nos ajuda a crescer, pensar pela nossa cabeça é essencial. 

Pensar pela nossa cabeça ajuda-nos a evitar a armadilha da incoerência, por exemplo. 

É incoerente falar em "SUSTENTABILIDADE" da sua cozinha quando se aproveita apenas uma parte da matéria-prima comprada ou se mantêm bicos de gás e torneiras abertas durante todo o tempo de serviço. Ou se utilizam uma única vez recipientes não recicláveis. Ou se gastam quilómetros de filme de cozinha. 

É incoerente falar em "COZINHA DA MÃE" quando a mãe (e provavelmente a avó) teve um emprego, uma profissão a vida inteira e, fruto dos tempos e da falta de tempo, maioritariamente recorreu a pratos pré-feitos, alimentos e bases preservados e produzidos industrialmente, a congelados (onde a cozinha do mercado, onde as tradições regionais e locais preservadas diariamente?).

É incoerente falar em "PRODUTO" quando não se sabe do produto mais do que o aprendido (muitas vezes redutoramente e mal) com a hierarquia que igualmente a aprendeu e mal com a sua hierarquia.

(Mais do que incoerente, é ridículo e torna-nos ridículos quando assentimos neste destrato da nossa inteligência. Somo assim tão cegos ou incultos que nos achem fáceis de sermos comidos por parvos?)

E agora está a chegar a cozinha "VERDE". Fruto dos confinamentos - que forçarão a que alguma coisa mude para chamar de volta o público ausente - e  do politicamente correcto actual que nos tenta  doutrinar quanto à emergência climática.

(Não, não sou contra a adopção de crivos e políticas ecológicas que permitam um melhor relacionamento com o meio ambiente. Sou, outrossim, contra o politicamente correcto e desde sempre a favor da adopção de um comportamento ético na nossa relação com o mundo.)

Vamo-nos enjoar com o "verde". Com os apóstolos do verde. Com os fanáticos do verde. Com o discurso papagueado até à exaustão da preocupação com o verde.

Será um verde moda, clamado por quem continuará a usar verdes fora da sua estação; por quem passará do 80 do uso da proteína animal subaproveitada para o -80 da proteína vegetal de cultura intensiva; por quem afixará o nome dos produtores bio mas continuará a explorar o trabalho dos seus colaboradores (horas extraordinárias por pagar, contratos temporários, destratos na cozinha, pagamentos diferenciados de acordo com o género).

Vamos a continuar a sentir a rarefação da ética. Gastronomicamente, socialmente, nas relações laborais

Vamos continuar a sentir falta de mais (porque há algumas) tascas com comida simples mas não simplória, bem feita, pensada com afecto e oferecida com afecto. Com um preço justo, sim, mas sem taxas de luxo pelo emprego de bio's ou verde's ou pt's ou o que mais os foodies ditarem que é trendy.

Vamos continuar a penar pelo excesso de papagaios e pelo número reduzido de golfinhos. 

(isto para manter a metáfora em conjugação com a natureza...)

E la nave va.

Comentários

Anónimo disse…
Nem sei que diga ! Escreveu tão singelamente o que se passa.
Desejo que sirva de incentivo a todos quantos gostariam que
houvesse um abrir de olhos coletivo,
um arrepiar de caminho com consciência ! Muito agradecida,
já nem me sinto tão só. ☺️

No último ano..