Tive o primeiro contacto ao vivo com a sua cozinha no Peixe em Lisboa do ano passado, no show cooking onde, sereno e inovador, apresentou três pratos que me despertaram a curiosidade para mais.
Só anteontem, no entanto, consegui,
finalmente!, sensoriar a sua visão, no
Pop Up que, em boa hora, a
Amuse Bouche organizou, tendo por palco a
Cozinha Popular da Mouraria.
E o que descobri(mos) foi uma arte baseada na exploração de novos sabores e texturas dados por matérias primas menos conhecidas ou menos utilizadas, locais ou de outras culturas; a exploração de técnicas em conceitos diversos dos originalmente utilizados; a proposta de novas combinações de sabores
Uma cozinha que é herdeira - assumida ou interiorizada - de ideias-base defendidas pela primeira vez pela
nouvelle cuisine, nomeadamente a "ligeireza" do menu, a utilização exclusiva de produtos de qualidade (cuja procura a página da Amuse Bouche foi relatando), a pouca cozedura dos alimentos.
Parece-me que este é um dos caminhos possíveis de ser trilhados por aqui, pelos talentos que as Escolas de Hotelaria e Turismo vão formando, assim tenham a coragem de o percorrer sem rede e sem expectativas imediatas de glória e rendimentos avultados: pequenos espaços despretenciosos, de recolhimento necessário e muita cumplicidade, onde, pouco a pouco, criações intimistas saibam extrair dos grandes produtos nacionais, novas e propositadas sensações. Foi o que vi neste desfilar de propostas: um futuro apropriado, para um país que se quer baseado na oferta gastronómica. Pena tenho eu, que o Leandro não o considere suficiente viável para voltar...
Voltando ao jantar.
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Ouriços, leite de avelã, pimenta da Jamaica |
De pré-entrada, estes
ouriços terão talvez pecado pela predominância do sabor a avelã mas cumpriram a sua função de anunciar o que nos esperava: investigação, proposta, desafio. Visualmente muito apelativos, sabores concentrados.
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(Adriana Freire, esfuziante) |
Já na mesa,
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Para partilhar com a companhia que estava em frente... |
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À esquerda, cebola, beterraba marinha e toucinho ; à direita, chagas e gambas do Algarve |
Um conceito introduzido - o da partilha -, num prato com duas entradas.
Despi-vos das vossas grandezas ilusórias e partilhai o vosso âmago, pareciam mensagear. Numa das propostas (direita na foto), um centro onde o sabor se concentrava, com uma suave textura a envolver, terminada pelo crocante. Na boca, o inverso, crocante, suave, explosão de mar. Na outra, o peso da gordura e da proteína, o ácido da cebola, as texturas das ervas (rebentos de ervilha), combinação provocante.
Queremos reflectir sobre o assunto? Aceitamos a provocação?
Dos pratos principais reza a História e assim a minha história reza:
1.
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Talos de nabiças, percebes, infusão de lúcia-lima e as cabeças dos percebes |
Interessante combinação, arriscada - é difícil superar a brutalidade de sabor que eles oferecem ao natural.
2.
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Rebentos de nabo, caldo de pimento assado, tamboril |
Primeiro ponto: a tranquilidade que emana da composição. Três elementos, três cores, três figuras geométricas, uma unidade evocadora de referências (para mim, a verde Irlanda, o zen japonês).
Segundo ponto: a ousadia de incorporar no caldo de pimento o sabor do queimado (que ia mais além do normal sabor de pimentos assados a que nos habituou desde sempre a tradição) - é intrusivo, espanta, depois faz pensar, relembrar fogo, calor, a capa preta que o pimento ganha no processo.
Terceiro ponto: mais uma vez, a harmonia de sabores e texturas.
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(Foto: Adriana Freire / Cozinha Popular da Mouraria)
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3.
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Folhas de brócolos, "rib eye" e Bulhão Pato |
Simplicidade a acompanhar uma bela peça bovina, umas "
folhas de nabo que eu nunca visto tão grandes que parecem couves" (Leandro), e o caldo a, novamente, ancorar o prato nas nossas memórias lisboetas.
4.
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Maçã, toranja branca, avelãs assadas, azedas |
A toranja branca, surpreendente, trazida da quinta do casal Brigand,
Lugar do Olhar Feliz. As azedas, para nos trazer o gosto de meninos ou deixar o travesso menino Leandro introduzir um novo momento de dúvida ("
o que é este sabor que me lembra... o quê?"). Mais uma vez, o jogo e a complementaridade das texturas, o contraste ácido/doce.
Belo final.
Uma palavra para o óptimo trabalho da cozinha a qual, com uma brigada pequena, satisfez completamente, bem como o serviço de sala, competentíssimo: juntando o melhor de dois mundos: o ambiente descontraído, alternativo, cozy, da sala da Cozinha Popular e o saber servir e atender dos (bons) restaurantes de
fine dining.
Parabéns a todos, mais uma vez. Aposta ganha a todos os níveis. Que o Leandro se apaixone por Lisboa e volte, que a Adriana continue a ganhar Lisboa para a Mouraria, que a Ana e o Paulo continuem a arriscar (e, em Abril, haverá mais
Guelra!). E que continuem a encontrar-me lugar numa mesa tão reconfortante como a que me acolheu.
Saravá! (Não tem nada a ver, pois não? Mas soube bem dizê-lo.)
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