Artes Culinárias 3.0 - Alourados, cerejadas e tigeladas
E, à terceira, tive uma epifania: aqui, a cozinha regional, para além de lhes ensinar o mundo à maneira do rectângulo, alavanca-lhes a criatividade e evita que a audácia lhes saia gratuita. (Diniz 2014:03)
Evangelhos à parte, foi um almoço de tese (pronto, vou deixar de tentar ser erudito), uma sequência de pratos em que os cozinheiros se soltaram um pouco mais, se preocuparam em ir mais longe na construção visual do prato, em que parecem ter começado a perceber a diferença entre respeito e seguidismo, entre estagnação e coerência.
Oh, I like that.
(If you pardon my french.)
Couves de Pelão (Foz do Cobrão)
Antes do Cobrão, Cardigos, o rio Ocreza e o Pinhal Interior (newsflash: ou o Médio Tejo), ganhem só um bocadinho a olhar para estes jaquins (de espinha dura, segundo nos avisaram; de espinha caída, pareceu-me a mim, como todos nós, europeus, a olhar para as notícias que chegam, eventualmente filtradas, do mar Negro): a contemporaneidade vive disto, deste olhar que é do presente, sobre processos centúrios. Possível diferença entre o enfardar (no meu caso, comer com apetite) e o saborear; comer para além dos sentidos - comer com a memória, comer com as respostas com que o cérebro interpreta a disposição do prato (os peixes estão depositados sobre uma cama de algas? porquê um círculo de migas e não uma forma rectangualr, o que me lembra a cabeça de peixe sobre um fundo escuro - um escudo, um símbolo? vêm os peixes alimentar-se das escamas de flor de sal? e o quarto de limão - um sol, um quarto crescente? - ilumina a cena? sublinha o momento?); ver o mesmo de um outro modo - o que implica, não ver a mesma coisa.
Voltando à região. Conforme de onde se comece a olhar - ou conforme o nosso interesse, podemos falar de couves à moda de, ou de migas de, ou ainda de feijão à.
Cardigos, que nos levará ao patamar lambuzeiro, no final da refeição, tem por receita tradicional um acompanhamento de couve migada, passada em azeite aromatizado com alho, juntamente com broa esfarelada e feijão vermelho. Interior profundo, de mesa de poucas posses, limitada em muitos aos produtos que a terra concedia, ao peixe de rio, à eventual peça brava, apanhada em armadilhas ou à força de chumbo. De enchidos - maranhos - e doçarias - as tigeladas que apareceriam a fechar a refeição.
É também uma lição, transformar os recursos possíveis em recursos desejados - não é uma beleza de contenção este prato, de como, a partir de pouco, se pode muito pensar?
Não nos esqueçamos, no entanto de que, para além das memórias e do encanto, um prato começa por ser... comida. E estes carapauzinhos estavam assim (gesto apelativo com as mãos), de ser comidos com os dedos (há outra maneira de os comer?), o interior húmido, em surpresa gustativa protegida pelo crocante exterior. Sem guitarra nem viola para acompanhar, mas muito bem acompanhados. Há mais?
Para os curiosos, uma colecção de receitas locais, da freguesia da Sobreira Formosa.
Coelho Frito Alourado (Monforte)
"Tem de se ter respeito pela cozinha tradicional portuguesa", acabo de ouvir, em anúncio televisivo para novo episódio do mais recente reality show.
Pergunto-me qual será o conceito subjacente ao tal excelentíssimo respeito, relembrando Alexandre O'Neill que, na penúria do país da outra senhora, resumiu: "neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso".
Ter-se-à assegurado o respeitinho, neste coelho frito - prazenteiramente frito pelo cúmplice azeite que o deixou crocante - canonicamente aos modos dos ganhões de Monforte mas com uma disposição em prato que o situe bem no presente? Ou ter-se-à elevado o patamar a partir da tradicional maneira?
Ah, o umami daqueles cogumelos, pedaços de terra, pedaços de céu.
Receitas originais, no site da JFreguesia
Bacalhau à Lagareiro (Porto Novo)
Receita originária das Beiras, espraiou-se pelo país, sendo "típica de muitos lados". Basicamente, é bacalhau em posta assado no forno em azeite aromatizado com alho. O Chefe Diniz recuperou uma variante do restaurante da praia de Porto Novo, onde se fazia em lascas, o que permite
a obtenção de uma emulsão de azeite em água em que os agentes emulsionantes são os alhos e a gelatina contida no colagénio do tecido conjuntivo do bacalhau (nota: a utilização da pele, com 75% de colagénio, é especialmente favorável a esta preparação).
Algo como os bascos fazem no seu tradicional bacalao pil-pil, aqui em lascas, lá em posta. Questão de temperatura de execução e de gosto.
A apresentação, mais perto da imagem tradicional, um sabor apreciável.
Galinha Cerejada (Estói)
Pronto, eu confesso: o meu subconsciente ainda não desistiu de acrescentar cerejas à galinha, sempre que leio uma referência a este prato. Ao contrário da nunca-cansa-apesar-de-tanto-ser-citada Madalena de Proust, a minha cereja nunca existiu e, no entanto, passa a vida a intrometer-se na minha memória e a dizer presente neste prato algarvio. Ora, cerejas!, "cerejada" é uma alusão à cor avermelhada que a pele do galiináceo adquire, depois de bem frita, em banha e alho.
Ainda que - honra lhes seja feita - à galinha não lhe vá mal um molho agridoce de cereja. Argumento para outras histórias que não estas, a caminho de Estoi que vamos,
e da sua galinha tradicional com cores de revolucionária.
Servida canonicamente com arroz feito no caldo de cozedura da galinha. chouriço e toucinho, um belo naco, sem golpe de asa, mas também sem falhas aparentes.
Tigelada (Cardigos)
Voltando a Cardigos e à sua receita mais emblemática.
Novamente a vontade de - não tentando melhorar o que a experiência dos séculos bem fixou - aprimorar uma proposta de sobremesa. Porque não complementar texturas, sabores, ganhar visualidade a partir do que, por si só, seria um "naco" de doce? Esta pareceu-me a pergunta subjacente à apresentação.
Areias de Cascais, em versões íntegra e desintegrada, lemon curd - o ácido e a frescura a aligeirar tanto ovo.
Prato a relembrar-nos o carácter escolar do almoço, no seu sentido mais nobre - o de aprender perguntando e arriscando respostas. "There are those who look at things the way they are, and ask why... I dream of things that never were, and ask why not?" (com uma chapelada a Robert Kennedy)
E, já na próxima Quarta, 26, há mais.
Evangelhos à parte, foi um almoço de tese (pronto, vou deixar de tentar ser erudito), uma sequência de pratos em que os cozinheiros se soltaram um pouco mais, se preocuparam em ir mais longe na construção visual do prato, em que parecem ter começado a perceber a diferença entre respeito e seguidismo, entre estagnação e coerência.
Oh, I like that.
(If you pardon my french.)
Couves de Pelão (Foz do Cobrão)
Antes do Cobrão, Cardigos, o rio Ocreza e o Pinhal Interior (newsflash: ou o Médio Tejo), ganhem só um bocadinho a olhar para estes jaquins (de espinha dura, segundo nos avisaram; de espinha caída, pareceu-me a mim, como todos nós, europeus, a olhar para as notícias que chegam, eventualmente filtradas, do mar Negro): a contemporaneidade vive disto, deste olhar que é do presente, sobre processos centúrios. Possível diferença entre o enfardar (no meu caso, comer com apetite) e o saborear; comer para além dos sentidos - comer com a memória, comer com as respostas com que o cérebro interpreta a disposição do prato (os peixes estão depositados sobre uma cama de algas? porquê um círculo de migas e não uma forma rectangualr, o que me lembra a cabeça de peixe sobre um fundo escuro - um escudo, um símbolo? vêm os peixes alimentar-se das escamas de flor de sal? e o quarto de limão - um sol, um quarto crescente? - ilumina a cena? sublinha o momento?); ver o mesmo de um outro modo - o que implica, não ver a mesma coisa.
Voltando à região. Conforme de onde se comece a olhar - ou conforme o nosso interesse, podemos falar de couves à moda de, ou de migas de, ou ainda de feijão à.
Cardigos, que nos levará ao patamar lambuzeiro, no final da refeição, tem por receita tradicional um acompanhamento de couve migada, passada em azeite aromatizado com alho, juntamente com broa esfarelada e feijão vermelho. Interior profundo, de mesa de poucas posses, limitada em muitos aos produtos que a terra concedia, ao peixe de rio, à eventual peça brava, apanhada em armadilhas ou à força de chumbo. De enchidos - maranhos - e doçarias - as tigeladas que apareceriam a fechar a refeição.
É também uma lição, transformar os recursos possíveis em recursos desejados - não é uma beleza de contenção este prato, de como, a partir de pouco, se pode muito pensar?
Não nos esqueçamos, no entanto de que, para além das memórias e do encanto, um prato começa por ser... comida. E estes carapauzinhos estavam assim (gesto apelativo com as mãos), de ser comidos com os dedos (há outra maneira de os comer?), o interior húmido, em surpresa gustativa protegida pelo crocante exterior. Sem guitarra nem viola para acompanhar, mas muito bem acompanhados. Há mais?
Para os curiosos, uma colecção de receitas locais, da freguesia da Sobreira Formosa.
Coelho Frito Alourado (Monforte)
"Tem de se ter respeito pela cozinha tradicional portuguesa", acabo de ouvir, em anúncio televisivo para novo episódio do mais recente reality show.
Pergunto-me qual será o conceito subjacente ao tal excelentíssimo respeito, relembrando Alexandre O'Neill que, na penúria do país da outra senhora, resumiu: "neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso".
Ter-se-à assegurado o respeitinho, neste coelho frito - prazenteiramente frito pelo cúmplice azeite que o deixou crocante - canonicamente aos modos dos ganhões de Monforte mas com uma disposição em prato que o situe bem no presente? Ou ter-se-à elevado o patamar a partir da tradicional maneira?
Ah, o umami daqueles cogumelos, pedaços de terra, pedaços de céu.
Receitas originais, no site da JFreguesia
Bacalhau à Lagareiro (Porto Novo)
Receita originária das Beiras, espraiou-se pelo país, sendo "típica de muitos lados". Basicamente, é bacalhau em posta assado no forno em azeite aromatizado com alho. O Chefe Diniz recuperou uma variante do restaurante da praia de Porto Novo, onde se fazia em lascas, o que permite
- entra a ciência gastronómica -
a obtenção de uma emulsão de azeite em água em que os agentes emulsionantes são os alhos e a gelatina contida no colagénio do tecido conjuntivo do bacalhau (nota: a utilização da pele, com 75% de colagénio, é especialmente favorável a esta preparação).
Algo como os bascos fazem no seu tradicional bacalao pil-pil, aqui em lascas, lá em posta. Questão de temperatura de execução e de gosto.
A apresentação, mais perto da imagem tradicional, um sabor apreciável.
Galinha Cerejada (Estói)
Pronto, eu confesso: o meu subconsciente ainda não desistiu de acrescentar cerejas à galinha, sempre que leio uma referência a este prato. Ao contrário da nunca-cansa-apesar-de-tanto-ser-citada Madalena de Proust, a minha cereja nunca existiu e, no entanto, passa a vida a intrometer-se na minha memória e a dizer presente neste prato algarvio. Ora, cerejas!, "cerejada" é uma alusão à cor avermelhada que a pele do galiináceo adquire, depois de bem frita, em banha e alho.
Ainda que - honra lhes seja feita - à galinha não lhe vá mal um molho agridoce de cereja. Argumento para outras histórias que não estas, a caminho de Estoi que vamos,
Servida canonicamente com arroz feito no caldo de cozedura da galinha. chouriço e toucinho, um belo naco, sem golpe de asa, mas também sem falhas aparentes.
Tigelada (Cardigos)
Voltando a Cardigos e à sua receita mais emblemática.
Novamente a vontade de - não tentando melhorar o que a experiência dos séculos bem fixou - aprimorar uma proposta de sobremesa. Porque não complementar texturas, sabores, ganhar visualidade a partir do que, por si só, seria um "naco" de doce? Esta pareceu-me a pergunta subjacente à apresentação.
Areias de Cascais, em versões íntegra e desintegrada, lemon curd - o ácido e a frescura a aligeirar tanto ovo.
Prato a relembrar-nos o carácter escolar do almoço, no seu sentido mais nobre - o de aprender perguntando e arriscando respostas. "There are those who look at things the way they are, and ask why... I dream of things that never were, and ask why not?" (com uma chapelada a Robert Kennedy)
E, já na próxima Quarta, 26, há mais.
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