"A" Cozinha Tradicional Portuguesa não existe

 




Nunca há uma explicação única para um fenómeno, um acontecimento, uma relação. Tal como a perspectiva do mundo é múltipla em contraponto à utilizada pela pintura clássica, uma redução racional adaptada à fragilidade humana, também a plurivisão da humanidade perturba e altera os factos à maneira de cada um. Talvez Platão tivesse razão: o mundo é um espectáculo projectado na nossa retina, cuidadosamente interpretado pela emoção – nunca nos é permitido o contacto com a Verdade absoluta. Vivemos de restos, de fragmentos, de migalhas.

(Já vos cansei? Não? Falemos então de gastronomia.)

Como toda a realidade, a entidade “cozinha tradicional portuguesa” transporta consigo inúmeras identidades e explicações – é tão diversa quanto os seus actores , um corpus feito de milhões e milhões (não exagero nos milhões, façam as contas às gerações de portugueses que a  produziram e dela se alimentaram) de seres pensantes (bem pensantes, mal pensantes, não pensantes). Esperar que de tão heterogénea massa, afectada pela espuma do tempo, saísse algo coerente, único e definitivo é algo que eu não consigo entender. Eu sei que decorre da condição humana tentar não só dar nome às coisas como deixar o seu nome nas coisas… Mesmo o modo altruísta de plasmar não o seu mas o nome dos outros é o disfarce mais ou menos modesto da obra própria sob disfarce autoral.

Pisando claramente terreno minado dou-vos um exemplo. Tivemos no século XX pelo menos quatro (mais uma) grandes obras dedicadas a esta entidade semi-abstrata da cozinha tradicional/regional portuguesa:

O “Culinária Portuguesa” de Olleboma ;

O “Cozinha Regional Portuguesa” de Maria Odete Cortes Valente

O “Cozinha Tradicional Portuguesa” de Maria de Lourdes Modesto

Os diversos volumes dedicados à culinária das antigas províncias (“Cozinha do Minho”, etc) de Alfredo Saramago.

Junte-se o menos citado mas igualmente esforçado “Cozinha do Mundo Português” de M.A.M. e teremos um mosaico representativo da produção culinária de cariz português tal como ela era percepcionada no século passado.

Se nos dermos ao cuidado de ler e comparar o que em cada um foi publicado, rapidamente concluiremos que tanto o conteúdo diverge (com muitos casos de preparações incluídas nuns não existirem em outros) como os pratos comuns apresentarem receitas diferentes, umas vezes ligeiramente, outras mais profundamente quase alterando de forma radical o resultado final. Ora tal facto não prova a veracidade de um face aos restantes: demonstra apenas o pendor pessoal de todos eles, reflectindo o que deveria ser óbvio – aqueles não são manuais da cozinha portuguesa são a interpretação autoral da entidade abstracta que se convencionou chamar cozinha portuguesa. Atente-se no pormenor que talvez seja maior : nos dois primeiros não há indicação de fontes, Saramago indica-as parcimoniosamente e apenas Modesto divulgou desde a primeira hora que o seu livro resulta de uma selecção de receitas por si recebidas no âmbito de um concurso televisivo. Ou seja, em todos o resultado é fruto das opções do autor ou seja, o resultado é a visão do autor e não uma impessoal, definitiva e incontestável enciclopédia da culinária de raiz portuguesa.

Porquê então considerar uma destas obras como tal e, mais grave ainda, como única e definitiva?

Eis porque qualquer discussão sobre os méritos da “sua” cozinha tradicional está inquinada: não existe uma verdade única, não existe uma versão única. Não existe uma só cozinha tradicional portuguesa nem ninguém (somos todos!) é o seu profeta.

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