Semear Sabor, Colher Memórias


Arriscaram linguistas e psicólogos, procura demonstrar a neurociência que a língua que falamos condiciona a nossa percepção do mundo, nos conduz a uma interpretação única, necessariamente diversa da dos que chamam os bois por outros nomes.

Assim será. Não creio, no entanto, que a nossa memória de águas profundas, a evocada por uma sensação e que por ela foi, no passado, tecida, seja menos importante no estabelecimento do nosso mundo presente.

Leio o título do mais recente livro de Fátima Moura, Justa Nobre e Mário Cerdeira e lá está plasmada a mesma ideia: quando produzimos gostos (isto é, quando cozinhamos) são as memórias dos mesmos - as vividas mas também as herdadas geneticamente - que nos surgem, relançando afinidades adormecidas. Inversamente, arrisco postular que, mesmo criando, nada criamos, incapazes de fugir ao gravitacional apelo dessas memórias, limitando-nos a recontar, por outras palavras, as histórias que gerações, a partir das matérias-primas disponíveis e com essa linguagem que nos moldou o ser e o parecer, foram estabelecendo.

Todos os livros a sério deveriam ser assim: apaixonadas digressões por todos os cantos da gastronomia. Teoria com prática, história com engenharia, um desafio permanente à curiosidade do leitor, uma oferta de pistas, uma disponibilidade para o diálogo.

Fátima Moura na Noruega e um belo exemplar de bacalhau, pescado pela própria

Num panorama editorial que só não está saturado de livros de receitas porque se arranja sempre lugar para a edição de mais uma colecção de variações das mesmas, o encontro com uma obra como esta é como a chegada do viajante a um oásis: mata-se a sede e a fome, descansam-se os olhos, redescobre-se a paz.

Justa Nobre e Mário Cerdeira em visita de estudo, num dos inúmeros fiordes noruegueses que moldam a costa do país
Das muitas memórias que sustentam o edifício da gastronomia portuguesa, de que memórias nele se tratam? De uma matéria-prima - o bacalhau; de um objecto inspirador de uma técnica e uma região - a cataplana; de um tipo de espaço restaurativo - as cervejarias lisboetas; de uma gulodice - os pasteis.

O BACALHAU

Ao bacalhau é dedicado o espaço maior, tendo sido igualmente ao assunto que os autores mais tempo terão dedicado (e que incluiu a visita a um dos locais da sua pesca e preparação, na costa da Noruega). Os habitats, a história da relação gastronómica nacional com o "companheiro dos pobres" (sabiam que datam do reinado de D. Manuel I as primeiras expedições à Terra Nova para a sua captura?), a origem de algumas das mais emblemáticas e amadas receitas (no Porto, o Bacalhau à Gomes de Sá mas também um magnífico e insuficientemente conhecido Bacalhau à João do Buraco; em Lisboa, o Bacalhau à Brás mais os taberneiros Meia Desfeita e Punheta de Bacalhau; em Viana do Castelo, o Bacalhau à Maria da Praça) passam pelo texto de Fátima Moura. A acompanhar, as receitas citadas no texto, bem como novas receitas idealizadas por Justa Nobre entre as quais é forçoso destacar uma recriação do Bacalhau da Mãe em Pote de Ferro onde a autora evoca as suas memórias familiares e a tradição transmontana.

Bacalhau à Romeu,
estrela, da ementa da estalagem situada em Romeu (Trás-os-Montes) desde 1874,
aqui recriado por Justa Nobre
A CATAPLANA (e a Prussiana)

Sobre a cataplana e do ainda relativamente pouco que se sabe acerca das suas origens, se escreve no capítulo seguinte. Para Fátima Moura, a explicação mais consensual é a de que a cataplana é uma derivação de um utensílio que serviria como forno portátil de caçadores beirões - denominado prussiana - para confecção no local dos animais capturados. Aportado ao Algarve algures nos anos 40-50, terá começado a ser utilizado no material original (ferro fundido ou folha de Flandres) tendo depois evoluído para o material actual (cobre). Apresentando as informações que continuou a recolher depois da publicação do seu livro Cataplana Experience, onde desenvolvia a investigação e os testemunhos pessoais de personagens gradas da nossa gastronomia como Alfredo de Morais, Maria de Lourdes Modesto ou Maria Odette Cortes Valente e ainda do jornalista Jorge Tavares da Silva, o texto lê-se de um fôlego, deixando o leitor preso pela quase novela policial que é a determinação do caminho deste objecto até à actualidade, onde faz figura de objecto de culto... para turista ver. (Aguardo ainda reacções que avancem com outras explicações; até lá...)

As receitas apresentadas são ilustrativas do que deverá ser a correcta utilização da peça - ao contrário do uso menor de terminação de pratos a que é confinada a maioria das vezes, a cataplana deverá ser utilizada fechada, a lume baixo, tirando partido da formação de vapor que a sua configuração induz. Justa Nobre dá largas à sua criatividade e saber, demonstrando a versatillidade daquela: pratos de caça, marisco, peixe - uma sobremesa! - são oferecidos ao leitor, deixando pistas para mais aventuras. Relevo ainda para uma receita de perdizes, oriunda do Sabúgal, cedida pelos descendentes de um caçador e originalmente concebida para uma prussiana.

Frutos exóticos com champanhe e calda de ácer (Justa Nobre)
"Esta cataplana quente casa muito bem com um gelado de rosas" (do livro)

AS CERVEJARIAS

Da história das primeiras produtoras de cerveja em Portugal e das primeiras cervejarias de Lisboa às diversas receitas de Bife cujo consumo ajudaram a impulsionar. Da Trindade à Jansen, da Germânia à Portugália, eis uma parte do percurso lisboeta nesta relação de rivalidade com o vinho e de amores com a gastronomia.

Quanto à ligação entre galegos e cervejarias - é factual a origem galega do proprietário da Trindade - pressupor uma influência galega nos caminhos e na gastronomia das mesmas parece-me tese a carecer de maior desenvolvimento. Talvez o tema para o próximo livro de Fátima Moura?

Já as receitas não precisarão de maior prova: às clássicas variações sobre bife frito originadas em cervejarias, cafés ou tascas (e purgadas de versões fantasiosas ou, noutros casos, penosamente síntetizadas a partir da cacofonia de múltiplas fontes), juntam-se as propostas de Justa Nobre como o Casco de Santola com Cerveja ou o Bife com Molho de Café de fazer salivar e começar a exigir uma caneca mista para acompanhamento da leitura.

Bife à Faustino
Criado pelo cozinheiro/restaurador Faustino,
pai do também restaurador e cronista gastronómico de meados do século XX

OS PASTEIS

O mundo nacional dos "pasteis" é profuso e incogruente. "Cousa de massa com golodices" (expressão com que começa o capítulo) é uma definição que o atesta. O que é um pastel? Pois... é uma coisa que pode ter um invólucro de massa tenra ou folhada, ou areada ou quebrada; ser totalmente fechado ou aberto na parte superior; ser unidose ou prato de substância para vários; ser doce ou salgado; ser... quase tudo.

Ironicamente, é ao que menos corresponde à clássica definição de um pastel - o pastel de bacalhau - que a autora dedica mais atenção neste último capítulo: às suas receitas, às variações, à história.

Nas receitas, para além daqueles, os restantes inevitáveis da nossa comida de rua - rissóis, pasteis de massa tenra, empadas. Nos doces, mais inevitáveis da cozinha regional: as azevias, as covilhetes de leite da Terceira, os pasteis de feijão, as queijadas da Madeira ou as alentejanas.

Covilhetes de Leite da Terceira
(receita do livro Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto)

Não quero deixar de referir a extrema qualidade visual da obra, fruto do aturado trabalho de fotografia de Mário Cerdeira, o grande inspirador da obra e quem reuniu as condições para que a mesma pudesse avançar, dando força - e apoios! - às autoras para a realização da mesma. Quem sabe... faz bem.

Pudessem os nossos escaparates encherem-se com mais!

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