Mie Ayam Komplit na Mouraria e a comida de rua
Permitam-me postular o seguinte: a comida de rua vai regressar a Lisboa, não pela mão artificial da autarquia ou de associações a la minute, antes pela de empreendedores imigrantes.
A história e o mercado estão cá: a cidade tem uma secular tradição de comidas vendidas e consumidas no exterior, é, desde a sua génese, um local aberto ao exterior e às suas influências, os seus habitantes são abertos à novidade - no presente mais que nunca.
Se assim é, natural seria que a comida de rua fosse uma força da gastronomia lisboeta, o que não acontece. Porquê? Arrisco, na multiplicidade dos factores históricos, três razões, eventualmente rebatíveis:
- Num primeiro e mais recuado tempo, a evolução dos comerciantes galegos, das humildes vendas ao ar livre para negócios dentro de portas (primeiro as tabernas, depois os restaurantes), que continuaram apelativos, pelo preço e pelo sabor das preparações oferecidas;
- Mais recentemente, um certo sentido de novo-riquismo da população que, com o relativo enriquecimento das últimas décadas, passou a preferir ofertas mais contemporâneas, com referências ou origem externas;
- As intervenções sanitaristas oficiais, acentuadas nas últimas décadas.
Ao olharmos actualmente para Lisboa e para os seus modos de ocupação (do zonamento recente que divide turistas e moradores, terciário e comércio, luxo, mediania e pobreza), fácil é percepcionar uma concentração maioritária da população migrante mais recente e com origem nos vários países do Extremo Oriente na zona da Mouraria e da avenida Almirante Reis. Tal concentração é factor originário e sustentador de uma gastronomia diversa e que, começando por ser estrangeira aos olhos da restante população (fruto igualmente de uma guetização disfarçada, assumida pelas duas partes), começa a ser integrada - é cada vez mais procurada pelo outro - por nós.
Dos restaurantes clandestinos que nascem para servir a população de origem chinesa às casas bangladeshianas que se multiplicam na rua do Benformoso (continua a impressionar-me a quase total ausência da presença feminina na sua frequência) é um mundo que urge descobrir - no outro aprendemos o melhor de nós mesmos. Será esse crescendo de procura - que irá acontecer - que criará a coragem em empreendedores de menos posses para, pelas ruas, vender o mesmo tipo de produtos que nos seus países de origem tão disseminados estão.
A Cozinha Popular da Mouraria é um projecto que Adriana Freire lançou há três anos, tendo como objectivo principal o apoio à população residente, proporcionando um espaço para o desenvolvimento de projectos, um fornecedor de formação profissional e mais uma constelação de eventos que a imaginação fértil e solidariamente consciente da sua criadora não cessa de lançar. É - e não é pouco... - um espaço onde se come sempre bem, albergando desde as pataniscas mais genuinamente populares da cidade aos jantares pop-up de chefes respeitados.
Porque não faz distinções, tem aconchegado algumas das propostas mais saborosas que experimentei, vindas de outras culinárias. O pho genuinamente vietnamita da Ha - o mais aprimorado da cidade -, por exemplo. Ou agora esta manifestação da cozinha indonésia, trazida pelas mãos de uma micro-empresa de sabores desse país, a Kayu Manis (canela, em indonésio). Mãos que são oito: as da Rici, da Afsy, da Nunung e da Maria Manuela (que, sendo portuguesa, adoptou a Indonésia como segunda pátria, nela tendo vivido 29 anos) e que apresentam com saber, com memória, com dedicação, os sabores complexos e variados, com influências que se estendem da China à Holanda, desse imenso arquipélago que forma o país.
Para esta primeira abordagem, escolheram precisamente um dos mais consumidos pratos de comida de rua: o Mie Ayam Komplit, tendo como entradas bakwan sayur e pangsit goreng e sobremesas kelepon e wingko.
O bakwan sayur pode ser descrito como um cruzamento entre uma patanisca (da qual se aproxima pelo formato) e um peixinho da horta (com o qual comunga o conceito de legumes mergulhados num polme). Sayur quererá dizer vegetal, distinguindo-se assim estes bolinhos dos bakwan udang feitos com marisco. Como todos os pasteis fritos, são uma delícia e uma tentação - provar um é correr o risco de só parar quando não há mais. Ainda por cima, com um molho picante à disposição (seria um tipo de sambal?) para lhes aumentar o sabor...
Na Indonésia vendem-se pelas ruas, preparados em carrinhos denominados pedagang kaki lima ou nos, em vias de extinção, pikulan, o que eu chamaria de restaurante portátil, constituído por um conjunto mais ou menos elaborado de dois cestos dispostos nas extremidades de uma vara de bambu que o cozinheiro carrega aos ombros e que contêm todo o equipamento necessário para os preparar.
Podendo ainda ser considerados como "comida de rua" são as warung, bancas semi-permanentes, de construção um pouco mais elaborada, com banquetas para os clientes, consumidores costumeiros de pratos simples como o arroz frito (nasi goreng) ou pratos de massa (mie goreng). Muitos deles laboram até dentro da madrugada e constituem no seu conjunto, pela diversidade da oferta, um roteiro de delícias populares que muitos vão procurando em sequência.
Um dos pratos mais populares é precisamente o que foi estrela deste almoço, o Mie Ayam Komplit, Massa com Almôndegas Completo, em tradução muito livre.
Prato simples de descrever mas de complexidade de sabores, a requerer sentimento das mãos que o preparam. Ou o sentir conjunto das inúmeras gerações que o foram apurando e transmitindo. Como a comida de rua que Lisboa soube apurar (e quase esquecer). É igualmente um espelho das múltiplas influências que a gastronomia das ilhas acolheu.Como a comida de rua que Lisboa soube apurar (e quase esquecer). Tem a massa trazida pelos imigrantes chineses ou o chili que os portugueses introduziram.
A massa, feita à mão, é cozida brevemente,
e depois colocada nas tigelas e misturada com óleo e especiarias para a temperar e separar.
Sobre ela acrescenta-se o molho de cogumelos e frango e as almôndegas de carne,
bem como os verdes e os temperos finais, estes de acordo com o gosto de cada um.
É delicioso, reconfortante e viciante... e espero que o seu consumo se espalhe pela cidade - precisamos de muito conforto, nesta instabilidade que, num crescendo, nos assalta o Ocidente.
Termino, ousando um video com que me entretive. É de amador, ficam avisados, caso sejam muito distraídos e não tenham reparado.
Indonesia from Pedro Gomes on Vimeo.
E assim fica.
A história e o mercado estão cá: a cidade tem uma secular tradição de comidas vendidas e consumidas no exterior, é, desde a sua génese, um local aberto ao exterior e às suas influências, os seus habitantes são abertos à novidade - no presente mais que nunca.
Se assim é, natural seria que a comida de rua fosse uma força da gastronomia lisboeta, o que não acontece. Porquê? Arrisco, na multiplicidade dos factores históricos, três razões, eventualmente rebatíveis:
- Num primeiro e mais recuado tempo, a evolução dos comerciantes galegos, das humildes vendas ao ar livre para negócios dentro de portas (primeiro as tabernas, depois os restaurantes), que continuaram apelativos, pelo preço e pelo sabor das preparações oferecidas;
- Mais recentemente, um certo sentido de novo-riquismo da população que, com o relativo enriquecimento das últimas décadas, passou a preferir ofertas mais contemporâneas, com referências ou origem externas;
- As intervenções sanitaristas oficiais, acentuadas nas últimas décadas.
Ao olharmos actualmente para Lisboa e para os seus modos de ocupação (do zonamento recente que divide turistas e moradores, terciário e comércio, luxo, mediania e pobreza), fácil é percepcionar uma concentração maioritária da população migrante mais recente e com origem nos vários países do Extremo Oriente na zona da Mouraria e da avenida Almirante Reis. Tal concentração é factor originário e sustentador de uma gastronomia diversa e que, começando por ser estrangeira aos olhos da restante população (fruto igualmente de uma guetização disfarçada, assumida pelas duas partes), começa a ser integrada - é cada vez mais procurada pelo outro - por nós.
Dos restaurantes clandestinos que nascem para servir a população de origem chinesa às casas bangladeshianas que se multiplicam na rua do Benformoso (continua a impressionar-me a quase total ausência da presença feminina na sua frequência) é um mundo que urge descobrir - no outro aprendemos o melhor de nós mesmos. Será esse crescendo de procura - que irá acontecer - que criará a coragem em empreendedores de menos posses para, pelas ruas, vender o mesmo tipo de produtos que nos seus países de origem tão disseminados estão.
A Cozinha Popular da Mouraria é um projecto que Adriana Freire lançou há três anos, tendo como objectivo principal o apoio à população residente, proporcionando um espaço para o desenvolvimento de projectos, um fornecedor de formação profissional e mais uma constelação de eventos que a imaginação fértil e solidariamente consciente da sua criadora não cessa de lançar. É - e não é pouco... - um espaço onde se come sempre bem, albergando desde as pataniscas mais genuinamente populares da cidade aos jantares pop-up de chefes respeitados.
Porque não faz distinções, tem aconchegado algumas das propostas mais saborosas que experimentei, vindas de outras culinárias. O pho genuinamente vietnamita da Ha - o mais aprimorado da cidade -, por exemplo. Ou agora esta manifestação da cozinha indonésia, trazida pelas mãos de uma micro-empresa de sabores desse país, a Kayu Manis (canela, em indonésio). Mãos que são oito: as da Rici, da Afsy, da Nunung e da Maria Manuela (que, sendo portuguesa, adoptou a Indonésia como segunda pátria, nela tendo vivido 29 anos) e que apresentam com saber, com memória, com dedicação, os sabores complexos e variados, com influências que se estendem da China à Holanda, desse imenso arquipélago que forma o país.
Para esta primeira abordagem, escolheram precisamente um dos mais consumidos pratos de comida de rua: o Mie Ayam Komplit, tendo como entradas bakwan sayur e pangsit goreng e sobremesas kelepon e wingko.
O bakwan sayur pode ser descrito como um cruzamento entre uma patanisca (da qual se aproxima pelo formato) e um peixinho da horta (com o qual comunga o conceito de legumes mergulhados num polme). Sayur quererá dizer vegetal, distinguindo-se assim estes bolinhos dos bakwan udang feitos com marisco. Como todos os pasteis fritos, são uma delícia e uma tentação - provar um é correr o risco de só parar quando não há mais. Ainda por cima, com um molho picante à disposição (seria um tipo de sambal?) para lhes aumentar o sabor...
Na Indonésia vendem-se pelas ruas, preparados em carrinhos denominados pedagang kaki lima ou nos, em vias de extinção, pikulan, o que eu chamaria de restaurante portátil, constituído por um conjunto mais ou menos elaborado de dois cestos dispostos nas extremidades de uma vara de bambu que o cozinheiro carrega aos ombros e que contêm todo o equipamento necessário para os preparar.
Um pikulan, este vendendo satay, epsetadas tradicionais indonésias. Retirado daqui: http://www.cirebonkuliner.com/2013/04/sate-kambing-pikulan-jln-pandesan.html |
Um dos pratos mais populares é precisamente o que foi estrela deste almoço, o Mie Ayam Komplit, Massa com Almôndegas Completo, em tradução muito livre.
Prato simples de descrever mas de complexidade de sabores, a requerer sentimento das mãos que o preparam. Ou o sentir conjunto das inúmeras gerações que o foram apurando e transmitindo. Como a comida de rua que Lisboa soube apurar (e quase esquecer). É igualmente um espelho das múltiplas influências que a gastronomia das ilhas acolheu.Como a comida de rua que Lisboa soube apurar (e quase esquecer). Tem a massa trazida pelos imigrantes chineses ou o chili que os portugueses introduziram.
A massa, feita à mão, é cozida brevemente,
e depois colocada nas tigelas e misturada com óleo e especiarias para a temperar e separar.
Sobre ela acrescenta-se o molho de cogumelos e frango e as almôndegas de carne,
bem como os verdes e os temperos finais, estes de acordo com o gosto de cada um.
É delicioso, reconfortante e viciante... e espero que o seu consumo se espalhe pela cidade - precisamos de muito conforto, nesta instabilidade que, num crescendo, nos assalta o Ocidente.
Termino, ousando um video com que me entretive. É de amador, ficam avisados, caso sejam muito distraídos e não tenham reparado.
E assim fica.
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