De Bragança a Lisboa, com volta: Festival do Butelo e das Casulas
Numa terça-feira de derrotas várias, de desconforto metereológico, de contactos visuais com sociopatas que se julgam ao volante de um videojogo que permite ressurreições pós-gameover, tomou conta de nós o aconchego secular do que, em contínuo de gerações, foi sabiamente aprimorado até à perfeição (aconchego de papilas que se estende às pálpebras que, dolentes, baixam para melhor nos sentirmos em harmonia (mesmo sendo temporária) com o restante universo das gentes e dos sítios, e termina numa indulgência auditiva que reduz o ruído ambiente até um sussurrar que melhor fica num bosque primaveril) e dá razão à mão de mestre Torga que assim considerou
Em casa de sua igual - no registo uno que vai do sentir transmontano à acção da mão que, na cozinha, transfigura inertes promessas em realizados gestos de amor gastronómico - Justa Nobre, foi apresentado o próximo Festival do Butelo e das Casulas de Bragança 2014, que hoje se inicia, prolongando-se por todo o fim de semana.
Comum à dos vizinhos concelhos de Vinhais, Vimioso, Miranda do Douro e Mogadouro- e que com eles constitui a Terra Fria Transmontana, território de feros Invernos e deslumbrantes paisagens - , a gastronomia do concelho de Bragança é bem espelho da adaptação das suas gentes às condições edafoclimáticas e aos produtos disponíveis.
Os longos e duros Invernos promoveram uma cultura de preservação dos alimentos, traduzida na miríade de variantes de enchidos, dos quais o butelo será porventura o menos conhecido, porventura por ser constituído pelas menos gastronomicamente reconhecidas partes do nobre e bísaro reco - ossos da suã ou espinhaço ainda com alguma carne agarrada e eventualmente algumas costelas em pedaços - enchendo a bexiga ou o bucho. De todo o porco se faz regalo, de todo o porco se ganha alimento.
Também conhecido por "chouriço de ossos", o Butelo (ou botelo) é protegido por classificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP) se oriundo da vizinha Vinhais. Mas seja de Vinhais ou de Bragança é um manjar delicioso, pelo sabor e pelo prazer de ir chupando cada ossinho, qual chupa-chupa prenhe de sabores de fumeiro, da nunca por demais gordurenta carne porcina e do colagénio da medula da espinha.
Segundo Virgílio Gomes, era a época do Carnaval a mais usual no consumo destes enchidos mais tardios da matança do porco, religiosamente acompanhados pelas "cascas", feijão seco na vagem (mais um elemento conservado nos estivais dias de fartura para o recolhimento invernal).
Ainda o Carnaval não chegou, e já temos direito ao petisco!
É de ir, num pulo, a Bragança (e já não são nove horas de distância, Maria!): há muitos restaurantes de prevenção, é só consultar a lista.
Louvor à Confraria do Butelo e da Casúla que pela preservação desta tradição gastronómica muito tem feito, louvar à Câmara Municipal de Bragança pela organização do Festival, louvor ainda às palavras sábias do Professor Adriano Moreira, no final do jantar, em defesa da interioridade, única salvação possível para um país onde a progressiva litoralização tem retirado ânimo, identidade e riqueza. Louvor a Justa Nobre que, na capital, desde sempre tem - e muito bem - embaixado os modos e os sabores gastronómicos da sua terra de origem.
A Bragança, pois.
(1) -(Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso)
Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove... E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai, o perfume das graças dadas por alma dos que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou da Índia.» (1)
Em casa de sua igual - no registo uno que vai do sentir transmontano à acção da mão que, na cozinha, transfigura inertes promessas em realizados gestos de amor gastronómico - Justa Nobre, foi apresentado o próximo Festival do Butelo e das Casulas de Bragança 2014, que hoje se inicia, prolongando-se por todo o fim de semana.
Os longos e duros Invernos promoveram uma cultura de preservação dos alimentos, traduzida na miríade de variantes de enchidos, dos quais o butelo será porventura o menos conhecido, porventura por ser constituído pelas menos gastronomicamente reconhecidas partes do nobre e bísaro reco - ossos da suã ou espinhaço ainda com alguma carne agarrada e eventualmente algumas costelas em pedaços - enchendo a bexiga ou o bucho. De todo o porco se faz regalo, de todo o porco se ganha alimento.
Também conhecido por "chouriço de ossos", o Butelo (ou botelo) é protegido por classificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP) se oriundo da vizinha Vinhais. Mas seja de Vinhais ou de Bragança é um manjar delicioso, pelo sabor e pelo prazer de ir chupando cada ossinho, qual chupa-chupa prenhe de sabores de fumeiro, da nunca por demais gordurenta carne porcina e do colagénio da medula da espinha.
Segundo Virgílio Gomes, era a época do Carnaval a mais usual no consumo destes enchidos mais tardios da matança do porco, religiosamente acompanhados pelas "cascas", feijão seco na vagem (mais um elemento conservado nos estivais dias de fartura para o recolhimento invernal).
Ainda o Carnaval não chegou, e já temos direito ao petisco!
É de ir, num pulo, a Bragança (e já não são nove horas de distância, Maria!): há muitos restaurantes de prevenção, é só consultar a lista.
Louvor à Confraria do Butelo e da Casúla que pela preservação desta tradição gastronómica muito tem feito, louvar à Câmara Municipal de Bragança pela organização do Festival, louvor ainda às palavras sábias do Professor Adriano Moreira, no final do jantar, em defesa da interioridade, única salvação possível para um país onde a progressiva litoralização tem retirado ânimo, identidade e riqueza. Louvor a Justa Nobre que, na capital, desde sempre tem - e muito bem - embaixado os modos e os sabores gastronómicos da sua terra de origem.
A Bragança, pois.
(1) -(Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso)
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