Tenho um bicho no meu queijo!

Extra! Extra! Um cão mordeu um homem!!!

Hum... Não.

Extra!!! Extra!!! No fabrico do queijo são utilizados organismos vivos - bactérias, fungos!!!

Hum... Também não. Nada de especialmente relevante para o bocejante leitor, mais interessado na profundidade do aroma de um Azeitão, no tempo de cura de um São Jorge ou na filagranada geografia superficial do chèvre do amigo Adolfo Henriques.

(Bactérias produtoras de ácido láctico são adicionadas ao leite morno para elevar a sua acidez e assim permitir que o posteriormente adicionado coalho provoque a agregação da caseína. Será esta rede proteica, onde gordura e soro ficam aprisionados que, depois de agregada e prensada de modo a expulsar este último, depois de cozida e salgada, sofrerá um processo de cura, originando o queijo. Processo que consiste na desagregação das complexas moléculas orgânicas originais - lactose em ácido láctico e dióxido de carbono, gorduras em ácidos gordos, proteínas em aminoácidos - originando, cada um destes processos uma multitude de moléculas de sabor e cheiro e que é da responsabilidade das enzimas presentes nas bactérias iniciais e nos organismos especialmente adicionados (ou presentes) para esse fim nos locais de cura (câmaras ou caves, por exemplo) os quais, na esmagadora maioria dos casos são uma variedade de bolor.
Levou mais tempo a escrever este parágrafo do que a adormecer quem o tentou ler, Bof.)

Mas e se, como o Markl que mordeu o cão, queijos houvesse que fossem curados, não pela acção de bolores, mas de seres vivos (sim, bichos!)?

Ah sim, isso poderia ser gastronotícia (está bem, de rodapé, nem de polichinelo segredo é). E há? Há.

Ah.

Até informação em contrário, descobri três: dois pela acção de ácaros, um pela intervenção de larvas. E antes que a vossa imaginação europeia os comece a situar em lugares de "exótica" perspectiva gastronómica, devo acrescentar que são queijos europeus, provenientes de três das mais conceituadas pátrias da produção queijeira mundial - França, Alemanha, Itália.

Ácaros do queijo
(Fonte: Wikipedia)
Para começar, o Mimolette, venerando queijo de vaca francês, com um processo de fabricação que data do século XVII, sendo na origem a versão do Edam holandês. De forma esférica, cor laranja, vendido com um envelhecimento ideal de dezoito meses (ainda que também sejam comercializados exemplares com 6 meses de cura, como um bom vinho, o seu sabor evolui com a cura, ganhando profundidade e complexidade).

Em caves húmidas, os exemplares envelhecem, cobertos de ácaros. Regularmente, técnicos limpam a superfície de cadáveres e excrementos (... continuam interessados em experimentar o seu sabor?), garantindo a continuidade do processo.

Belo Mimolette, saboroso Mimolette. Um mimo, este Mimolette.

Mimolette (Fonte: Wikipedia)
Muito menos conhecido - muito menos difundido - é o Milbenkäse. Escondido nas profundezas (aldeia de Würchwitz) da Alemanha Oriental (alguém ainda se recorda dessa excrescência da 2ª Guerra Mundial, esse segundo paraíso terrestre, que juntava a perfeição marxista à eficiência germânica?) até à extinção de uma e quase à própria extinção, este queijo que mantém práticas que datam pelo menos da Idade Média, vive num limbo de semi-legalidade, entalado entre a omissão da legislação alemã que, não os proibindo, também não permite explicitamente o uso de ácaros como aditivos no fabrico de queijo e uma licença local especial que autoriza a produção.

Milbenkäse
(Fonte: Wikipedia)
O processo de manufactura, artesanal, passa pela colocação, por um período mínimo de três meses, de pedaços, esféricos ou cilíndricos, de coalho seco aromatizado com alcaravia (caraway) em caixas de madeira contendo farinha de centeio e ácaros da espécie Tyriglyphus casei. Os sucos digestivos dos ácaros penetram o coalho causando a sua fermentação.

A côr vermelho-acastanhada torna-se progressivamente mais escura se prolongado o tempo de cura. O seu sabor é forte, com uma nota amarga e um aftertaste picante. Não há notícia de indigestões ou alergias. Aos ácaros. Já à ideia de os comer ou saborear os seus excrementos...

No caso do  Casu marzu, é a acção de larvas da mosca do queijo que é responsável pelo flavour final. Queijo mais perseguido que contribuinte em zona de intervenção da troika, mais proibido que facturas sem nif do cliente, mais desagradável para a maioria dos consumidores que as cartas do fisco recebidas em nome próprio, mantém as larvas vivas no seu interior na altura da degustação o que poderá colocar à distância mesmo o apreciador de queijo mais intrépido. Uma coisa é enfrentar os habituais pungentes odores e agressivos flavours; outra, ver-se obrigado a comer uma sandes mista quando se pediu uma de queijo bem aviada...

Quem não recuou foi o Andrew Zimmern que, atravessando meia Sardenha, nos ofereceu o relato num dos episódios do seu Bizarre Foods:




E fazem mal, estes queijos?

Fazem.

Aos puristas norte-americanos que, a par dos queijos de leite cru, consideram persona non grata queijos que apresentem organismos ainda vivos na sua composição.

Aos burocratas higienistas da União Europeia que disparam sobre tudo o que não seja bacteriologicamente mais puro do que a Água do Luso.

Ah, sim. E àquele paciente do Dr. House que, já não sei em qual episódio, se empanturrou numa prova de queijos e lhe serviu de pretexto para mais uma exibição de brilhantismo pedante.

Aos outros, a nós, não me parece. Não é como se os comêssemos todos os dias a todas as refeições. Isso fazemos com as tele-notícias e ainda por aqui andamos.

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