Leopold: o minimalismo da perfeição
Gosto pouco de usar exemplos estrangeiros para caracterizar algo do nosso mundo: acho que apouca todos os envolvidos e torna provinciano algo que deveria ser muito nosso. Inversamente, qualquer projecto que comece por se anunciar como o "não sei quantos português" encaracola-me os sentidos, partindo eu para o seu conhecimento com um pré-conceito desfavorável, quiçá injustamente.
Dito isto, não sei como comungar perfeitamente o que este Leopold para mim passou a ser, sem a eles recorrer.
Primeiro.
Há uns anos, começou a desenvolver-se, em França, o conceito "bistronomique": pouco alinhados com a ditadura da grandiosidade como única forma de chegar ao reconhecimento (com o que isso implicava de dívidas, responsabilidades financeiras, stress, constrangimentos criativos) alguns jovens lobos (e outros não tão jovens assim) resolveram mandar às urtigas os cinquenta empregados por cliente, os atapetados com 10 centímetros de espessura, os Christofle e os Schott Zwiesel, as rendas superiores ao PIB de um país emergente, e enfrentar o desafio maior de transformar uma cozinha de autor, num espaço diminuto, despojado e descontraído, numa casa de referência, lugar de culto para gastrónomos, negócio onde a rentabilidade e a alegria no trabalho, andassem de braço dado.
Coisa pouca, dirão. Mas que mudança de paradigma foi necessário ultrapassar.
Segundo.
Um cozinheiro dinamarquês, com as lições bem aprendidas no que toca ao domínio da técnica, à atenção às melhores matérias-primas, à evolução das tendências culinárias (principalmente aos seus porquês) e à evolução das modas resolve aceitar o desafio e abrir, na Copenhaga natal, um restaurante que, respeitando esses princípios, lhes junte uma filosofia de aproveitamento da produção local, uma sempre constante dose de inovação e experimentalismo e a integração da cultura gastronómica local. O conceito é um sucesso mundial e o restaurante fica classificado em primeiro lugar, em vários anos, na lista dos "The World's 50 Best Restaurants", arrumando (de vez?), com a primazia (que não com a influência) da escola francesa nas preferências trendy de foodies e outros interessados.
Anos depois, eis-me numa rua da cidade de Lisboa (curiosamente, a menos de cem metros do local onde nasci - perdoem-me a nota de intimidade biográfica), face a uma montra despida, antiga mostra de outras delícias, abrindo à vista dos passantes um interior muito simples: quatro mesas, 12 lugares disponíveis, um balcão com, veria depois, a zona de preparação por detrás.
Entrando, confirma-se o despojamento: mesmo a cozinha está reduzida ao essencial, dispensando fogão e micro-ondas, apostando na cozedura a baixa temperatura de uma Roner. Nas paredes, dois cartazes: uma pintura de Schiele anunciando a exposição permanente das suas obras no Leopold Museum, em Viena, o qual deu nome ao restaurante e uma mancha vermelha do filme Mon Oncle, de Jacques Tati, obra-prima europeia, de humos subtil e crítica mordaz a uma modernização arquitectónica e social filha da recuperação económica no pós-guerra do final dos anos cinquenta. Prometedor.
A carta, ainda que não muito extensa, torna a escolha difícil - apetece pedir tudo. E, se tudo não provei, experimentei o suficiente para poder afirmar, com propriedade e relativa objectividade, estarmos perante uma das melhores e mais importantes propostas gastronómicas aparecidas nos últimos anos em Lisboa.
Porque apura um conceito - o da "tasconómica" (tasca gastronómica) - que outros tinham já introduzido mas o eleva a uma essência sem paralelo, sem nunca comprometer o oferecido.
Porque constrói a sua cozinha unicamente em torno das boas texturas e sabores que a cozinha a vácuo e a baixa temperatura permitem, adicionando as possibilidades que as fermentações oferecem, façanha notável.
Porque demonstra que, existindo o conhecimento, a disponibilidade e a vontade, se consegue, com um investimento comedido, construir um restaurante de referência a um preço razoável para a maioria dos consumidores.
Feito o manifesto, passe-se ao degustado.
Notas prévias: o encanto da loiça das Caldas; a sugestão/declaração de todos os pratos serem pensados para a partilha.
ENTRADA:
AZEDO E MARMELO
Azedo de Trás-os-Montes e Puré de marmelo. O amargo do enchido, suavizado e complementado pelo acre-doce do puré de marmelo, combinação quase clássica mas que não deixa de surpreender pela textura criada com o puré (ao invés da da nossa conhecida marmelada). Contemporaneidade dada pela rama de ervilha, tradição emprestada pelo pão de Alcácer e pela broa de milho alentejana.
Todas as entradas deveriam ser assim: momentos de despertar do apetite, começo de uma gula que atravessará toda a refeição, cartão de visita para o que virá a seguir.
PRATOS PRINCIPAIS:
ATUM, ALGAS E PÉROLAS
O mar e o mar: atum braseado (só braseado, a maçarico, sem mais; dispensando tudo o mais) com a origem acentuada pelos dois tipos de algas, esparguete do mar e dulse. Tapioca como nunca tão bem me tinha sabido, em casamento conseguido como não o esperava. Vidrado de lima para complementar o aroma.
MIZUNA E CARNE DOS AÇORES
A suculência da carne, o acre da mostarda japonesa, o ácido dos pickles da cebola roxa, a cremosidade da manteiga de ovelha de Azeitão. Bem conjugados e bem doseados, a lembrar os equilíbrios de cores explorados por Mondrian.
BACALHAU, BROA E MOLHO DE MISO
Um mar de cerâmica a acolher um lombo de perfeição, o crocante acentuado da broa de milho e grelos de nabo. Três ingredientes tradicionais, aos quais se juntam os cogumelos nameko (Pholiota nameko), a clorofila e o milho de miso de cevada e gengibre. Belo fecho.
SOBREMESA
BANANA E QUEIJO DE S. JORGE
A banana madeirense, com um teor em açúcar superior ao das bananas comummente comercializadas no continente, necessita de um forte sabor contrastante para não se tornar enjoativa para os menos dados às tentações do açúcar. Aqui, utiliza-se um S. Jorge de cura de 7 meses que funciona muito bem (e que, a solo, já seria maravilhoso). A areia de canela de biscoitos madeirenses completa o pendor ilhéu do prato e complementa muito bem os sabores.
Em conclusão: simplicidade de processos, complexidade de sabores, inventiva, atraente.
Simpatia e atenção no serviço.
Carta de vinhos não muito extensa mas com boas propostas. Preços... habituais.
É de ir, antes das filas à porta.
Não tem Multibanco (há um a cinquenta metros, ao lado da entrada da clínica próxima). Estacionamento na rua quase impossível, mas há parque de estacionamento público (caro) nas cercanias (acesso a partir do Largo do Caldas).
Aproveite-se para um passeio digestivo pelas ruas da Baixa, que anoitecer tem mais soturnidade, tem mais melancolia...
RESTAURANTE LEOPOLD
Rua de São Cristovão, 27
Costa do Castelo
Tel: 21 8861697
Só jantares, de 4ª a Domingo, entre as 19 e as 23:00
Dito isto, não sei como comungar perfeitamente o que este Leopold para mim passou a ser, sem a eles recorrer.
Primeiro.
Há uns anos, começou a desenvolver-se, em França, o conceito "bistronomique": pouco alinhados com a ditadura da grandiosidade como única forma de chegar ao reconhecimento (com o que isso implicava de dívidas, responsabilidades financeiras, stress, constrangimentos criativos) alguns jovens lobos (e outros não tão jovens assim) resolveram mandar às urtigas os cinquenta empregados por cliente, os atapetados com 10 centímetros de espessura, os Christofle e os Schott Zwiesel, as rendas superiores ao PIB de um país emergente, e enfrentar o desafio maior de transformar uma cozinha de autor, num espaço diminuto, despojado e descontraído, numa casa de referência, lugar de culto para gastrónomos, negócio onde a rentabilidade e a alegria no trabalho, andassem de braço dado.
Coisa pouca, dirão. Mas que mudança de paradigma foi necessário ultrapassar.
Segundo.
Um cozinheiro dinamarquês, com as lições bem aprendidas no que toca ao domínio da técnica, à atenção às melhores matérias-primas, à evolução das tendências culinárias (principalmente aos seus porquês) e à evolução das modas resolve aceitar o desafio e abrir, na Copenhaga natal, um restaurante que, respeitando esses princípios, lhes junte uma filosofia de aproveitamento da produção local, uma sempre constante dose de inovação e experimentalismo e a integração da cultura gastronómica local. O conceito é um sucesso mundial e o restaurante fica classificado em primeiro lugar, em vários anos, na lista dos "The World's 50 Best Restaurants", arrumando (de vez?), com a primazia (que não com a influência) da escola francesa nas preferências trendy de foodies e outros interessados.
Anos depois, eis-me numa rua da cidade de Lisboa (curiosamente, a menos de cem metros do local onde nasci - perdoem-me a nota de intimidade biográfica), face a uma montra despida, antiga mostra de outras delícias, abrindo à vista dos passantes um interior muito simples: quatro mesas, 12 lugares disponíveis, um balcão com, veria depois, a zona de preparação por detrás.
Entrando, confirma-se o despojamento: mesmo a cozinha está reduzida ao essencial, dispensando fogão e micro-ondas, apostando na cozedura a baixa temperatura de uma Roner. Nas paredes, dois cartazes: uma pintura de Schiele anunciando a exposição permanente das suas obras no Leopold Museum, em Viena, o qual deu nome ao restaurante e uma mancha vermelha do filme Mon Oncle, de Jacques Tati, obra-prima europeia, de humos subtil e crítica mordaz a uma modernização arquitectónica e social filha da recuperação económica no pós-guerra do final dos anos cinquenta. Prometedor.
A carta, ainda que não muito extensa, torna a escolha difícil - apetece pedir tudo. E, se tudo não provei, experimentei o suficiente para poder afirmar, com propriedade e relativa objectividade, estarmos perante uma das melhores e mais importantes propostas gastronómicas aparecidas nos últimos anos em Lisboa.
Porque apura um conceito - o da "tasconómica" (tasca gastronómica) - que outros tinham já introduzido mas o eleva a uma essência sem paralelo, sem nunca comprometer o oferecido.
Porque constrói a sua cozinha unicamente em torno das boas texturas e sabores que a cozinha a vácuo e a baixa temperatura permitem, adicionando as possibilidades que as fermentações oferecem, façanha notável.
Porque demonstra que, existindo o conhecimento, a disponibilidade e a vontade, se consegue, com um investimento comedido, construir um restaurante de referência a um preço razoável para a maioria dos consumidores.
Feito o manifesto, passe-se ao degustado.
Notas prévias: o encanto da loiça das Caldas; a sugestão/declaração de todos os pratos serem pensados para a partilha.
ENTRADA:
AZEDO E MARMELO
Azedo de Trás-os-Montes e Puré de marmelo. O amargo do enchido, suavizado e complementado pelo acre-doce do puré de marmelo, combinação quase clássica mas que não deixa de surpreender pela textura criada com o puré (ao invés da da nossa conhecida marmelada). Contemporaneidade dada pela rama de ervilha, tradição emprestada pelo pão de Alcácer e pela broa de milho alentejana.
Todas as entradas deveriam ser assim: momentos de despertar do apetite, começo de uma gula que atravessará toda a refeição, cartão de visita para o que virá a seguir.
PRATOS PRINCIPAIS:
ATUM, ALGAS E PÉROLAS
O mar e o mar: atum braseado (só braseado, a maçarico, sem mais; dispensando tudo o mais) com a origem acentuada pelos dois tipos de algas, esparguete do mar e dulse. Tapioca como nunca tão bem me tinha sabido, em casamento conseguido como não o esperava. Vidrado de lima para complementar o aroma.
MIZUNA E CARNE DOS AÇORES
A suculência da carne, o acre da mostarda japonesa, o ácido dos pickles da cebola roxa, a cremosidade da manteiga de ovelha de Azeitão. Bem conjugados e bem doseados, a lembrar os equilíbrios de cores explorados por Mondrian.
BACALHAU, BROA E MOLHO DE MISO
Um mar de cerâmica a acolher um lombo de perfeição, o crocante acentuado da broa de milho e grelos de nabo. Três ingredientes tradicionais, aos quais se juntam os cogumelos nameko (Pholiota nameko), a clorofila e o milho de miso de cevada e gengibre. Belo fecho.
SOBREMESA
BANANA E QUEIJO DE S. JORGE
A banana madeirense, com um teor em açúcar superior ao das bananas comummente comercializadas no continente, necessita de um forte sabor contrastante para não se tornar enjoativa para os menos dados às tentações do açúcar. Aqui, utiliza-se um S. Jorge de cura de 7 meses que funciona muito bem (e que, a solo, já seria maravilhoso). A areia de canela de biscoitos madeirenses completa o pendor ilhéu do prato e complementa muito bem os sabores.
Em conclusão: simplicidade de processos, complexidade de sabores, inventiva, atraente.
Simpatia e atenção no serviço.
Carta de vinhos não muito extensa mas com boas propostas. Preços... habituais.
É de ir, antes das filas à porta.
Não tem Multibanco (há um a cinquenta metros, ao lado da entrada da clínica próxima). Estacionamento na rua quase impossível, mas há parque de estacionamento público (caro) nas cercanias (acesso a partir do Largo do Caldas).
Aproveite-se para um passeio digestivo pelas ruas da Baixa, que anoitecer tem mais soturnidade, tem mais melancolia...
RESTAURANTE LEOPOLD
Rua de São Cristovão, 27
Costa do Castelo
Tel: 21 8861697
Só jantares, de 4ª a Domingo, entre as 19 e as 23:00
Comentários
É muito gratificante lermos um texto que foca exactamente aquilo em que acreditamos: minimalismo, qualidade, conceito de bistronomique, conceito da cozinha nórdica, texturas, sabor,...
Esperamos pelo seu regresso.
Abraço!
Tiago e Ana