Lisboa podes ser francesa


A Lisboa gastronómica, nos últimos anos, inchou. Vive num desequilíbrio alegre, entre as pulsões das falsas memórias, o remanescente dos velhos hábitos, o brilho da procura externa, o sucesso nas redes sociais, o efémero bem pago. Come-se bem em Lisboa, come-se intensamente, come-se desbragada e prazerosamente. Come-se mal em Lisboa, come-se ilusoriamente, come-se ignorante e indiferentemente.

Quando se sai destas linhas do hábito, quando somos subtilmente desviados desta matriz a que nos fomos habituando (morremos mais um pouco em cada dia que nos repetimos, repetimo-nos quando nos julgamos em mudança) e, perante nós, se abre um verdadeiro futuro ou um realista passado, somos crianças perante a explicação do desconhecido. O milagre da verdade, quando se unem a descoberta e o reacordar do prazer.

Nos casos desse retorno ao passado, o que anteriormente era sinal de atavismo (o respeito pela norma) é hoje resultado da fuga à norma (buscamos novidade nos sinais do passado). E se, durante um tempo, procurámos a satisfação na diferença, hoje encontramos conforto nos sabores tradicionais.

Bom. Já vos cansei.

Neste vai-e-vem entre futuro e passado, neste turbilhão de procura de diversidade, nesta janela de oportunidade de negócio, uma das marcas que se vai afirmando é a da multiplicação de espaços gastronómicos de referência ou inspiração gálica: espaços back to the future para os mais seniores ou os mais viajados, alguns fine dining, a maioria pensados para a crescente classe média gastronomicamente entusiasmada, alguns com a secreta esperança de se tornarem fornecedores oficiais da diáspora conterrânea, outros com o ar mais blasé do mundo, a modos de quem, no meio de um flanar pela cidade, se enamorasse por uma nesga do Tejo, uma praça tranquila, um candeeiro melancólico e ali decidisse pousar a mochila e retomar os gestos culinários de toda uma tradição.

Ah, a França. A França, sim, novamente, a relembrar a primazia que já teve, a especial relação com o país e os lisboetas, apesar da canção, apesar das invasões, apesar da ocupação e da senhora Duquesa que, involuntariamente, nos enganou durante decénios com a maternidade da Perdiz à Convento de Alcântara, apesar dos solavancos do transporte em cegonha, directamente de Paris, de todos os nascidos até à descoberta do DNA.

(Para os mais distraídos: até ao terceiro quartel do século passado (mais memória menos memória), Lisboa continuava a cumprir o desígnio que, quase um século antes, Eça de Queirós lhe apusera - pensar de França, civilizar-se de França, comer de França; o francês era a segunda língua do país, a academia posicionava-se como uma extensão da Sorbonne, os restaurantes, uma extensão de Escoffier.)

No Chiado, existe um destes locais que, buscando ter como bandeira a cozinha de bistrot (o que significa sabores regionais franceses, de terroir, de calar fundo e dispor bem), não rejeitam o lugar de acolhimento e procuram, sem esquecer a origem, uma via de comunhão com as matérias-primas e as sensibilidades locais. Chama-se La Parisienne e à frente da cozinha está Xavier Charrier - "um chef francês que cozinha na mais pura tradição francesa" e que conheci num seu outro empreendimento, no Linhó, uma charcuterie a sério (o Chez Jules) onde andouillettes e queijos vários constituíam a minha perdição e que, infelizmente, terminou antes do seu tempo.

Xavier Charrier e Tomás Caldeira Cabral (House of Wines)
A carta de Inverno chegou nos finais de Novembro mas é neste frio polarizado que agora nos atinge que ela se justifica em pleno. Charcutarias diversas, com destaque para as rillettes e os pâtés; foie gras de canard au torchon maison: creme de castanhas, sopa de cebola; ovos escalfados em meurette; confit de pato com feijão branco, morcela negra de Lamego com batatas vitelotte, bochechas de porco estufadas;  crème brûlée, tarte tatin, profiteroles, são descaques, na comida de conforto disponível.

Em jantar de apresentação, foi possível descobrir alguns destes pratos, com casamento vínico seleccionado pela House of Wines.


Começou-se por um tártaro de robalo, com notas exóticas dadas pelo óleo de sésamo e maracujá, a que a presença das flores comestíveis fornecidas pela MicroGreens acrescentava cor e discreto complemento de textura,


Carpaccio de robalo com óleo de sesamo, maracujá e flores comestíveis
a que se seguiu um primeiro momento de exaltação - a sopa de peixe, acompanhada à maneira provençal de uma bouillabaisse, com o rouille (alho, miolo de pão, azeite e caldo), queijo ralado (no caso Emmenthal) e crôutons -,

Sopa de peixe caseira
 Queijo Emmenthal, Sauce rouille, Croûtons (da esq. para a dir.)
tendo-se viajado depois até à Borgonha e ao ovo escalfado em meurette (caldo de vegetais, carne ou peixe à base de vinho tinto, tradicional da região, onde se escalfa ou coze o ingrediente principal do prato): reconfortante, pleno de sabores.

Oeuf  "Meurette" 
Voltando ao Sul, o prato de peixe combinou a cavala com o crocante do panisse, frito típico de Nice (Provença), à base de farinha de grão e um refogado de tomate concassé.

Cavala à Niçoise

E para terminar em beleza a parte salgada, umas bochechas de porco estufadas em vinho tinto (novamente o dedo borgonhês) com um gratinado de batata-doce e Fourme d'Ambert (um queijo azul sensacional, proveniente da região de Auvergne). De fazer chorar de satisfação as pedras da calçada antes da repavimentação politicamente correcta que as amputou da esmagadora maioria com que dominavam os passeios da capital. Texturas a pedir vagar, sabores de sala com salamandra, molho a pedir muito pão, apoteose.

Bochechas de porco
Para sobremesa, um cruzamento entre as receitas portuguesa e francesa da "poire au vin" e da "pera bêbeda", aqui cozida em vinho do Porto, ensaiando pontes quente-frio, macio-crocante, acido-doce. Muito bem.

Pera caçada no vinho do Porto, gelado de baunilha

Café gourmand caseiro
Crumble de frutos secos e tártaro de maçã com pimenta rosa, biscuit breton, trufa de cocolate preto
E com a comprovação de que a história se repete renovada e, em moldes diferentes, nos retraz muitos dos prazeres gastronómicos que, em tempos encantaram e marcaram a cidade, assim terminou o jantar, com um café de lote especial e um brinde a todos os intervenientes, do proprietário, Olivier Vallancien, a toda a equipa da sala e cozinha, do autor Xavier Charrien ao enófilo Tomás Caldeira Cabral.

O chef Charrier com a aguardente Caves S. João que acompanhou o café

Olivier Vallancien


E vale a pena este encontro gastronómico de duas cidades com luz? Vale - vale o espaço tranquilo, sóbrio, vale a comida de conforto, vale o sinal cosmopolita, vale a sobriedade de fazer bem, sem exageros de moda, nem tiques que, de tão verdes, se tornam efémeros na nossa memória. Santé!

La Parisienne Bistrot Français
Largo Rafael Bordalo Pinheiro, 18
Lisboa
Tel: 964 203 947




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