Três palácios reais da região de Lisboa


Curioso paradoxo gastronómico que a distribuição social da riqueza gerou, é a cozinha dos ricos que fica para a História mas é, genericamente, a cozinha dos pobres que fica na memória.

Concretizo: dos sítios, dos registos, das memórias fica‐nos o relato de hábitos alimentares, despesas com eles relacionadas, modas, modos que as classes superiores – a nobreza e o clero – mantiveram durante séculos. São essas as fontes da História, as quase únicas fontes possíveis de um passado que pouco ou nada quis registar da arraia‐miúda, precisamente porque da sua condição humana não se tinha consciência de existir. Nulidade necessária para manter os padrões de vida da classe dirigente, relegado o seu bem‐estar para um prometido paraíso post mortem, ao povo, urbano ou campesino, pouco mais durante séculos se permitiu que uma quase sempre silenciosa luta pela sobrevivência. Restou‐lhe um consolo: que, pouco a pouco, o sapiente, laborioso, imaginativo agrupar de soluções para matar a sua fome secular, arrancadas aos parcos recursos sobrantes após a rapina dos senhores, constituísse o fundamental dos hábitos culinários de uma região, um povo, uma nação.


Aos homens feitos imperfeitos e fugidios deuses ficou assim reservado o fulgor de uma vida, cristalizada, irrepetível; aos seus anónimos servos, filhos desses deuses menores, a perenidade de um conjunto de gestos, repetidos e sempre presentes, a memória quase genética que nos habita.


Visitar alguns dos Paços da região de Lisboa é dialogar com essa História registada e caminhar pela perplexidade de tomar conhecimento de algo que nos pertence – porque português – mas que nos é estranho – porque, comuns mortais, somos quem olha de fora. À maneira de Pessoa, sentimos racionalmente; está‐nos interdito invocar Homem de Mello e pensar “comi com eles na mesa, tive a mesma condição”.


Ao visitar os palácios de Sintra, Queluz e Ajuda fica‐nos – para além do prazer que é caminhar os espaços, descobrir as decorações, conhecer os artefactos – a compreensão das soluções arquitectónicas nos grandes espaços de habitação para os problemas inerentes à preparação, confecção e distribuição de alimentos. A recepção e armazenamento dos alimentos. O abastecimento de água e a drenagem da mesma após o uso (lavagens, limpeza). A exaustão de fumos. A protecção contra incêndios. A geometria e orgânica dos espaços de confecção – fogões, fornos, espetos, lareiras. Os percursos de distribuição. Os locais de consumo – salas de refeições.



Visitando-os - ou questionando-os - de acordo com a sua ocupação temporal, permite percepcionar a evolução dos gostos e das soluções.


O palácio da vila, em Sintra, com origem árabe foi residência da família real portuguesa desde o século XII. Sucessivamente ampliado por campanhas de obras ordenadas por D. Dinis, D. João I e D. Manuel I, em vários estilos arquitectónicos, a sua configuração actual não difere globalmente do fixado por este último rei, permitindo assim uma ideia consistente das soluções medievais e renascentistas relativamente às questões atrás citadas.


As duas chaminés da cozinha, ex‐libris do palácio, são o indicativo maior tanto do tipo de confecção preferencial – assados ‐ quanto da quantidade de comida assim confeccionada justificativa de tamanha dimensão de exaustão. A construção independente do resto do palácio bem como a grossura da parede meã ilustra os cuidados e o receio de incêndios, perigo real dados o tipo de materiais usados na construção e a prevalência do fogo na cozinha (ironicamente, seria um incêndio a destruir, vários séculos depois, um outro palácio real, a Real Barraca, edificação provisória de madeira (com 33 anos), determinando a construção do Palácio da Ajuda, último palácio real da monarquia portuguesa). Finalmente, o – pelo menos para o visitante moderno ‐ labiríntico percurso que vitualhas seguiriam até à sala de refeição, faz pensar ser provável a presença nesta de processos de reaquecimento da comida.


Igual separação do corpo da cozinha verifica‐se no Palácio de Queluz, construído no século XVIII. Adaptado a restaurante, a chaminé, integrada numa das salas de refeições, ainda que de notáveis dimensões é de uma escala muito inferior à das suas monumentais congéneres de Sintra. Sinal claro de uma outra atitude do cozinhar, mais apoiada na confecção de peças parciais e de preparados do que de peças inteiras dos animais. Uma cozinha que se poderá caracterizar como menos “brutalista” e mais delicada.




Infelizmente no Palácio da Ajuda não está aberta aos visitantes a possibilidade de visitar a cozinha, sendo apenas possível o contacto com as duas salas de refeições – a sala privada e a sala de banquetes. Espaços de ostentação do poder, como não poderia deixar de ser, com o acto de comer, principalmente no segundo espaço, a ser elevado a factor de representação do Estado, tanto na época monárquica como no actual regime.



Interessante este percurso, bem explicado pelo olho treinado e erudito de Virgílio Gomes, de três espaços reais sob a óptica gastronómica.

Comentários

Pedro Cruz Gomes disse…
Obrigado pelas suas palavras!

No último ano..