No Claro, nova carta

A Bigger Splash, David Hockney,1967
Tenho um sonho recorrente desde que, há algumas semanas, visitei o restaurante homónimo do Vitor Claro: dou um mergulho na piscina que encabeça o jardim, saio e, embrulhado num roupão felpudo, ocupo uma das mesas adjacentes onde, com os olhos descansados naquela imensidão de azul que lhe é fronteira, me é servida uma das magníficas refeições que fizeram o nome da casa.

Não há o ruído habitual da Marginal, dos pássaros, dos passos em volta - tudo o que o meu cérebro regista é a música e as palavras do Follies, o musical que Stephen Sondheim criou, em evocação dos anos de ouro da Broadway. Como as criações do Chefe, bom gosto, criatividade, humor, engenho interligam-se e criam a sonoridade para uma tarde perfeita. Imaginem um Astaire dos grandes momentos com uma musicalidade contemporânea: a sua elegância ao som de composições que têm, entrelaçada com uma melodia à qual pensamos conseguir adivinhar a sequência, contrastes dissonantes propositados - assim é uma experiência no Claro.


Ainda que continuasse a seguir os caminhos paralelos que Vitor Claro foi experimentando (dos vinhos - já lá iremos! - à aventura na Ribeira - sobre a qual continuo a manter uma saudável discordância com o Chefe a propósito dos bijous) já não transpunha as portas do restaurante há dois anos. Voltei agora, a convite do Chefe, para comemorar a sua reabertura após as obras e conhecer as novas propostas. Algo mudou discretamente - a minha memória, ainda que não registe diferenças de fundo, diz-me que o conforto que se sente e o bem-estar que se vive é ainda maior - no espaço. A oferta gastronómica essa, continua um caminho há muito traçado e que tanto tem fascinado gastrónomos e críticos.

Oferta gastronómica.

Começo pelo de comer. Quoi de nouveau M. Claro?

Em primeiro lugar a manutenção do que, sendo antigo, continua relevante: a concisão, tanto visual quanto de sabores. Dois pratos elementares continuam, vindos de menus anteriores, justamente porque, para além do sucesso junto dos clientes, sumarizam as ideias e influências do Chefe: a (aparente) simplicidade de construção e a intensidade de sabor extraída de um só componente (no caso o tomate) na sua versão do Bacalhau à Conde da Guarda e a homenagem a Santi Santamaria, o Falso Raviolo de Gamba e Cogumelos.

A versão de Vítor Claro do Bacalhau à Conde da Guarda
Raviolo de gamba e cogumelos "Santi Santamaria"
Depois, os primeiros passos de um novo caminho, a procura de respostas para o que me parece ser uma interrogação óbvia em torno do papel do molho. Considerando a evolução que os molhos tiveram na cozinha internacional no século XX - do seu papel pesado e impositivo do sabor na cozinha clássica francesa à antítese desenvolvida na Nouvelle Cuisine e, finalmente, na alteração de formato, onde passaram a ser encapsulados ou solidificados (por acção de um hidrocoloide) para se liquidificarem na boca, na mais recente cozinha tecno-emocional - faz todo o sentido procurar-lhes uma nova maneira, uma nova função, um novo destino. O que Claro propõe é a sua utilização como elemento principal ou, dito de uma outra maneira (ou visto por um outro prisma), a liquidificação do elemento sólido. Como? Transferindo para um caldo as propriedades que estamos habituados a reconhecer como pertença dos elementos sólidos de um prato.

Se tal proposta começa a vislumbrar-se num prato como o Salmão fumado com sumo de maçã verde, em que o sumo ultrapassa a complementaridade habitual para se assumir como alternativa de gosto à primazia do salmão,

Salmão fumado na casa com sumo de maçã verde e puré de funcho

ela torna-se clara nos dois pratos servidos seguidamente, o Caldo de choco com tinta e o Caldo de lavagante com caramelo e rutabaga onde a essência do sabor do prato se concentrava no líquido e onde - para mim - os restantes elementos se "limitavam" a, qual "supporting actor" providenciar algum corpo (ou textura).

Um prato que é líquido e um caldo que extravasa o que normalmente é esperado dele (começo de refeição) sendo apresentado como uma das preparações estrela, eis a novidade, eis a proposta. Não me chega o conhecimento a tanto para dizer que o caminho não terá sido tentado noutras paragens. Chega-me o sentido para afirmar que é um caminho muito interessante e que espero ver a sua continuação e a evolução que daí pode vir.

Caldo de choco com tinta
Caldo de lavagante com caramelo e rutabaga

Só por isto a refeição já teria valido muito, mas houve mais. Intervalando os dois caldos, chegou um Peixe-galo à delícia, com a novidade do uso de cornichon com complemento ao acompanhamento da banana, uma trouvaille de conjugação de gostos e texturas muito interessante e vale a pena experimentar.

Peixe-galo à delícia - manteiga escura, banana e cornichon
O capítulo da carne, se bem que muito menos animado de surpresas mostrou-se à altura, com uns belíssimos espargos verdes a emparelhar com a costeleta.

Costeleta com espargos verdes e molho romesco
Pré-sobremesa e sobremesa a serem um bom fecho de refeição mas a minha mente ainda brincava com o conceito dos caldos...

Pré-sobremesa: Espuma de iogurte com granizado de manjericão

Queijinho de ovo: maçapão de amêndoa recheado com creme de maracujá e molho de caramelo
E quanto ao de beber?

Pairings acertados, no equilíbrio certo entre os dois mundos, sem prevalências nem atropelos, a demonstrar aquele trabalho extra na construção da carta e no serviço cuidado que muitos reclamam como justificação para as margens absurdas mas que só alguns justificadamente têm.

Vale dos Ares, um Alvarinho servido com o Salmão e o Raviolo:
um verde branco repousado, a realçar a acidez da maçã e a aligeirar a profundidade dos cogumelos

O que quero realmente realçar são os vinhos de produção de Vitor Claro provados: são o que já ouvi denominar, desdenhosamente, "esta nova moda dos vinhos à antiga, cheios de defeitos" a que eu respondo "se isto são defeitos, que venham eles!". Do que estou cansado é dos vinhos redondos, "consensuais", de régua e esquadro, prontos a beber e esquecer, feitos para quem espera da vida uma sequência tranquila de lugares comuns e poucos desafios. Perante estas construções, o que me apetece é chamar-lhes pedra-pomes vínica, de um rendilhado lindo, rugosidade desafiadora, companhia para longas conversas, a revelar-se pouco a pouco mas com muito para contar. Um mimo e (mais) um longo caminho para percorrer.

Foxtrot dominó, 2014
Aberto de 4ª feira a Domingo

Horário da cozinha
12:30 - 14:30 / 19:30 - 22:00

Localização
Hotel Solar Palmeiras
Avenida Marginal, Curva dos Pinheiros,
2780-749 Paço de Arcos


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