Bifes e Bifes
Nós, lisboetas - de naturalidade ou opção - habituámo-nos desde há algumas (poucas) décadas a saborear sem entraves de dureza os diversos cortes empregues pelos restaurantes na variada oferta de pratos tradicionais de bife. Falem os exigentes o que falarem, é tão possível encontrar uma carne que se deixe mastigar tanto em tascos e "tabernas" quanto em restaurantes antigos ou novos "fine dining". Não se trata (só) de boa técnica - trata-se da erradicação de más reses, operada por uma mais cuidada selecção de raças (o que, apesar da dúzia de DOPs vacuns portugueses, foi maioritariamente feito com recurso a importação de espécimes de raças celebradas como a Limousine primeiro e as agora famosas Rubia Galega e Angus) ou, furando o circuito, pela compra directa nas makros do costume de cortes importados, europeus (Irlanda, Países Baixos (by the way: como é que passamos a denominar os ex-holandeses - paisesbaixenses?)) ou sul-americanos (Brasil, Argentina, Uruguai).
Sabe tão bem mastigar um bife do lombo no Café de São Bento como um bitoque no Cantinho de S. José, uma carne maturada na Sala de Corte ou um prego numa roulote junto ao estádio de Alvalade.
Não comecem com protestos de qualidade: falo de tenrura e não de preparações.
Muito menos lamentem a invasão, a perda de amor-pátrio, o desamor ao genuíno português: comer um bife decente foi uma aspiração nacional desde sempre. Ou, pelo menos, desde que começou a ser lisboeta... comer bifes.
Apetece-me chamar a História (ou parte dela) para a conversa - comecemos então, cavando as camadas do tempo, descendo até onde podermos:
Sobre o bife servido em restaurantes lisboetas dos anos 70 do século passado escreveu o insuspeito crítico Manuel Pedroso (pseudónimo do escritor Luís "Felizmente Há Luar" de Sttau Monteiro) numa das suas crónicas no jornal O Jornal:
"Quem estiver num restaurante não pode deixar de reparar que mais de metade dos presentes está de faca na mão a batalhar com esse pedaço de carne dura e sensaborona a que se dá o nome de "bife". O facto é tanto mais de estranhar quanto é certo que o "bife" que se come entre nós é francamente mau. Não temos pastos e não apurámos raças, de forma que a nossa carne é de péssima qualidade. (...) Em casa o cidadão médio raras vezes come um pedaço de carne porque o seu preço o torna praticamente inacessível. Quantas vezes e que a família pode comer bifes? Quem tem dinheiro para encher a barriga dos meninos de carne assada? (...) Encantado da vida, o cliente encomenda o "bife da casa" e, passada a meia hora da praxe, é-lhe servido um pedaço de carne dura como granito acompanhada de batatas fritas e - para justificar o facto de ser "da casa" - de um ovo estrelado e de pedaços de uns legumes ácidos e avinagrados que, entre nós, passam por "pickles". No fundo, o "bife da casa" é isto e mais nada, excepto em alguns restaurantes mais caros cujos proprietários juntam à mistura descrita uma fatia de mau presunto."
Não me acusa a memória de falta de rigor na descrição do ilustre escritor - só a novo-riqueza dos dinheiros da CEE permitiu alterar este estado de coisas...
Não era queixa nova, antes a reafirmação do que, muitos anos antes, mestre Olleboma inscrevia a páginas tantas do seu Culinária (de 1928), a propósito do bife lá vem:
" (...) É destas últimas que se fazem os bifes, que, quando bons, nunca aborrecem e tão raramente se encontram entre nós, por não se matarem as reses quando o seu estado de desenvolvimento físico o indica, consequ~encia de não existir entre nós, devidamente organizada, a indústria da criação e engorda de gado para alimentação, e também por não termos instalações frigoríficas onde a carne se amoleça, desenvolvendo o perfume e as suas boa qualidades, que só com o tempo e a temperatura baixa se consegue. (...)"
E mais à frente, a propósito da sua confecção:
"(...) ora é justamente por não termos a carne, nas condições em que a obtêm a França e todos os países de civilização adiantada, que precisamos de recorrer a artifícios e misturas, que compensem a má qualidade da carne que temos. (...)"
No princípio do século XX, A Illustração Portugueza, queixava-se dos “bois magros que o paiz produz e em Lisboa somos forçados a comprar em número limitado de talhos”. As reses eram abatidas no matadouro municipal mas transportadas as carcaças em carroças abertas até aos talhos e mercados onde ficavam expostas à porta para consumidores apreciarem e toda a espécie de sujidade assentar. “A maioria dos nossos talhos é suja, muitos cortadores não sabem cortar e vendem-nos carne mal conservada. Todo o abastecimento de carnes é feito sem um frigorífico, sem um resguardo, sem o mais elementar asseio (…)”. Pergunto-me até que ponto os apaladados molhos dos bifes lisboetas, hoje ainda tão amados, não terão sido criados para disfarçar as consequências de toda esta manipulação…
Do apelo do molho - apesar da carne... - temos eco nas nove receitas que, em 1904, Carlos Bento da Maia integrou no seu "Tratado Completo de Cozinha e Copa".
Paulo Plantier, no seu O Cozinheiro dos Cozinheiros (1877), apresenta preparações que me parecem mais próximas da tradição de consumo à época: os bifes "à ingleza", pedaços de febra, pincelados com manteiga e grelhados, ficando em sangue, e os "beefsteaks", marinados em azeite e fritos no mesmo, temperados com molho de manteiga e salsa.
Com este historial de dureza fica-nos a dúvida acerca da origem do consumo dos bifes lisboetas: porquê consumir o que com grande probabilidade seria pouco menos do que uma sola de sapato quando o apropriado seria recorrer (como recorrem a maioria das receitas regionais) a uma preparação de lenta cozedura?
A resposta, no meu entender, está na etimologia da palavra, na história nacional e na tradição inglesa.
Recordo que a palavra bife tem como origem (aceite pelos linguistas) a palavra inglesa beef. Mas beef não significa bife, antes carne de vaca o que não auspicia grandes conclusões.
Em Inglaterra, mais especificamente em Londres, tiveram assinalada frequência, entre o princípio do século XVIII e meados do seguinte, clubes de cavalheiros denominados Beefsteak Clubs, dos quais o mais famoso foi o The Sublime Society of Beef Steaks . Reuniões semanais à volta da mesa onde o menu único era um bife grelhado coberto por um molho de cebola, harmonizado com vinho do Porto ou uma cerveja porter celebravam o gosto de uma peça considerada um símbolo patriótico de liberdade e prosperidade (com o lema "beef and liberty" assinalado nos botões do colete obrigatório sob uma sobrecasaca azul). Ao clube, fundado por gente ligada ao teatro, associar-se-iam políticos, altas patentes militares e membros da alta nobreza, tendo mesmo o príncipe de Gales aderido em 1785.
Encontrei, numa edição do The Guardian de 2012, uma curiosa apresentação da relação dos londrinos com a carne:
But our love of a good roast has not changed since the journalist Ned Ward wrote in 1809 of London clubs serving "the true British Quintessence of Malt and Hops, and a broil'd Sliver off the juicy Rump of a fat well-fed Bullock" and of men eating steaks until they were "Knuckle deep in the Gravy".
Apesar do que me parece ser o engano na data (1709?) parece-me que o interesse pelo consumo de bifes de vaca não só se manteria como, pelo efeito da imitação, mais se teria generalizado.
As tropas ingleses desembarcaram em Portugal em 1808 para terminar com a ocupação francesa e por cá ficaram até 1820. Foram militares ingleses que asseguraram a regência do país. Influenciaram os modos e as modas na capital. Postulo eu que será uma hipótese plausível terem os restaurantes lisboetas começado a servir bifes devido à insistência dos seus clientes britânicos. Consumidores tão fervorosos que provocaram a sua alcunha, estendida a todos os contemporâneos e futuros habitantes do Reino Unido: "bifes".
Da oferta por solicitação se terá passado ao consumo por cópia que se generalizou, se incrementou (algumas décadas depois) com os molhos e se tradicionalizou com a idade: os Bifes de Lisboa.
Mesmo podendo não ser a verdadeira História é, com toda a certeza, uma bela estória!
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Delícia 😋