Novas (das) Migas de Mora: Joaquim "Sal Grosso" Leal


À cozinha popular, regional, tradicional  (chamem-lhe o que quiserem, provavelmente "nossa", será o epíteto que melhor lhe fica) pede-se que nos fique bem, que nos conforte na medida em que atinge aquele ponto sensível que cruza as memórias de infância, do colo materno, da simplicidade das vivências, dos sabores e das visões duais (bom/mau, gosto/desgosto, alegria/tristeza), com a primeira matriz de interpretação do mundo que nos marcou para sempre.

Somos no presente muito do que soubemos construir durante a vida mas nunca escaparemos a esses sabores e aromas, sendo deles e a eles nos religando emocionalmente de cada vez que nos atingem os sentidos.

Fazer pão é a precisão mais antiga do mundo. Se outras sociedades dele se têm relativamente libertando, por cá continuamos acérrimos defensores do seu consumo, apesar das modas alergénicas ou dietéticas, da industrializada qualidade da maior parte dos espécimenes à venda, da progressiva morte das massas mãe locais que traziam individualidade ao produto de cada padeiro. Expressão suprema desse amor profundo é a sobrevivência em quase todo o país das papas feitas à base de pão, com prevalência (como não poderia deixar de ser dada a sua ascendência moura) no centro e sul do país. Secas e tostadas no pingue no Alentejo profundo, são pratos emocionais, conforto da alma e confronto com um tempo de escassez em que de um pão velho se fazia refeição para a casa, animada com o calor do toucinho e a frescura de uma erva apanhada pelo campo.


Desde há cinco anos que a Câmara Municipal de Mora organiza, em Fevereiro, o Mês das Migas, tendo por objectivo a valorização tanto do que considera ser um dos pratos mais emblemáticos do concelho como dos seus restaurantes. Este ano, numa louvável abertura a novos conceitos, apadrinhou a troca de ideias entre profissionais e consumidores, convidando um grupo de cozinheiros com percursos e experiências profissionais diversos a cozinharem um prato seu em conjunto com as equipas da casa.


No passado Sábado, Joaquim Saragga Leal, o proprietário da badaladíssima Taberna Sal Grosso, rumou primeiro à aldeia de Brotas e depois à vila do Cabeção para partilhar e aprender, numa jornada dupla que deixou marcas em quem a viveu e dela provou.

A ideia? Usar o que é mais característico do seu restaurante - os usos gastronómicos de Lisboa e das cozinhas regionais com as quais a equipa tem relação familiar, as técnicas contemporâneas - e aplicá-lo na temática em destaque.

O POÇO, Brotas
Rua 25 de Abril
Tel. 266 487 155

Restaurante de família, com 26 anos de idade, o O POÇO começou a conquistar um lugar na paisagem restaurativa do concelho com o seu Borrego no Forno, a que se seguiu a premiada "Enxovalhada" (doce local, com uma receita de mão amiga) e a que se juntam, entre outros mimos da gastronomia concelhia, as Migas de Espargos Selvagens.

Ovos mexidos com espargos selvagens
Na cozinha, a D. Vitória e suas filhas. Na sala, o pai, Sr. Vinagre. Café na sala de entrada, com acesso à sala de refeições decorada com motivos alentejanos, pronta a acolher os clientes expectantes e já conquistados pelos aromas que se vão aproximando com novas dos pratos em confecção.

A mesa posta, com alguns dos pratos mais emblemáticos da casa, não faltando os enchidos, o queijo e os vinhos regionais
Para aqui, decidiu Joaquim trazer a memória de umas outras "Migas", da beirã região de Pombal, feitas com broa de milho, duas variedades de couve e feijão frade,


a acompanhar uma posta de bacalhau, confitado em azeite a baixa temperatura.


Prato de fronteiras, prato guloso, que junta o lado intemporal das confecções aperfeiçoadas pelos séculos e pelos gostos ao lado contemporâneo da tecnologia disponível (cada vez mais facilmente disponível). Um prato de lamber os dedos em qualquer lado.

As Migas de Pombal com Bacalhau confitado a baixa temperatura

Duas horas de boa disposição, de olhares furtivos e declarados, a perceber gestos, a descobrir modos (o vinagre nas migas é uma descoberta que vamos os dois usar, não é, Joaquim?), a criar vontade de mais experimentar (ainda hei-de ir provar uma carne cozida a baixa temperatura a Brotas, certo, sr. Vinagre?), sob o olhar atento da equipa de reportagem da SIC.







No largo fronteiro, o acordeão de Sertório Ramalho, uma das faces do empenho cultural e antropológico da CMMora: música nas migas
Após o final do serviço, em mesa comprida, entre cozinheiros e jornalistas, proprietários, representantes oficiais, músico de serviço e este vosso escriba que a fortuna colocou no meio deste evento, encimados pelos prémios recebidos ao longo dos anos,


e pela obrigatória presença exclusiva dos vinhos da região,


o convívio bem português, das palavras, dos risos, das memórias, do vinho, dos petiscos e do pão.

Ah, o pão...







A PALMEIRA, Cabeção
Rua 25 de Abril, n.º 46, 7490-107 Cabeção
Telefone: +351 266 447 182 / +351 934 469 057

Fundado em 1983 por mãe e filho - a D. Guilhermina e o João Cravidão -, o A Palmeira é um dos emblemáticos restaurantes da vila que, ainda hoje, é um dos centros da produção de vinho de talha do país.


Na cozinha, uma equipa "à antiga": um grupo de senhoras - enérgicas, bem-dispostas, amigas da sua profissão e enamoradas pelas suas confecções -, sob o lhar atento da matriarca, D. Guilhermina que, do alto da experiência dos seus oitenta anos, não se isenta de pegar na colher ou no garfo e acertar o ponto final das Migas de Espargos, das Migas de Batata, do Borrego ou da Carne de Alguidar que melhor simbolizam o pendor regional da casa.

Migas de espargos
Migas de batata e tomate

Para este jantar, decidiu o Chefe desenvolver um prato de migas com abóbora e batata-doce com rabo de boi estufado. Tão boas ficaram as experiências que fará parte, dentro em breve, dos pratos oferecidos no Sal Grosso!

Migas de abóbora e batata doce, com rabo de boi, o prato do Joaquim Saragga Leal

Das horas de preparação e troca de experiências, posso dizer que foram a bem prolongada experiência matinal, que as gentes deste rincão alentejano são de cepa convivial e sem pruridos na partilha.

Joaquim Saragga Leal e a equipa da cozinha

D. Guilhermina, a proprietária, oitenta anos cheios, com um vigor entusiasmante na chefia da cozinha
Dos pratos, para além do já citado vinagre que contrabalança a gordura e diversifica os sabores, estes panados de uns lombinhos que só de os olhar se marejavam os olhos, foram a tentação irresistível para um final de dia que tinha sido... completo.

Os panados de lombinho com migas de coentros que me encheram as medidas

Passem pois, pelo concelho, não só mas especialmente neste mês de super abundância de referências "migas-íticas" que não darão o tempo por desperdiçado.

Comentários

Paulina disse…
Que iniciativa interessante!

Que pena não estar aí, pois esta é uma zona do país muito próxima daquela em que nasci e por aqi passei durante muitos anos antes da auto-estrada nos levar mais rapidamente, mas não deixar descobrir e saborear tanta coisa.

Uma boa surpresa também ver o Joaquim, logo o primeiro! E que fome me deu!
Pedro Cruz Gomes disse…
Temos descoberto casas bem interessantes, que merecem visita com tempo, cheias com pessoas igualmente interessantes, merecedoras de todo o nosso apoio. Um Portugal de que nos afastámos por auto-estrada, ansiosos por chegar a outro destino.
Artur Hermenegildo disse…
Estivemos o ano passado n'A Palmeira e foi um óptimo jantar.

A Sopa da Panela de Pombo Bravo foi dos melhores pratos que comi o ano passado.

No último ano..