Sexta-feira Santa
Neste quase meio século (os primeiros três não contam para a memória) de experiências, poucos dias, como este, ficaram tão marcados pela violência positiva das sensações vividas.
Sim, falo de sensações provocadas pela experiência gastronómica, sim, falo prosaicamente de - como dizem desdenhosamente os espíritos superiormente superiores que apenas consideram tema maior a gestão bancária, industrial ou política deste país - comida.
Não. Não falo "de comida".
Falo das consequências de cumprir uma das duas elementares operações de sobrevivência que a nós a organização das coisas reservou. Falo do prazer atingido pela acção do saboreado, cheirado, retronasalado, invocado, memorializado, tocado. Falo do presente e do passado, juntos, em interacção, emoção e razão em corrida desenfreada.
Dois pratos, dois caminhos aparentemente diversos de chegar ao mesmo fim, aquele mítico "respeito pelo produto" que, de tão falado, já enjoa ouvir mas que aqui atinge a perfeição.
Raramente - para não dizer nunca - fui brindado com uma tão certa arte de concentrar numa preparação culinária a enorme proeza de me emocionar até às lágrimas. De - apesar de tantas refeições em que me senti a caminho do paraíso, apesar de tantos pratos deleitosos - ficar dias e dias a reviver a potência dos sabores, a pele ainda arrepiada.
Quis a conjugação de vontades e decisões várias que, na passada sexta-feira, vivesse esse momento em duplicado, em dois locais separados por mais de quatrocentos quilómetros.
Deles falarei mais aprofundadamente em textos dedicados e autónomos. Hoje, porque não quero que a vida se sobreponha, deixo aqui a referência conjunta.
Primeiro, a interpretação do Bacalhau à Conde da Guarda feita pelo chefe Vítor Claro, no Claro!, já provada, já entusiasmadamente descoberta, mas que refulgiu ainda mais esplendorosamente com o tomate benzido pelo Sol estival.
Nunca a simplicidade foi tão longe, nunca tanto se ficou a dever a tão pouco, nunca tão pouco significou tanto. Uma quenelle de bacalhau, leve, quase aroma, que nunca nos deixa esquecer a consistência e a fibra do peixe, sem elas lá efectivamente estar. Uma quenelle de tomate que - como o exprimir? - é uma explosão controlada de incontrolável umami que nos faz tristemente pensar em como os nossos Invernos são tristes quando reflectidos nos insossos exemplares por todo o lado comercializados.
Apesar do prazer que proporcionou e enfatizou a boa disposição de uma mesa preenchida, é um prato que merece recolhimento para uma perfeita degustação, um ritual silencioso e à meia luz, face a face com a pessoa amada, um olhar cúmplice, mão suspensa depois de cada garfada e a outra, entrelaçando dedos, electricamente falando. Olhos a fechar, suspiro e uma nova garfada.
A Norte, paredes graníticas adentro, numa Portela só atingível pela benesse do GPS electrónico, o segundo encontro inesquecível, o segundo vulcânico milagre, a cargo da Dalila e do Renato Cunha.
Um caldo que nos aparece verde mas que não lemos como "caldo verde", até o olfactarmos - é cheiro de caldo verde, indica a memória, ainda que o cérebro continue a recusar-se a acreditar que tal estranha cor, tal contemporaneidade, tenham ligações ao que mais tradicional a nossa cozinha doméstica possui. Convidados a repetir o gesto que, num distante serão invernal pela primeira vez fizemos - a malga apoiada nas mãos em concha, expulsando o frio entranhado - aproximamos a acrílica taça dos lábios (que acentua a distância entre lembrança e realidade) e, como se assistíssemos a um filme de suspense, surge a adrenalina motivada pela dissonância entre sentido e pensado, a divergência de expectativas, entre o que se acha ir-se encontrar e o que se gostaria de encontrar.
O caldo verde do Ferrugem é o mais belo, o mais densamente povoado, o mais completo herdeiro dos aromas e sabores do original caldo. Tem a untuosidade e o picante do chouriço, a força da sua proteína (até o seu vermelho nos assalta, na multiplicidade de referências!); tem a macieza da batata e também a sua discreta acidez; e tem o verde da couve, um verde nunca atingido nas nossas cozinhas por incompatibilidade entre o ponto de cozedura e a manutenção do tom.
É a nossa infância em concentrado, servida na idade adulta. É a saudade que descobrimos dela ter, somos nós e todo o passado de todos os nossos antepassados. É o ser português, é devolver-nos ao que devemos ser.
Pronto. Disse.
Sim, falo de sensações provocadas pela experiência gastronómica, sim, falo prosaicamente de - como dizem desdenhosamente os espíritos superiormente superiores que apenas consideram tema maior a gestão bancária, industrial ou política deste país - comida.
Não. Não falo "de comida".
Falo das consequências de cumprir uma das duas elementares operações de sobrevivência que a nós a organização das coisas reservou. Falo do prazer atingido pela acção do saboreado, cheirado, retronasalado, invocado, memorializado, tocado. Falo do presente e do passado, juntos, em interacção, emoção e razão em corrida desenfreada.
Dois pratos, dois caminhos aparentemente diversos de chegar ao mesmo fim, aquele mítico "respeito pelo produto" que, de tão falado, já enjoa ouvir mas que aqui atinge a perfeição.
Raramente - para não dizer nunca - fui brindado com uma tão certa arte de concentrar numa preparação culinária a enorme proeza de me emocionar até às lágrimas. De - apesar de tantas refeições em que me senti a caminho do paraíso, apesar de tantos pratos deleitosos - ficar dias e dias a reviver a potência dos sabores, a pele ainda arrepiada.
Quis a conjugação de vontades e decisões várias que, na passada sexta-feira, vivesse esse momento em duplicado, em dois locais separados por mais de quatrocentos quilómetros.
Deles falarei mais aprofundadamente em textos dedicados e autónomos. Hoje, porque não quero que a vida se sobreponha, deixo aqui a referência conjunta.
Primeiro, a interpretação do Bacalhau à Conde da Guarda feita pelo chefe Vítor Claro, no Claro!, já provada, já entusiasmadamente descoberta, mas que refulgiu ainda mais esplendorosamente com o tomate benzido pelo Sol estival.
Nunca a simplicidade foi tão longe, nunca tanto se ficou a dever a tão pouco, nunca tão pouco significou tanto. Uma quenelle de bacalhau, leve, quase aroma, que nunca nos deixa esquecer a consistência e a fibra do peixe, sem elas lá efectivamente estar. Uma quenelle de tomate que - como o exprimir? - é uma explosão controlada de incontrolável umami que nos faz tristemente pensar em como os nossos Invernos são tristes quando reflectidos nos insossos exemplares por todo o lado comercializados.
Apesar do prazer que proporcionou e enfatizou a boa disposição de uma mesa preenchida, é um prato que merece recolhimento para uma perfeita degustação, um ritual silencioso e à meia luz, face a face com a pessoa amada, um olhar cúmplice, mão suspensa depois de cada garfada e a outra, entrelaçando dedos, electricamente falando. Olhos a fechar, suspiro e uma nova garfada.
A Norte, paredes graníticas adentro, numa Portela só atingível pela benesse do GPS electrónico, o segundo encontro inesquecível, o segundo vulcânico milagre, a cargo da Dalila e do Renato Cunha.
Um caldo que nos aparece verde mas que não lemos como "caldo verde", até o olfactarmos - é cheiro de caldo verde, indica a memória, ainda que o cérebro continue a recusar-se a acreditar que tal estranha cor, tal contemporaneidade, tenham ligações ao que mais tradicional a nossa cozinha doméstica possui. Convidados a repetir o gesto que, num distante serão invernal pela primeira vez fizemos - a malga apoiada nas mãos em concha, expulsando o frio entranhado - aproximamos a acrílica taça dos lábios (que acentua a distância entre lembrança e realidade) e, como se assistíssemos a um filme de suspense, surge a adrenalina motivada pela dissonância entre sentido e pensado, a divergência de expectativas, entre o que se acha ir-se encontrar e o que se gostaria de encontrar.
O caldo verde do Ferrugem é o mais belo, o mais densamente povoado, o mais completo herdeiro dos aromas e sabores do original caldo. Tem a untuosidade e o picante do chouriço, a força da sua proteína (até o seu vermelho nos assalta, na multiplicidade de referências!); tem a macieza da batata e também a sua discreta acidez; e tem o verde da couve, um verde nunca atingido nas nossas cozinhas por incompatibilidade entre o ponto de cozedura e a manutenção do tom.
É a nossa infância em concentrado, servida na idade adulta. É a saudade que descobrimos dela ter, somos nós e todo o passado de todos os nossos antepassados. É o ser português, é devolver-nos ao que devemos ser.
Pronto. Disse.
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