Via Graça: Encontro atlântico de sabores
Uma das razões porque o Acordo Ortográfico é um disparate é o ter na sua génese a tentativa de tornar uno aquilo que, apesar de idêntico na aparência, é muito diferente: a língua portuguesa interpretada, vivida, diariamente recriada por cada um dos povos que a adoptou como sua língua mãe. Como os gémeos verdadeiros, que só na aparência são iguais.
As culinárias portuguesa e brasileira, não sendo gémeas, têm familiares comuns; no entanto, ceder à tentação de, por causa dos mesmos familiares, as agregar no mesmo caldeirão de fusão, pretextando os habituais e já secantes temas náuticos renascentistas é, como o cadáver adiado do Acordo, uma desfaçatez, já tentada, aqui e ali, fruto de uma contemporaneidade lida à pressa, da lista da san pellegrino ou da ignorância do mercado, sempre ávido da novidade, mesmo que de cambalhota.
Felizmente há gente séria, dedicada, que descobre, na sua natal ou adoptada gastronomia, pontes suficientemente fortes para atravessar o Tanto Mar buarquiano e nos oferecer diálogos, duetos em que cada voz mantém as suas regras, harmonizando-se, em tons e tessituras diferentes mas complementares.
É exactamente uma dessas experiências que poderá viver quem demandar, até ao próximo dia 23 deste mês, o restaurante Via Graça: João Bandeira, o dinâmico Chefe e proprietário, desafiou o brasileiro Pablo Oazen e o resultado foi-nos apresentado em almoço recente: um menu de degustação de oito pratos, com harmonização vínica, perante o ondulante panorama da cidade histórica.
O que nele poderá encontrar o comensal?
Da parte de João Bandeira, a procura de novas associações complementares, entre matérias primas habitualmente descartadas por dissonantes mas que resultam muito bem - como os pares vieira/morcela, bacalhau/kumquat ou empada/picles - o continuado aperfeiçoamento das diversas formas de preparação do bacalhau - aqui confitado em azeite e conhaque - tudo sem perder as referências da cozinha nacional, designadamente nos sabores que, no meio das descobertas, nos vão surgindo como âncoras (o caril aporta um tom exótico mas eis que surge a conhecida morcela, os tons são cítricos mas o bacalhau é evidente, a acidez dos pickles é surpreendente mas a empada de caça logo vem afirmar a aristocracia tradicional do prato).
Já Pablo Oazen apõe o selo do seu país-continente em cada opção que apresenta, das matérias-primas aos pratos e tradições evocadas, da natal Minas Gerais ao Norte amazónico. Adaptando algumas das técnicas e soluções da gastronomia molecular, delas não se faz refém, quase que as deixando no anonimato - com excepção do espectáculo que a execução do gelado de caipirinha permite - na unidade final. Felizmente. As técnicas são - e já Adrià o defendia - carpintaria de cena, não actor principal.
Eis a sequência de pratos:
Caipi nitro, ou um gelado de caipirinha, preparado in loquo, com a ajuda do azoto liquido. Perigoso - o gelado - que não se lhe dá pelo conteúdo alcoólico...
Conversa de pé da orelha, entre o muito consumido pão de queijo (principalmente no triângulo Minas Gerais-Rio de Janeiro-São Paulo) e umas deliciosas fatias de um nobre presunto alentejano.
Prato do lado português, à marítima vieira, acentuada pela salicórnia, junta-se a interior morcela, em crumble. O caril traz-lhe um ar das Índias, sabor que tem vindo a enraizar-se no panorama português, com origem (do meu ponto de vista) na término da administração portuguesa em Goa e consequente acentuar da diáspora de muitos dos seus habitantes.
Suavidade mas também tenacidade, um prato entre o céu e a terra.
Rabada, prato popular brasileiro por excelência, herdeiro do aproveitamento histórico, pelas classes com menos posses, das partes desprezadas do animal. Feita com o rabo de boi, é prato domingueiro, que pede tempo de degustação e mais tempo ainda de jiboianço, cálice de cachaça a ajudar a digestão e paisagem tranquila - das montanhas do interior de Minas aos coqueiros indolentes do litoral.
Aqui, de uma tenrura extrema (fruto da cozedura a baixa temperatura), contrastada pelas diversas castanhas brasileiras acrescentadas pelo Chefe: caju, do Pará, baru, pequi, e com suavidade e sabor acrescidos pela adição da espuma de tubérculos.
Spotless. Garoupa de excelência, uma combinação a resultar muito bem, quiabos como nuunca os havia experimentado.
Inusitada e absolutamente conseguida confecção, um bacalhau para reservar nas memórias mais agradadas de preparações do mesmo. O sabor cítrico permanece mas não incomoda, antes acresce ao já conhecido sabor do bacallhau.
Limpa-palatos audaz, a adição da cachaça pareceu-me excessiva por o seu sabor ser difícil de desaparecer.
O sabor do pato, puxado como nunca o senti, em ligação perfeita com o crocante do cuscuz e a terra dos cogumelos.
A empada de caça de quatro peças é o prato de assinatura do Via Graça. Louvor à vontade do Chefe João de continuar a explorar novos caminhos, novas formas de expressão desta empada próxima da perfeição, aqui com o ácido dos diversos pickles a dar uma nova leitura na boca à untuosidade do recheio (perdiz, faisão, lebre, javali, cozidos separadamente para respeitar os diversos pontos de cozedura).Crocante, estaladiço, cremoso, juntos, a conversar.
Na génese desta sobremesa está uma "private joke" que nos escapa, a nós portugueses: afinal, manga e leite podem ser consumidos em conjunto! (A história começa nos tempos coloniais quando, para evitar que os escravos consumissem o escasso leite em conjunto com a abundante manga, se criou o mito urbano de que a ingestão conjunta causaria doença grave e mesmo morte.)
Mais uma vez, para além da conjugação dos sabores principais, as texturas crocantes da telha de mel e da castanha, dão corpo ao prato.
Um belo final para uma grande refeição, terminada com um café e estes crocantes de goiabada e uns brigadeiros de café.
Recomendadíssimo.
Restaurante Via Graça
Rua Damasceno Monteiro 9-B, 1170-108 Lisboa
(+351) 21 887 08 30 - 21 887 03 05
As culinárias portuguesa e brasileira, não sendo gémeas, têm familiares comuns; no entanto, ceder à tentação de, por causa dos mesmos familiares, as agregar no mesmo caldeirão de fusão, pretextando os habituais e já secantes temas náuticos renascentistas é, como o cadáver adiado do Acordo, uma desfaçatez, já tentada, aqui e ali, fruto de uma contemporaneidade lida à pressa, da lista da san pellegrino ou da ignorância do mercado, sempre ávido da novidade, mesmo que de cambalhota.
Felizmente há gente séria, dedicada, que descobre, na sua natal ou adoptada gastronomia, pontes suficientemente fortes para atravessar o Tanto Mar buarquiano e nos oferecer diálogos, duetos em que cada voz mantém as suas regras, harmonizando-se, em tons e tessituras diferentes mas complementares.
É exactamente uma dessas experiências que poderá viver quem demandar, até ao próximo dia 23 deste mês, o restaurante Via Graça: João Bandeira, o dinâmico Chefe e proprietário, desafiou o brasileiro Pablo Oazen e o resultado foi-nos apresentado em almoço recente: um menu de degustação de oito pratos, com harmonização vínica, perante o ondulante panorama da cidade histórica.
Nuno Nobre (esq) e Nuno Paisana, organizadores do almoço, ladeiam os Chefes João Bandeira e Pablo Oazen com Daniela Ventura, ao centro |
O que nele poderá encontrar o comensal?
Da parte de João Bandeira, a procura de novas associações complementares, entre matérias primas habitualmente descartadas por dissonantes mas que resultam muito bem - como os pares vieira/morcela, bacalhau/kumquat ou empada/picles - o continuado aperfeiçoamento das diversas formas de preparação do bacalhau - aqui confitado em azeite e conhaque - tudo sem perder as referências da cozinha nacional, designadamente nos sabores que, no meio das descobertas, nos vão surgindo como âncoras (o caril aporta um tom exótico mas eis que surge a conhecida morcela, os tons são cítricos mas o bacalhau é evidente, a acidez dos pickles é surpreendente mas a empada de caça logo vem afirmar a aristocracia tradicional do prato).
Já Pablo Oazen apõe o selo do seu país-continente em cada opção que apresenta, das matérias-primas aos pratos e tradições evocadas, da natal Minas Gerais ao Norte amazónico. Adaptando algumas das técnicas e soluções da gastronomia molecular, delas não se faz refém, quase que as deixando no anonimato - com excepção do espectáculo que a execução do gelado de caipirinha permite - na unidade final. Felizmente. As técnicas são - e já Adrià o defendia - carpintaria de cena, não actor principal.
Eis a sequência de pratos:
Caipi Nitro + Snacks
Caipi nitro, ou um gelado de caipirinha, preparado in loquo, com a ajuda do azoto liquido. Perigoso - o gelado - que não se lhe dá pelo conteúdo alcoólico...
Caviar de quiabo
Ketchup "mineiro", de goiaba
Gostei muito da complementaridade entre as asas de frango e os cubos de queijo da ilha com tapioca, da alusão subtil à clássica sobremesa mineira Romeu e Julieta (queijo de Minas e goiabada), da subtileza do "caviar". Resposta sólida dos snacks à tentação etérea da caipirinha, Ground control to Major Tom...
Pão de Queijo + Pata Negra
Conversa de pé da orelha, entre o muito consumido pão de queijo (principalmente no triângulo Minas Gerais-Rio de Janeiro-São Paulo) e umas deliciosas fatias de um nobre presunto alentejano.
Vieiras coradas, ar de caril e crumble de morcela
Prato do lado português, à marítima vieira, acentuada pela salicórnia, junta-se a interior morcela, em crumble. O caril traz-lhe um ar das Índias, sabor que tem vindo a enraizar-se no panorama português, com origem (do meu ponto de vista) na término da administração portuguesa em Goa e consequente acentuar da diáspora de muitos dos seus habitantes.
Suavidade mas também tenacidade, um prato entre o céu e a terra.
Terrina de rabada, castanhas brasileiras e espuma de tubérculos
Rabada, prato popular brasileiro por excelência, herdeiro do aproveitamento histórico, pelas classes com menos posses, das partes desprezadas do animal. Feita com o rabo de boi, é prato domingueiro, que pede tempo de degustação e mais tempo ainda de jiboianço, cálice de cachaça a ajudar a digestão e paisagem tranquila - das montanhas do interior de Minas aos coqueiros indolentes do litoral.
Aqui, de uma tenrura extrema (fruto da cozedura a baixa temperatura), contrastada pelas diversas castanhas brasileiras acrescentadas pelo Chefe: caju, do Pará, baru, pequi, e com suavidade e sabor acrescidos pela adição da espuma de tubérculos.
Peixe do dia, puré de bananas caramelizadas e quiabos tostados
Spotless. Garoupa de excelência, uma combinação a resultar muito bem, quiabos como nuunca os havia experimentado.
Bacalhau confitado em azeite e conhaque, mousseline de cítricos e verduras
Inusitada e absolutamente conseguida confecção, um bacalhau para reservar nas memórias mais agradadas de preparações do mesmo. O sabor cítrico permanece mas não incomoda, antes acresce ao já conhecido sabor do bacallhau.
Abacate – Limão – Cachaça
Limpa-palatos audaz, a adição da cachaça pareceu-me excessiva por o seu sabor ser difícil de desaparecer.
Pato, cuscuz de canjiquinha e tucupi
O sabor do pato, puxado como nunca o senti, em ligação perfeita com o crocante do cuscuz e a terra dos cogumelos.
Fusão de caça com a agressividade dos picles de legumes
A empada de caça de quatro peças é o prato de assinatura do Via Graça. Louvor à vontade do Chefe João de continuar a explorar novos caminhos, novas formas de expressão desta empada próxima da perfeição, aqui com o ácido dos diversos pickles a dar uma nova leitura na boca à untuosidade do recheio (perdiz, faisão, lebre, javali, cozidos separadamente para respeitar os diversos pontos de cozedura).Crocante, estaladiço, cremoso, juntos, a conversar.
Serpa DOP, agrião e abóbora
Manga – Coalhada – Mel
Na génese desta sobremesa está uma "private joke" que nos escapa, a nós portugueses: afinal, manga e leite podem ser consumidos em conjunto! (A história começa nos tempos coloniais quando, para evitar que os escravos consumissem o escasso leite em conjunto com a abundante manga, se criou o mito urbano de que a ingestão conjunta causaria doença grave e mesmo morte.)
Mais uma vez, para além da conjugação dos sabores principais, as texturas crocantes da telha de mel e da castanha, dão corpo ao prato.
Um belo final para uma grande refeição, terminada com um café e estes crocantes de goiabada e uns brigadeiros de café.
Recomendadíssimo.
Restaurante Via Graça
Rua Damasceno Monteiro 9-B, 1170-108 Lisboa
(+351) 21 887 08 30 - 21 887 03 05
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