Molhó Bico e bem, em Serpa

Para quem visita Serpa ou está por perto,
deixo memória e aprovação de uma boa casa de restauro na cidade

Molhar o bico é gesto de orador: de quem se prepara para interromper copos de água em brindes nunca de água, de quem pausa o retorno a casa num balcão zincado para dois dedos de conversa que se prolongam por mais três, que a vontade de rever o lar já teve melhores dias, de quem enfrenta noites de estreia mesmo em dias de repetição.

Molhar o bico, ajustar as asas e lançar-se em voo.

Serpa prefigura-se-me como o centro de dois grandes monumentos portugueses, obras multicentenárias de construção paciente na direcção da perfeição: o cante e o queijo homónimo. Monumentos que são momentos gastronómicos - o cante que nasceu e cresceu no tempo ritmado da ceifa, que colhe o trigo, que para o pão se faz, que se faz fundo nas tabernas entre o vinho e os petiscos; o queijo Serpa que cresceu muito para além de umalimento e se tornou num ritual onanista. Eis dois bons pretextos para visitar a cidade e arredores, provando na origem o que, felizmente, noutros pontos do país já se vai encontrando.

O que só mesmo por lá se pode viver é a vivência nos seus restaurantes, entre os quais este Molhó Bico que tive oportunidade de visitar recentemente. Localizado na zona histórica, em rua de nome sugestivo,


esta antiga adega recebe-nos com ante-sala pejada de talhas, a relembrar estarmos em zona de vinho historicamente gerado nestes enormes recipientes, infelizmente postos em desuso quase total (que agora vem sendo recuperado um pouco por toda a região).



Sala de refeições ampla sem ser intimidante, com decoração característica dos usos da terra. Na mesa, pratos e acessórios personalizados e loiça rústica a marcar o carácter da casa: a restauração regionalista em todo o seu fulgor a qual, se coerente com uma cozinha honesta e respeitadora, é marca de genuinidade.



E honesta é a cozinha e honesto o nosso prazer.


Azeitonas bem curadas, no ponto certo para nos perdermos o resto da tarde acompanhados pelos complementares pão e vinho da região. Pão molhado no azeite ou barrado na incrível gordura de porco servida em tacinha. Só quem nunca a provou pode sequer pensar aludir a feitos colaterais provocatórios...




Entradas de lamber os dedos e continuar a sonhar acordado com campos dourados, cigarras ao longe, o abandono ao torpor à sombra de um chaparro e o cântico polifónico em sussurro nos auriculares caídos sobre o ombro ("Ó minha mãe, minha mãe, ó minha mãe, minha amada, Quem tem uma mãe tem tudo, Que não tem mãe não tem nada..."). Prazer e melancolia. Convívio, palavras, sorrisos e, omnipresente, este contentamento em dó menor, esta saudade antes de a sentir.

Torresmo do Rissol
Torresmo do rissol: o redenho (gordura junto aos intestinos) frito e uma tentação que, como todas as tentações, não deve ser evitada. Deixando a culpa para outras lamúrias, é de experimentar em toda e cada uma das ocasiões encontradas; quando a fritura atinge aquele ponto supremo de equilíbrio, crocante, difícil se torna parar.

Espargos silvestres com ovos

Espargos e ovos. Desgarrada entre o coro - os ovos - e o ponto que se torna alto - os espargos. Uma moda integral, de várias vozes de tons diferentes mas totalmente afinadas.

E depois os pratos de fundo, a exigir mesa comprida para muitos se provar e com muitos partilhar.
Lebre com feijão branco

Caldo de cação
Caldo de cação

Migas com carne (de porco preto) frita
Distinção para o caldo de cação, para o perfume da lebre e para o molho do ensopado de borrego (sem foto). E mais ficou por provar, a pedir nova visita.

Dos doces, um bocadinho de cada, a cair bem mas a dispensar o intruso abacaxi e a deixar a interrogação sobre a utilidade do alecrim.

Pijaminha alentejano:

Restaurante Molhó Bico Rua Quente Nº1
Serpa
Tel: (+351) 284549264
GPS: N 37º 56' 35.54'' , W 7º 35' 48.69''

Aberto das 11:00 às 02:00
Encerrado às 4ªs feiras

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