O forajar brasileiro de Alex Atala (I)

Apesar da criatividade latente em muitos dos cabeças de cartaz da, impropriamente denominada, "gastronomia molecular", a velocidade de propagação das suas ideias e propostas que a internet e uma cada vez maior atenção da comunicação social possibilitam, muito tem contribuído para a sua disseminação e consequente "vulgarização", transformando recentíssimas admirações em enfadadas repetições à escala mundial.

Para conservar parte da sua identidade e acrescentar algo de muito próprio e dificilmente repetível, uma das tendências mais visíveis da vanguarda culinária mundial é a da procura de aproveitamento de produtos locais culinariamente pouco explorados, abandonados ou ignorados. Esta procura, igualmente influenciada pela cada vez maior consciencialização da pegada ecológica deixada pela globalização do comércio agrícola mundial e pelos sentimentos de solidariedade e de atenção para com os "fellow citizens" (ver o que escrevi sobre localvorismo), começa a ter resultados visíveis - o Noma, em Copenhaga, é um bom exemplo do binómio sucesso mundial / criatividade "local".


No universo dos chefs falantes em português, o brasileiro Alex Atala (quiçá por, para além do seu talento culinariomediático, ter sabido alinhar com a onda da frente da relevância mundial) tem procurado desenvolver criações recorrendo à inesgotável fonte de novidades e exclusividades que o seu país apresenta, principalmente na zona amazónica. Eis alguns dos produtos investigados e que me motivaram a curiosidade...

Jambu

(Fonte: http://come-se.blogspot.pt)
O jambu é muito utilizado nas culinárias dos estados brasileiros do Norte - Pará, Amazónia, Rondônia e Acre. Os pratos mais emblemáticos onde é utilizado serão o tacacá e o pato no tucupi.

Tacácá
(Fonte: http://www.santaremtur.com.br/br/noticiaseventos/tacaca-delicia-tradicional-paraense/22/)
Mais marcante do que o sabor é a capacidade de anestesia de lábios e língua de quem a mastiga, sendo a mesma mitigada pela cozedura.

Em Portugal é comercializado  - na época dele - pela Quinta do Poial.


Priprioca

Priprioca e pudim de leite com ela aromatizado pelas mãos de Neide Rigo (chapeau!)
(Fonte: http://come-se.blogspot.pt/2009/07/priprioca-resposta-ao-post-anterior.html)

"A priprioca ou piripirioca (Cyperus articulatus), é uma erva da espécie ciperácea, aromática e medicinal natural da Amazônia. Parente do junco e do papiro, suas raízes liberam uma fragrância leve, amadeirado e picante com notas florais." (Wikipedia)

Atala interessou-se pela fragância da planta e procurou a sua adaptação a usos culinários. Acabaria por conseguir a extracção do óleo elementar a partir da raiz, com usos culinários semelhantes aos da baunilha que emprega em variadas preparações, de caipirinhas a sobremesas.

Leia-se o chef, em discurso directo (fonte: http://prazeresdamesa.uol.com.br/exibirMateria/1308/mais-vale-a-floresta-em-pe-do-que-deitada):

"Como todos sabem, sou um apaixonado pela Amazônia. Sempre que posso, passo por lá. Tenho interesse por qualquer pesquisa ali desenvolvida, pergunto e quero saber tudo sobre todo e qualquer ingrediente que os habitantes daquelas latitudes usam (assim como das demais regiões do Brasil). Numa dessas andanças, certo dia deparei com priprioca. Cheirinho bom. É engraçado, mas naquelas barraquinhas do mercado Ver-o-Peso, em Belém, PA, vendem uma mistura que eles chamam de “cheirinho do Pará”. Esse cheirinho é encontrado em vários outros pontos do mercado, e é invariavelmente composto de priprioca e outras ervas e raízes, que variam conforme o bairro da cidade ou a região do Estado a que a barraca represente. 
Também me inteirei de pesquisas da indústria de cosméticos. E descobri mais sobre o uso de Spilantus e da priprioca em prol de alguns produtos de beleza. Spilantus é o nome científico do jambu, aquela erva que a gente já conhece e nos dá uma sensação “elétrica” na boca. Uma certa marca de cosmético fez um creme que ajuda a evitar rugas por meio dessa mesma propriedade do jambu. Há também perfume de priprioca. Só sei dizer que quanto mais eu sabia sobre priprioca, mais fascinado ficava. Pensei, então, que, se um cheiro podia ser um gosto, priprioca poderia ser um ingrediente somado a minhas receitas.

Minha primeira e importante investigação foi descobrir se priprioca era comestível, se a raiz não continha nenhum agente tóxico. Ficou comprovado que o que há de tóxico na priprioca só é nocivo ao organismo humano quando consumido em grandes quantidades. Falo da ordem de meio quilo, o equivalente a um prato inteiro somente com esse ingrediente. Daí, concluímos que dá para usar a priprioca para compor receitas. Bem dosada, essa raiz não é nociva à saúde e, principalmente, traz à gastronomia uma nova possibilidade.
A primeira coisa que me fascinou nessa raiz, com formato de uma bolinha cabeluda, foi o cheiro. Ela tinha um cheiro que me era familiar e lembrava alguma coisa entre patchuli e maconha. Resolvi então fazer testes com esse aroma. Nesse processo, percebi que todas – todas, mesmo – as receitas que levam baunilha também podem levar priprioca. Assim sendo, ela é um sucedâneo. Ambas têm seu próprio caráter, e uma não substitui a outra. Mas, com ela, você pode dar uma nova nuance e caráter a velhas receitas ou a bases muito simples, como um crème pâtissière.
Pensando em tudo isso, resolvi criar uma receita com priprioca. Toda vez que deparo com um novo sabor e que tenho de introduzi-lo no universo palatável, gosto de fazê-lo de uma forma simples. Assim, o comensal pode julgar apenas aquele sabor. As receitas afetivas, aquelas que cultivamos desde a tenra infância, são de grande valia nessa hora. E é isso que ofereço neste mês a vocês. Um pudim de leite, que todos conhecemos, com caramelo de priprioca. Vamos aos passos. A cozinha moderna dispõe hoje de destiladores, chamados de RotaVal. (NG: Rotavapor em Portugal)

(Fonte: http://www.imlab.com/buchi/fr210215%20english.htm)

Há muito tempo, eles eram usados na indústria de perfumes, mas estão sendo recém-introduzidos na indústria de alimentação. Trata-se de um alambique que funciona em baixa pressão e que pode extrair aroma de coisas inimagináveis. Caso você não esteja interessado em adquirir esse novo equipamento, há outras maneiras de extrair o aroma da priprioca. Uma delas é a usada há anos para produzir perfumes: some priprioca a álcool de cereais, e deixe repousar por pelo menos 15 dias. Quanto mais priprioca você acrescentar, mais potente será sua base. Passado o tempo de descanso, provoque a evaporação do álcool para obter a essência da priprioca. Ela pode ser utilizada na receita a seguir para montar o caramelo de priprioca.

Mas preciso confessar que, assim que terminei o pudim, gostei da receita mas ainda não estava feliz com ela. Queria dar um passo à frente, tirar o óbvio e passar uma mensagem direta, mas mais rica em sua essência. Pensando em outras nuances que podiam ser acrescentadas àquela receita, lembrei-me da banana. Banana e priprioca me pareceram uma combinação muito boa. Então, fiz um ravióli de priprioca. A receita leva água, essência de priprioca e gelatina. Se tiver agar-agar, prefira-o à gelatina. Ele tem um agente gelificante que suporta por mais tempo a temperatura (e por isso demora mais a derreter). Fiz uma gelatina bem fina. Cortei uma folha. Coloquei uma pequena gota de crème pâtissière com um pouco de limão, para acrescentar uma nota ácida, rodelas bem finas de banana-ouro (a menorzinha que encontramos na feira, potentíssima no sabor e no aroma) e cobri-as com outra folha de gelatina. A seguir, coloquei ao lado do pudim de caramelo e a sobremesa parecia quase perfeita. Mas achei que ela podia ser ainda mais rica, mais complexa, trazer mais uma aplicação para a priprioca. Fui pesquisar, me divertir, remexer no meu baú de memórias e me lembrei dos cogumelos brancos típicos japoneses (kikurague) que são encontrados no bairro da Liberdade têm uma pinta de alga e uma consistência entre o crocante, o escorregadio e o melos. Bem, o processo de preparação dele é bastante simples, hidrate-o e cozinhe-o por 10 ou 15 minutos em água com priprioca. O resultado disso é muito divertido e gostoso. Para dar brilho ao que já era bonito, coloquei um pouquinho de ouro. E a receita, com o trio lado a lado, estava completa.
Gosto dessa receita por tudo o que ela tem e também pelo uso que estamos descobrindo de outro item de nossa floresta. Usando os ingredientes da selva amazônica estamos valorizando-a, estimulando seu uso consciente e sua conservação. Acho que essa é uma das melhores formas de fazer com que nossas florestas valham mais em pé do que deitadas. O extrativismo, a pesquisa são grandes aliados para esse fim. Porque quando paro e penso, fico estarrecido ao constatar que a indústria cosmética e a farmacêutica conhecem melhor a Amazônia do que nós, cidadãos brasileiros – e, por conseqüência, nós, cozinheiros."
(a continuar...)

(Aos curiosos: "forajar" é a mui pessoalíssima tradução de "foraging", o acto de procurar ou explorar recursos alimentares)

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