Culinary Arts 2.05 - FAT 69
Citando o ex-presidente da Assembleia da República, "cûrioso nûmero..." Mas totalmente apropriado: esta foi, nas pré-palavras do Joe Best, "uma das maiores pornografias alimentares do ano, à mesa"; uma overdose de gorduras; uma... foie des foies.
Mais uma vez - e desta vez muito mais - foi fácil esquecer estarmos perante o trabalho colectivo de uma turma de estudantes de cozinha, tal a qualidade do resultado final, o prazer proporcionado pela sua degustação, a beatífica atmosfera que se foi espraiando sala fora, à medida que cada prato era apresentado.
Bailado para boca e emoção em onze quadros, orquestra de 24 elementos sob a batuta do maestro Nuno Diniz e três solistas, Joaquim Sousa (no éclair), Eduardo Santini (no gelado de marmelo), Francisco Siopa (no bombom).
Para mim, o almoço começou mais cedo, na cozinha, por entre os gestos inusitadamente calmos da turma (For Pete's sake! Vai ser o almoço do ano e toda esta tranquilidade? Enervem-se! Gaguejem! Desesperem!), o Chefe a chamar-me a atenção para a matéria prima escolhida, a primeiríssima matéria prima a piscar-me o olho, o Rodrigo Meneses a chamar-me atenção para a matéria transformada (eu não chamava a atenção a ninguém, salivava mentalmente por antecipação), e os gesto continuavam, assertivos, concentrados, na sequência indicada: o tourchon dividido equalitariamente, círculos desbastados em quadrados, a ventresca de atum grelhada no carvão, o desafiador vermelho do interior dos pedaços da basca carne maturada da Txogitxu, a cada-vez-mais-fina massa para a massa tenra dos pasteis, a escorcioneira já despida, cortada, acertada, o mirepoix, o caldo-oh-o-caldo de carne que cheirava mundos e esperava a clarificação, o foie gras a encher-se dos aromas do escabeche, o puré portentoso de castanhas, as formas de flan, recheadas, obedientemente alinhadas no tabuleiro, capacete de prata e interior de caramelo, aguardando o calor da batalha e depois os olhares que, do outro lado, inquiriam, perscrutavam, atentamente seguiam e os amigos que chegavam e, de sorriso pronto pelo que os esperava, conversavam para lá da fronteira de vidros e, chegada a hora, debandada até à sala, deixando o silêncio, não do pós-festa mas da antecipação da mesma, o silêncio de recolhimento, como a onda perfeita que recua um pouco para, depois, cavalgar triunfante a praia, e assim chegou.
Um éclair já é um desastre triunfal à beira de acontecer: desfaz-se por pouco, evapora-se na boca, leveza concentrada para conter, e logo se desvanecer, para relevar o recheio. Que, no caso presente, era quase uma lembrança, de fácil que se desfez na língua, para logo a envolver no forte sabor do foie, a textura sugestão da massa a dar-lhe realidade. Ah.
O salmão fumado é, com toda a certeza, a mais perfeita criação nórdica, depois do Vickie. Combina em absoluto com uma fina fatia de foie. Curiosamente, não são os lípidos respectivos que sobressaem, antes os sabores complementares, o fumo, o mar. Absoluto primeiro prato, a deixar as expectativas tão altas.
Perdoou-se, pelo bem que soube, a temperatura da sopa. Lembrei-me (tão óbvio!) do Jacinto e de Tormes: rescendia, e, ainda que nos meus olhos, nem surpresa nem espanto morassem, só pude dizer: está bom!
Depois, a pura decadência. As bacantes. A aristocracia francesa em Versalhes. A Belle époque. Foi como comer manteiga à fatia, com toda a untuosidade mas sem o peso da gordura, depois trincar um pinhão, saborear mais um pedaço de ar, misturá-lo com um divino puré de castanhas, o cheiro do bosque no Outono. Um grande, grande pecado.
Tavira é a capital nacional do atum. Assim aprendi com a Susana e, até ao fim, o hei-de assim defender. Estive, portanto, em Tavira, nos dez minutos em que, parcimonioso, fui degustando este andrógeno pedaço, "em sangue", sublinhado pelo foie, contrastado pela escorcioneira. A praia do Barril, as âncoras da armação, as memórias da faina. Memória. Palato. Saber. Sabor.
E cumpriu, ainda que, com o calor, o foie tenha perdido um pouco da leveza das outras preparações. Muito boas, as emulsões (pastinaca com um toque vermelho de hibisco?, se não me falha a memória, enebriada por tanta celebração, e alho - este a contrabalançar, a provocar).
E, unfortunately last, but not in the least, as sobremesas.
Um delicioso e enganador flan, feito com caldo de galinha (espero não ter registado mal) e foie, um salgado que não se notou, tal a força da convicção dada pela aparência e a intensidade doce do gelado de marmelo. Relevância obrigatória para este: mais uma revisitação doutros tempos, os cubinhos de marmelada da meninice, consumidos ao final do dia, a caminho de casa, Duque d'Ávila afora - sem arquitecturas monolíticas, com o cego pedinte sentado nas escadas de um dos prédios do Arco Cego, a entrada discreta do cinema Aviz, a loja de brinquedos que, nas traseiras, tinha uma escondida geladaria (com entrada pela Dona Estefânia)... divago. Gelado de marmelada concentrada, obrigado, Eduardo Santini, pela criação e pela oferta.
E, para terminar, com o café, os bombons de foie do Francisco Siopa. Que belo final.
Como superar tudo isto no próximo almoço?
Mais uma vez - e desta vez muito mais - foi fácil esquecer estarmos perante o trabalho colectivo de uma turma de estudantes de cozinha, tal a qualidade do resultado final, o prazer proporcionado pela sua degustação, a beatífica atmosfera que se foi espraiando sala fora, à medida que cada prato era apresentado.
Bailado para boca e emoção em onze quadros, orquestra de 24 elementos sob a batuta do maestro Nuno Diniz e três solistas, Joaquim Sousa (no éclair), Eduardo Santini (no gelado de marmelo), Francisco Siopa (no bombom).
Para mim, o almoço começou mais cedo, na cozinha, por entre os gestos inusitadamente calmos da turma (For Pete's sake! Vai ser o almoço do ano e toda esta tranquilidade? Enervem-se! Gaguejem! Desesperem!), o Chefe a chamar-me a atenção para a matéria prima escolhida, a primeiríssima matéria prima a piscar-me o olho, o Rodrigo Meneses a chamar-me atenção para a matéria transformada (eu não chamava a atenção a ninguém, salivava mentalmente por antecipação), e os gesto continuavam, assertivos, concentrados, na sequência indicada: o tourchon dividido equalitariamente, círculos desbastados em quadrados, a ventresca de atum grelhada no carvão, o desafiador vermelho do interior dos pedaços da basca carne maturada da Txogitxu, a cada-vez-mais-fina massa para a massa tenra dos pasteis, a escorcioneira já despida, cortada, acertada, o mirepoix, o caldo-oh-o-caldo de carne que cheirava mundos e esperava a clarificação, o foie gras a encher-se dos aromas do escabeche, o puré portentoso de castanhas, as formas de flan, recheadas, obedientemente alinhadas no tabuleiro, capacete de prata e interior de caramelo, aguardando o calor da batalha e depois os olhares que, do outro lado, inquiriam, perscrutavam, atentamente seguiam e os amigos que chegavam e, de sorriso pronto pelo que os esperava, conversavam para lá da fronteira de vidros e, chegada a hora, debandada até à sala, deixando o silêncio, não do pós-festa mas da antecipação da mesma, o silêncio de recolhimento, como a onda perfeita que recua um pouco para, depois, cavalgar triunfante a praia, e assim chegou.
QUADRO 1
Éclair com Tourchon de Foie Gras
Tosta Mista de Terrina e Salmão
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Tosta Mista de Terrina e Salmão |
Tourchon de foie, usado no recheio do éclair |
QUADRO 2
Massa Tenra de Foie Gras, Tártaro de Hortaliças |
Da massa do pastel de massa tenra, cantar-se-iam loas (assim deveriam ser obrigadas a fazê-lo todas as renegadas casas de comer que o ousam vender, em detrimento dos arremedos de massa de vidraceiro que utilizam): leve, leve, leve, recordação da Lisboa antiga, afidalgada pelo conteúdo, desafiada pelo tártaro.
QUADRO 3
Sopa de Cozido entre Montalegre e Périgueux |
Está precioso!, acrescentaria, confirmando, Zé Fernandes, se companheiro fora desta refeição.
QUADRO 4
Escabeche de Foie Gras com Abóbora |
Imagine-se um tradicional carapau de escabeche: o ácido, o sentido da cebola - foi essa a primeira impressão, inspirada pela memória, que era esse prato que provava, logo escaqueirada pelo sabor do foie que irrompia, triunfal. Crudités a estruturar a leveza, o presunto a sublinhar o sabor de carne.
QUADRO 5
Foie Gras grelhado, Compota e Presunto fumado |
Mais um encontro. Um presunto de excepção, o sabor do foie, aqui mais caramelizado.
QUADRO 6
Foie Gras curado, Pinhões e Emulsão de castanhas |
QUADRO 7
Foie Gras salteado, Ventresca de Atum Rabilho, Escorcioneira, |
QUADRO 8
Foie Gras Rossini (Vaca maturada Txogitxu e Trufa preta) |
Rossini cansou-se do seu génio musical e passou a segunda parte da vida dedicado à gastronomia. Enquanto assistia à preparação desta homenagem ao mais famoso prato que lhe tomou o nome (criado por ou para o compositor), dividia-me entre a abertura do Barbeiro ou a do Guilherme Tell: sentia-a ridente, buffa, mas também grave, mas também triunfante. Empolgante, sem dúvida Tinha a força da carne maturada, a subtileza do foie, a etérea cobertura do delicado véu de batata... prometia.
E cumpriu, ainda que, com o calor, o foie tenha perdido um pouco da leveza das outras preparações. Muito boas, as emulsões (pastinaca com um toque vermelho de hibisco?, se não me falha a memória, enebriada por tanta celebração, e alho - este a contrabalançar, a provocar).
QUADRO 9
Flan de Foie Gras e Gelado de Marmelada |
Um delicioso e enganador flan, feito com caldo de galinha (espero não ter registado mal) e foie, um salgado que não se notou, tal a força da convicção dada pela aparência e a intensidade doce do gelado de marmelo. Relevância obrigatória para este: mais uma revisitação doutros tempos, os cubinhos de marmelada da meninice, consumidos ao final do dia, a caminho de casa, Duque d'Ávila afora - sem arquitecturas monolíticas, com o cego pedinte sentado nas escadas de um dos prédios do Arco Cego, a entrada discreta do cinema Aviz, a loja de brinquedos que, nas traseiras, tinha uma escondida geladaria (com entrada pela Dona Estefânia)... divago. Gelado de marmelada concentrada, obrigado, Eduardo Santini, pela criação e pela oferta.
QUADRO 10
Bombom de Foie Gras |
Como superar tudo isto no próximo almoço?
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