Artes Culinárias 2.0 - Num Inverno solarengo...


Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa.

Quarta-feira, a las trece en punto de la tarde, segunda apresentação da turma de Culinary Arts do Chef Nuno Diniz.

Um aperitivo, porque não? Dar um tempo ao tempo primaveril que assaltou a cidade farta de águas-mil, desfrutar a luz prometedora a invadir a sala com toda a licença e pensar na série de preparações tradicionais quase a sair.



(É curioso, assistir a este contraste entre a juventude plena de quem prepara e quem serve e a ancestralidade do que é servido. E prometedor de um futuro assegurado.)

Papas de Abóbora com Barriga de Porco (Tomar)

[Confesso a minha ignorância. Papas doces, conhecia, fatias de Tomar, claro, o ex-libris nabantino (talvez, numa das provas, a equipa nos presenteie com estas, panela típica e tudo), papas como sopa... não. Posteriormente, encontrei uma referência, sem menção de origem, que incluía farinha de milho, o que me pareceu próximo do degustado.

(Note to self: não deixar sair o Chef sem lhe cuscuvilhar os pormenores desconhecidos das preparações oferecidas)

Quanto à descoberta, foi...]

Olho. Torno a olhar, aproximo a cara, fecho os olhos. Inspiro. Invade-me um odor de carnes fumadas, de carnes fritas, transportando-me à memória de outras experiências. Estou em Portugal. Sou Portugal-ês.

Doce e salgada. Macia e estaladiça. Coma uma sopinha, menino, para lhe abrir o apetite.




(Abriu. Oh, como abriu.)


Mão de Vaca com Grão (Malveira)

A região saloia, a Norte de Lisboa, constituía-se como abastecedora da capital, não só dos celebrados legumes, como do leite consumido, comprado directamente do produtor, das vacas trazidas diariamente à cidade.

(Colecção Marina Tavares Dias ; pag Facebook da autora)

A Malveira era quase o epicentro dessa região, fornecedora de alimentos e de temas para o anedotário chique-tremelique da cidade em pose. Como o de um dos primeiros filmes sonoros da comédia à portuguesa, "Aldeia da Roupa Branca", uma politicamente correcta - para o tempo... - apologia das virtudes camponesas, face aos vícios da cidade. Tudo com música e a beleza parte-corações da muito jovem Beatriz Costa que cantava,

"As princesas da cidade, oh, ai! / São bonequinhas de armar / Só a nossa “colidade” / É de lavar e durar (...) Nossos braços são quentinhos, oh ai! / Têm força para abraçar / E nos peitos redondinhos / Pode um homem descansar (...) Não temos bocas pintadas, oh ai! / Não temos a carne mole / “Semos” desenxovalhadas / E crestadas pelo sol"

Para lavar e durar ficou também a robusta cozinha local, a "colidade" a garantir lugar na memória dos homens. Comida de aproveitamento, que a vaca era animal caro - e raro no matadouro que a vida era longa, a produzir leite - e nada se podia desperdiçar.


Documentário sobre comida tradicional resultante de recolhas efectuadas em comunidades locais 
destes concelhos da zona Oeste de Portugal.
Realização de Filomena Sousa e José Barbieri.
Produção de Memória Imaterial CRL para o projecto MEMORIAMEDIA.
Apoio: IELT/FCSH-UNL e Proder.

Quanto à versão apresentada... ah, o aroma... Ah, o aroma! Pobre de quem a achar comida pobre!...



Muito bem confeccionada, duplamente respeitosa - dos modos e dos convivas - que pedaço de saloia nos coube em fortuna provar!


Bacalhau à Narcisa (Braga)

Criado num restaurante de Braga, ganhou fama a sua preparação, de tal modo que levou à criação de "marca" e, consequentemente, à criação de nomes alternativos - "à Minhota", "à Braga". Escrevem que a autora se chamava Eusébia, mas da Narcisa ficou.

A casa mãe, uma tasca inaugurada em 1930,  fechou há 3 anos, após pressão da ASAE, desgostada com o mau estado da cozinha e casas-de-banho. O bacalhau esse, fez-se visitante do país.


Haveria de causar celeuma, nas redes sociais, esta "ousadia" de transformar a cor da cebola. Purismos de quem se habituou a calibrar o mundo pelo seu umbigo, mas importantes para a bem-vinda reflexão sobre o conceito e o uso das cozinhas regionais. Na impossibilidade de uma fixação pelo autor - já que, para cada preparação, ele é muitos e de proveniência contínua ao longo de séculos - a nós, venerados amantes, cabe entender-lhe o elenco principal e a preparação. O primeiro deve-se à origem ou ao poiso definitivo (e leia-se "temporariamente" definitivo); a segunda é a que dá característica única à sua existência.

Veja-se o caso deste prato: o que é que o caracteriza? A fritura, em azeite, dos seus componentes, em primeiro lugar; a conjugação - comum a muitas outras, mas igualmente importante -, de bacalhau, batata, cebola e salsa.

Duas postas, uma posta, um batatal? Bacalhau mais folheado, cebola mais clara? Cada um sabe de si e a arte sabe de alguns...

Pessoalmente, o contraste de tons agradou-me, bem como a opção pela cebola roxa, menos agressiva, o doce ligeiramente mais acentuado em relação à congénere branca, o que beneficia o encontro com o salgado do bacalhau.

A fritura é uma solução gulosa - nos salgados, os fritos são uma gulodice - ainda que de textura áspera, amenizada aqui pelo pouco grau da mesma nas batatas (que ficaram suaves, sob o crocante superficial) e mesmo na posta.

Boa aposta.


Chanfana (Vila Nova de Poiares)

Amadrinhada pela Mordomo-Mor da Confraria da Chanfana, Madalena Carrito, seguiu-se a mais tradicional das maneiras de desgastar a tradicional rigidez da cabra velha. Chamam os poiarenses à sua terra a "Capital Universal da Chanfana" a qual, conjuntamente com o Arroz de Bucho e os Negalhos (pode-se metê-los em cunha numa das próximas investidas culinárias pela região Centro?) constitui o núcleo célebre da gastronomia do concelho.

À velha cabra junta-se vinho tinto, banha de porco, colorau, louro, alho e piri-piri, assando-se em forno. É simples de descrever e complexo no provar.

Servida nas tradicionais caçoilas de barro preto de Olho Marinho, acompanhada por grelos excelentes de amargor e de boa cozedura, uma semi-batata para deixar ainda espaço para a sobremesa, ultrapassou a equipa com valor a resistência aposta que precisou de mais de 5 horas de forno para ceder.



Pão de Rala (Évora)

A ele se refere o decano da divulgação culinária em Portugal (sim, o Chefe Tele Culinária Silva) como "a sobremesa mais típica e querida de região de Évora, onde a doçaria é de se perder a cabeça", não faltando "nos bons casamentos, nas festas e à mesa dos ricos".

Situa Alfredo Saramago a sua origem no convento de Santa Helena do Calvário, em Évora, secularizado em 1889, após o falecimento da sua última abadessa. Tinha companhia com direito a título - "com azeitonas", sendo estas uma provocação, feitas com açúcar e amêndoa ralada e tingidas com cacau.

Ter-se-à a receita escapulido então pelas mãos de uma antiga serviçal ou já teria caído em domínio secular nos desistentes anos de morte anunciada que se seguiram ao decreto de Joaquim António de Aguiar? Ou sairia para o mundo via convento de Santa Clara, o qual possuía uma receita da mesma desde, pelo menos, 1729?

Dúvidas históricas à parte, a receita fez-se popular e tradicional. Tão tradicional e tão alentejana que Maria Odete Cortes Valente a descobre em Beja, com poucas diferenças em relação à propalada pelas santas monjas.

Uma massa de açúcar, gemas e amêndoa ralada, recheada com doce de gila, fios de ovos e ovos moles que, nos tempos que correm de tantos receios dietéticos, o Chef decidiu amenizar, servindo-o em pãezinhos individuais, acompanhados com um gelado de hortelã. Heresia ou consciência profissional?

Naturalmente a segunda.



Na próxima Quarta, há mais.

Restaurante da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa
Rua Saraiva de Carvalho, nº 41
1269- 099 Lisboa
Tel: 00 351 211 148 900 ; Reservas - ana.luisa@turismodeportugal.pt 

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