Eu arisco, tu riscas, ele arrisca
Dois dias de conversa, três dias de reflexão, um texto.
Realizou-se mais um Congresso Nacional dos Cozinheiros (o 12º) e os dois dias em que aconteceu foram fartos em pistas para quem quer seguir mais de perto o panorama restaurativo nacional.
Nas frases ditas, nos subentendidos percebidos, nos silêncios e nas omissões, foi possível confirmar suposições, adensar mistérios, clarificar posições, entender as possibilidades do futuro próximo. Houve lugar a discursos emotivos com alguma racionalização a cosê-los e a discursos racionais que trouxeram alguma emoção. A declarações gastas que apareceram como muito contemporâneas e a afirmações repetidas que continuam muito actuais. A loucuras aparentes, muito bem controladas e muito mais cénicas que desregradas.
Falou-se de projecto de reabilitação da memória - um a sério, outro a levar-se a sério. Falou-se da "humildade dos portugueses" como uma qualidade que importa realçar.
Falou-se de utopias e das ligações entre a cozinha e a arte - e eu gostei das pistas, da reflexão e do RISCO que é falar dessas coisas a uma plateia que se pode revelar intolerante, desinteressada, fechada na sua cultura.
Falou-se da ligação existente entre culturas gastronómicas diferentes, dos pratos reminiscentes, das matérias-primas que parecem autóctones pelo uso intensivo mas que chegaram um dia de um pôr-do-Sol distante.
O peixe e os frutos do mar estiveram omnipresentes - como não poderiam deixar de estar? - e o RISCO esteve nos pratos tonais que com eles se criaram, nos sabores tomados emprestados com que os enrouparam.
Também a carne foi estrela, principalmente na divulgação dos sabores da maturação a sério, contribuindo para aumentar o risco da careca descoberta a quem (e o número alarga-se) anda a apregoar maturação nas peças onde ela não existe.
A frase que Francis Mallmann inscreveu em 2013 na carta aberta dirigida à organização do 50 Best - América Latina -
- também pairou sobre a bancada, ainda que com significado diferente para cada um dos presentes estivessem eles na audiência ou no palco. (A propósito: arte também tem a ver com os sentidos e a partilha; cozinha também é pensamento. A ênfase da posição do cozinheiro argentino está no posicionamento e na relação dos cozinheiros com a cozinha e o mundo - diferença, fama, juventude, humildade, reflexão, práctica, experiência.)
Perante esta feira de virtudes/vaidades, talvez a frase de Nuno Diniz tenha sido a mais perfeita para tudo colocar em perspectiva ("Como o tema era o Risco, ainda pensei em vir com um risco na testa mas depois esqueci-me").
Concretizando pela positiva, realço o que mais gostei:
- O "suporte de comida" ("prato" é, simultaneamente, uma imprecisão e uma desconsideração) que Tiago Feio apresentou como exemplo do caminho de reflexão e investigação que está a fazer em torno da relação entre a forma de apresentação de um prato e a forma de o consumir. Vanguarda é isto (não é só mas também): a capacidade de lançar ideias, hipóteses de caminhos, sem medo de rejeição, mesmo que os mesmos se mostrem impraticáveis ou irrealizáveis. Haverá risco maior?
- A síntese que Nuno Diniz, ainda vestido com o jet lag da sua presença no México, soube oferecer entre tradições culinárias lusitanas e mexicanas. Mais ainda, a chapelada dada com o convite aos fantásticos homens da Tertúlia do Petisco, de São Miguel, Paulo Mota e Álvaro Lopes.
- O mea culpa dos erros do passado de Ljubomir Stanisic, todo entranhas, de raiva e de frontalidade. Mais uma vez, um estrangeiro a falar-nos de portugalidade e a sintetizar com brilho uma noção de Portugal. "Este cubo (um paralelipídedo viário de granito) é o maior símbolo de Portugal: está por todo o lado, identifica-nos, é a nossa presença perene". Brilhante. Brilhante igualmente foi a assistência de Vitor Adão e a peça maturada grelhada para ambiência mas que seria um crime desperdiçar no final.
- As peças maturadas trazidas pelo Rui Martins.
- As ligações avançadas por Delfim Sardo entre a cozinha de Hugo Brito e as intervenções do artista americano Gordon Matta-Clark, nomeadamente o conceito desenvolvido por este de arte perfomativa originada nos actos de cozinhar e de comer no restaurante FOOD.
- A Cozinha Portuguesa a Gostar dela Própria. Grande nome, grande projecto, certa ponte para o que fomos, para o que somos.
- O desafio feito a todos por Patrick Mignot (Gamimino), o chefe pasteleiro francês que nos habita há décadas: a realização de um grande jantar de solidariedade, em Fevereiro de 2018, onde toda a comunidade restaurativa do país se possa reunir pro bono em torno de um projecto.
- Nuno Mendes e a "exploração da cor", uma curiosidade rara neste mundo que maioritariamente parece oscilar entre um orgulhoso ponto zero de cultura e um não menos orgulhoso ponto artístico qualquer.
- Os empratamentos do Pedro Moura Bastos.
- O posicionamento do João Rodrigues: "risco é a simplicidade".
Infelizmente, não pude ficar para as apresentações do Leandro Carreira, Henrique Sá Pessoa e Alexandre Silva - muito haveria que aprender...
Para onde vamos, para onde vai a cozinha restaurativa de Portugal? Ah, vai por aí, com a presença crescente de turistas a possibilitar a massa crítica suficiente para sustentar projectos mais ousados, com mãos talentosas, juventude esclarecida e visionária, cozinheiros que muito sabem e muito têm a dar, cozinheiros fora da caixa. E o caminho faz-se caminhando...
Realizou-se mais um Congresso Nacional dos Cozinheiros (o 12º) e os dois dias em que aconteceu foram fartos em pistas para quem quer seguir mais de perto o panorama restaurativo nacional.
Nas frases ditas, nos subentendidos percebidos, nos silêncios e nas omissões, foi possível confirmar suposições, adensar mistérios, clarificar posições, entender as possibilidades do futuro próximo. Houve lugar a discursos emotivos com alguma racionalização a cosê-los e a discursos racionais que trouxeram alguma emoção. A declarações gastas que apareceram como muito contemporâneas e a afirmações repetidas que continuam muito actuais. A loucuras aparentes, muito bem controladas e muito mais cénicas que desregradas.
Falou-se de projecto de reabilitação da memória - um a sério, outro a levar-se a sério. Falou-se da "humildade dos portugueses" como uma qualidade que importa realçar.
Os bomboms do Francisco Siopa Falou-se de pastelaria, mas pouco. Faltou um show cooking de um dos bons nomes que passaram pelo Congresso |
Falou-se da ligação existente entre culturas gastronómicas diferentes, dos pratos reminiscentes, das matérias-primas que parecem autóctones pelo uso intensivo mas que chegaram um dia de um pôr-do-Sol distante.
Um dos dois ramen disponibilizados pelo Paulo Morais |
Lapas açorianas trazidas pela Tertúlia do Petisco: Nuno Diniz e a mão estendida aos Açores |
A frase que Francis Mallmann inscreveu em 2013 na carta aberta dirigida à organização do 50 Best - América Latina -
"Prémios criaram um ambiente fictício e ultra competitivo para nossa cultura gastronómica. Inovação parece ser o principal valor. Embora não haja nada de errado com (a inovação), afastou-nos da valorização de um ofício em favor do que chamam de arte. Jovens chefs tentam atravessar pontes muito antes do que deveriam só para serem diferentes, famosos ou novos. Arte é um pensamento intelectual, e comida e vinho têm mais a ver com os sentidos e a partilha. Comida e vinho fazem-nos mais aguçados, espirituosos. Só aí podem estimular nossos pensamentos e melhorar nossa comunhão com colegas, amigos, amantes. Certamente a cozinha pode ser intelectual, mas deveria sê-lo de modo mais silencioso e –atrevo-me a dizer – humilde."
- também pairou sobre a bancada, ainda que com significado diferente para cada um dos presentes estivessem eles na audiência ou no palco. (A propósito: arte também tem a ver com os sentidos e a partilha; cozinha também é pensamento. A ênfase da posição do cozinheiro argentino está no posicionamento e na relação dos cozinheiros com a cozinha e o mundo - diferença, fama, juventude, humildade, reflexão, práctica, experiência.)
Perante esta feira de virtudes/vaidades, talvez a frase de Nuno Diniz tenha sido a mais perfeita para tudo colocar em perspectiva ("Como o tema era o Risco, ainda pensei em vir com um risco na testa mas depois esqueci-me").
Concretizando pela positiva, realço o que mais gostei:
- O "suporte de comida" ("prato" é, simultaneamente, uma imprecisão e uma desconsideração) que Tiago Feio apresentou como exemplo do caminho de reflexão e investigação que está a fazer em torno da relação entre a forma de apresentação de um prato e a forma de o consumir. Vanguarda é isto (não é só mas também): a capacidade de lançar ideias, hipóteses de caminhos, sem medo de rejeição, mesmo que os mesmos se mostrem impraticáveis ou irrealizáveis. Haverá risco maior?
O suporte feito pelo designer Manuel Netto e a proposta de utilização de Tiago Feio: Culinária haute couture ou uma das vias do futuro? |
- O mea culpa dos erros do passado de Ljubomir Stanisic, todo entranhas, de raiva e de frontalidade. Mais uma vez, um estrangeiro a falar-nos de portugalidade e a sintetizar com brilho uma noção de Portugal. "Este cubo (um paralelipídedo viário de granito) é o maior símbolo de Portugal: está por todo o lado, identifica-nos, é a nossa presença perene". Brilhante. Brilhante igualmente foi a assistência de Vitor Adão e a peça maturada grelhada para ambiência mas que seria um crime desperdiçar no final.
- As peças maturadas trazidas pelo Rui Martins.
Carne maturada pelas Carnes Jacinto: o corte... |
... e a finalização na grelha, no dia seguinte. |
Restaurante FOOD: Performance e alimentação (Fonte: http://moussemagazine.it/articolo.mm?lang=it&id=55) |
Delfim Sardo e Hugo Brito: a abordagem do crítico de arte à cozinha do Boi-Cavalo |
Tiago Pereira e André Magalhães: o realizador e um dos intérpretes do projecto Esporão & A Cozinha Portuguesa a Gostar dela Própria (videos disponíveis aqui) |
- Nuno Mendes e a "exploração da cor", uma curiosidade rara neste mundo que maioritariamente parece oscilar entre um orgulhoso ponto zero de cultura e um não menos orgulhoso ponto artístico qualquer.
- Os empratamentos do Pedro Moura Bastos.
- O posicionamento do João Rodrigues: "risco é a simplicidade".
Infelizmente, não pude ficar para as apresentações do Leandro Carreira, Henrique Sá Pessoa e Alexandre Silva - muito haveria que aprender...
Para onde vamos, para onde vai a cozinha restaurativa de Portugal? Ah, vai por aí, com a presença crescente de turistas a possibilitar a massa crítica suficiente para sustentar projectos mais ousados, com mãos talentosas, juventude esclarecida e visionária, cozinheiros que muito sabem e muito têm a dar, cozinheiros fora da caixa. E o caminho faz-se caminhando...
Comentários
Obrigado pela partilha e pelas tuas palavras, grande abraço.