Para acabar de vez com o produto
Debater "a cozinha portuguesa" é um exercício em volta do abstracto quando (como acontece quase sempre) se aglomeram objectivos diversos para o mesmo: é a preservação de um passado ou a criação de um futuro que se pretende? O reforço da imagem do país no exterior ou a satisfação de uma clientela?
É também um exercício no vazio no que aos autores ou criadores diz respeito: interessa mais aos copistas, aos falhos de ideias, aos empresários, aos oportunistas.
É um exercício de desperdício - de tempo e de palavras -, de cacofonia militante em que cada um fala muito mais do que ouve perante muitos que ouvem mas nunca falam.
É, finalmente, um exercício de castração: quando acontece ser conclusivo torna-se normalizador, redutor, impeditivo do génio individual, da criatividade, do risco.
Um desperdício.
Dou-vos um exemplo.
Através de algumas leituras, algumas opiniões de estrangeiros devotados, alguma absorção de princípios alheios com algumas décadas mas ainda suficientemente desconhecidos para constituírem novidade, começou a difundir-se a ideia do "produto" português como símbolo de excelência e avatar da cozinha nacional. De uma constatação que, em alguns casos e com a devida proporção, era verdadeira passou-se, com a habitual bipolaridade nacional, para um lusitanismo de peito feito e mãos nuas em que as matérias eram bastantes e suficientes para nos guindar ao topo da originalidade e da qualidade no panorama mundial da gastronomia.
Fosse numa apresentação, numa entrevista, numa mesa-redonda (para um público especializado ou para os curiosos em geral) ou mesmo num mais ponderado artigo em jornal ou revista: insidiosa, no princípio, no meio ou no fim, lá começou a aparecer a declaração de devoção ao produto, de lealdade ao produto, de solene, incomensurável, inesgotável amor ao produto: a "cozinha portuguesa" era o produto e todos os seus profetas.
Já não posso ouvir falar do produto.
Sim, é função inicial da cozinha preparar os alimentos para consumo humano. Sim, o resultado final está directamente ligado à qualidade da matéria-prima utilizada.
Sim, o produto é apenas o princípio e não o fim.
Sim, o produto é um meio para atingir um fim.
Se queremos debater a "cozinha" portuguesa, talvez fosse melhor começar por decidir se por ela estamos a referir-nos à cozinha dos portugueses ou à cozinha restaurativa que se faz em Portugal. Se queremos que esta seja o topo daquela ou se a continuamos a deixar como um corpo independente, trabalhando para visitantes e ignorando a realidade circundante. Sob pena de se continuar a discutir o sexo dos anjos, numa orgia de sexo... virtual.
Porque os produtos que a maioria dos portugueses consomem são sofríveis (a população vive maioritariamente em áreas metropolitanas, sendo, por falta de tempo ou orçamento, consumidora quase exclusiva de hipermercados ou supermercados onde a generalidade da oferta de frescos é, na maior parte das ocasiões, discutível (estado de conservação, origem, tratamento, diversidade).
Porque o nível geral de conhecimento gastronómico é baixo, levando a um grau de exigência baixo, por parte do consumidor.
Mais do que discutir a "alta" cozinha portuguesa, seria mais útil discutir a existência, criação, formação, manutenção dos pilares que a possam sustentar de um modo consistente e duradouro.
Depois - ou durante - talvez começassem a surgir pistas para as interrogações que muitos desejariam perseguir: a "cozinha" portuguesa não é o "produto" antes a paisagem e o olhar sobre a mesma, a melancolia e o sarcasmo, o pessimismo e o desenrascanço; a cópia e o aproveitamento, a falta de sofisticação e a complexidade dos sentimentos, a bonomia e a geral pacatez; os silêncios, o fervor religioso, a paixão pelas grandes causas e o desprezo pela programação; a paixão, a poesia; o despojamento de Siza e a casa portuguesa de Raul Lino; a guitarra de Paredes e as guitarras de Coimbra; o cante e o canto das mulheres minhotas, o adufe, o cavaquinho, os Dead Combo; as tabernas e os impérios do Espírito Santo; o Ecce Homo de Nuno Gonçalves e as abstracções de Vieira da Silva, a cor de Eduardo Viana; os seres fantásticos de Rosa Ramalho; o pirilau ao 25 de Abril e o Dom Sebastião do Cutileiro; o 13 de Maio em Fátima, as procissões aos estádios, os foguetórios de Verão; o sal, o Sol, as dunas e o Reininho; as auto-estradas silenciosas a rasgar o Alentejo e as estradas abandonadas do interior; o cheiro a esteva; as costas Norte das ilhas; a morna, o kuduro, os ícones ortodoxos, o jeitinho; o tôu chim, o bom djia, o bintóito, o marafado, as precisons, a cova no pêto. As memórias próprias (e "as memórias" caminham para ser o próximo lugar-comum da restauração) mas - e principalmente - as alheias e o que o outro, nosso próximo, fez com elas - de Fernão Mendes Pinto a Garrett, de Camões a Bulhão Pato.
(Fontes inúmeras; obrigado aos autores pelo empréstimo involuntário) |
Em vez de respostas feitas, gostaria de os ver esperar até ouvir as perguntas. Abrirem os olhos, ouvidos, nariz, mergulhando na realidade.
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