Gastroescritas #3 - Não é Sopa, de Nina Horta

Os arquivos de receitas, por mais bem embrulhados que estejam em luxuosas fotografias e imaginativas composições, não são, nem de perto nem de longe, os meus livros favoritos de gastronomia. Por mais que se estribem em anos de prática, de laboriosa investigação, invenção, comprovação (e muitos deles nem isso têm...), sabem-me sempre a um livro de engenharia cheio de fórmulas a quem recorremos sempre que precisamos, que nos é útil, mas de onde não retiramos a mais pequena ponta de prazer. São manuais. Não são livros.

Um livro de gastronomia, mais prosaicamente um livro de comida, é outra coisa - é a condensação total ou parcial de uma vivência de prazeres em momentos de escrita que deverão constituir-se eles próprios como nova fonte de prazer - sentido e evocado - para quem os lê. É uma inspiração para novas descobertas, uma sugestão para novas viagens. Nele, as receitas são apenas um meio, não um fim, um meio para encontrar, identificar, disfrutar, as experiências relatadas pelo autor.


"Não é Sopa", da brasileira Nina Horta é uma colectânea das crónicas escritas na Folha de São Paulo entre 1987 e 95. Escritas com uma facilidade de estilo que engana - porque de fácil nada tem - são a exposição de uma vida de saberes e sabores, de experiências, boas ou menos conseguidas. Os temas tratados ligam universos tão diversos quanto sopas e cozinheiros famosos, ingredientes triviais e escritores gastronómicos consagrados, cinema ou apontamentos do dia-a-dia.

A ler com prazer e, porque não?, a deixar a inspiração apoiar-se nas receitas que também contém.

"O GAMBÁ

Aperto o nariz contra o vidro da janela da cozinha e vejo os cachos verdes de pimenta-do-reino pingando água. Tudo ensopado. Só D. não perde o bom-humor e implora ao caseiro que vá correndo buscar o palmito do palmiteiro que caiu no meio da estrada. Lá embaixo, as galinhas. os ovos, as vacas. a couve, o inhame roxo, a mandioca e os patos. E a banana, é claro. Com o leite fazemos uma coalhada leve e etérea, nada azeda, que se abre ao toque da colher. É só deixar o leite sem ferver nas tijelas bojudas e brancas, de um dia para o outro, e só. De manhãzinha, D. vai até a horta mirrada e volta com um maço de couve. (...) Lava, põe numa leiteira de louça, com água. Na hora do almoço, corta bem fininha, conforme a regra da ciência mineira, salga e passa rapidamente na frigideira, onde já refogou meio alho numa pincelada de óleo. (...)

A coisa mais gostosa do sítio, além da farinha de mandioca, é a farinha de cachorro, feita de fubá. D. molha ligeiramente o fubá com água e põe numa panela de ferro já com a gordura de uns pedacinhos de toucinho fritos. Deixa ficar um tempão, mexendo sempre. Fica uma farofa pontilhada de torresmos, boa para comer com feijão de caldo grosso.

As ostras, os ouriços, os paratis, são uma outra história... (...)"

(ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995)

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