O destravar da Browning
Somos uma humanidade de círculos, tudo mais tarde ou mais cedo volta ao seu princípio, Apesar das vozes encartadas recuso em absoluto e tristemente a ideia de que a História não se repete.
Repete-se.
Ciclicamente, a ignorância acumula-se até despertar o medo o qual, a seu tempo, levará à intolerância que, inevitavelmente, aclamará à ditadura de uns sobre muitos ou de muitos sobre alguns.
(Wenn ich Kultur höre ... entsichere ich meinen Browning!)
Felizmente que, apesar dos acarinhados sets de facas, os cozinheiros ainda são, fora das suas cozinhas, gente pacífica, aberta à novidade e à experimentação, aos desafios e à descoberta. E a esmagadora maioria, apesar do peso da palavra, quando lhes falam de Arte - da Arte das coisas e dos olhares, da sua própria Arte de pensar e sentir e transmitir - é gente para iniciar viagens de espírito aberto e muito entusiasmo.
Quando oiço falar de Cultura... desembainho a minha IVO (porque sou português e só uso o produto nacional).
"Cubo", Praça da Ribeira Porto - Autor: José Rodrigues (1976) (Fonte: dn.pt) |
Do modo que eu o leio, está ali para nos lembrar que, na vida, as certezas são efémeras e as impossibilidades às vezes se tornam realidade: há equilíbrios improváveis que acontecem e elementos cuja estabilidade depende do modo como se inserem no espaço. Faz-nos pensar.
(Já falei de cultura - agora vou falar de cozinha.)
Ontem, num jantar de casamentos, deparei-me com uma das mais interessantes provocações que me aconteceram nos últimos tempos.
É um cubo.
É uma sobremesa.
É feito com jus de carne.
Foi imaginado como resposta ao desafio de harmonizar uma sobremesa com vinho tinto - no caso o Super Reserva Douro DOC da Santos da Casa, um vinho adulto, cheio de cambiantes, a merecer longos diálogos de descoberta.
Era uma improbabilidade. Estava-lhe destinado ser um equilíbrio aflito para se manter (afinal carne é para prato do meio e sobremesa faz-se com matérias-primas doces, certo?), um falhanço à espera de acontecer, um torcer de nariz a caminho, sussurros de escárnio e maldizer. Começou normal, com o açúcar, para subjacente, o gosto da proteína começar a afirmar a presença, a pedir a companhia do vinho, a criar uma aliança radicalmente diversa do que é hábito.
Como lhe competia, a uns encantou a outros desiludiu. Incitou à reflexão (Porque pensei que não ia gostar? Porque é que não gosto / porque é que gosto?). Foi um sucesso. Os Santos da Casa fazem milagres.
Ovação ao seu criador e homem do risco, Miguel Paulino. Palmas para o vinho que o motivou e insistiu no desafio do casamento e que apadrinhou o enlace.
Quanto ao restante jantar, provou mais uma vez que o Panorama é uma casa que consegue manter uma cozinha de alto coturno na restauração da cidade e que a Santos & Seixo traça um caminho muito sério na construção de um portefólio que vai demonstrando as várias possibilidades do Portugal vinícola.
Começou pela Bola de Berlim mais cabotina que provei, procurando inverter papeis tradicionais (e fazendo a ponte para o final da refeição): um amuse-bouche doce que depois se revela salgado. Numa só dentada, o sabor único das Bolas comidas na praia temperadas com o ar salgado que nos preenchia o nariz. Comida de evocação e de novidade.
Bola de Berlim de coral de vieiras com presunto pata negra |
Tosta de frango com recheio de sapateira e ovas de salmão |
Cocktail Santos da Casa Douro DOC Branco 2015 |
- Os pormenores pousados à beira do creme de santola,
Creme de santola com requeijão, mil folhas de marmelo em noisete (acompanhamento: pão de cerveja preta e damascos) |
Bacalhau da horta amanteigado com creme de bochechas de bacalhau |
Lombo de borrego, cachaço de borrego, toucinho de borrego com castanhas |
Santos da Casa Reserva Douro DOC 2013 |
Queijo de passa de uva, gema de jus de carnes, gelado de alho maturado |
Santos da Casa Grande Reserva Douro DOC 2013 |
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