Pão de Deus
"... e tomando o pão, o partiu e o deu a seus discípulos, dizendo, este é o meu corpo, tomai e comei..."
O pão não se tornou importante porque toma parte da mais importante cerimónia do mundo cristão; inversamente, foi nela introduzido porque era um elemento fundamental da realidade do seu tempo (e a nascente religião precisava de âncoras que a ligassem aos símbolos contemporâneos mais importantes), continuando a sê-lo no presente, no cadinho de culturas e crenças ocidentais iniciado no crescente fértil e dilatado pelas sociedades que a partir dele se desenvolveram e cresceram beirando o Mediterrâneo, estabelecendo testas de ponte, conquistando territórios, moldando-os à sua imagem de ordem e coerência social.
A nós, portugueses de influência árabe ou norte europeia, o pão continua a moldar o ritmo diário, mesmo ameaçado por modas dietéticas ou medos medicinais. Pequeno-almoçamos uma macia e adocicada sandes de pão de forma ou uma carcaça com queijo fresco, uma fatia de pão de quilo a acamar uma dose generosa de requeijão e mel; almoçamos o calor que chega com uma sardinha a pingar gordura sobre uma fatia de pão saloio, esquecemos o frio com um guisado fumegante empurrado com pedaços de papo-seco ou confortamos a alma com uma açorda melosa ou umas gulosas migas; lanchamos no recato de uma pastelaria um chá com uma torrada voluptuosa e excessivamente barrada com manteiga; jantamos um caldo verde aspergido com pedacinhos de pão de centeio ou um bacalhau adormecido no forno com uma mantilha de broa de milho ralada.
Mesmo ateus comungamos, diariamente e cheios de fé, o corpo do nosso deus.
Lisboa (como o resto do país; mas falemos de Lisboa...) tem o seu panpanião: o pão saloio (que, vindo de Mafra, da região herdou o nome), o papo-seco (de farinha de trigo extra e originalmente embalado em papel de seda, e que emprestou o nome a quem se vestia com aprumo), a carcaça (que o substituiu, nos anos 50 do século XX como forma de aumentar a rentabilidade das padarias face às reduzidas margens que a lei permitia) que nele repousam como arquétipos de um pão que, no presente, se faz com massas industrializadas, normalizadas, higienizadas, iguais no gosto e na impressão do sabor, de apelo fácil e discordância nula.
Por não vir em lata, frasco ou embalagem de cartão, agradecemos a ilusão da sua pureza natural, alegres aceitamos a enfadonha homogeneização do gosto em troca da garantia europeia de higienização completa do produto (finalmente cremos estar cumprido o desejo escrito, em 1910, por um hoje anónimo: "o lisboeta continua esperando o dia em que a machina o há-de livrar de comer pão amassado com o suor do rosto do padeiro, adubado com tudo quanto elle possa tirar do nariz, e preparado em casas que podem confundir-se com estrumeiras. E depois de cozido até chegar à nossa, pode passar por mãos de sarnento, de tuberculoso, de syphilitico, trambolhar pelo chão, rolar nas calçadas sobre excremento, tornar-se em suma n’um repositório de immundicie e agentes pathogenicos").
Felizmente que, como em todas as questões importantes, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não. Na gastronomia, quem entenda que do passado há muito para conservar, adaptando ou actualizando; quem procure manter gestos, matérias-primas, sabores.
Na panificação, contra a corrente dos pães igualitários filhos de farinhas seleccionadas provenientes de cereais apurados em laboratório (nada contra, desde que não se exijam totalitários!), vão nascendo pequenos projectos com propostas bem interessantes, diferenciadas.
Como a Gleba, padaria aberta ao público há cerca de um mês e que, seguindo o lema que norteia a tese que o seu criador Diogo Amorim escreve para o Mestrado em Ciências Gastronómicas, procura aprimorar os produtos que cria juntando o conhecimento científico à tradição empírica, para:
Por aqui produz-se pão feito a partir da farinha de variedades tradicionais, de pequenas produções, procuradas com atenção por todo o país. Variedades moídas na padaria, em moinho de pedra resgatado ao destino e reparado com saber.
Pães de trigo Barbela, variedade desde há muito tempo cultivada em todo o distrito de Bragança e que reúne um conjunto de características que lhe proporcionam grande rusticidade e capacidade de adaptação às difíceis condições edafo-climáticas da zona (a par de produzir palha em quantidade e quantidade o que a torna a preferida dos agricultores da zona).
Ou de 100% centeio "verde" originário da aldeia de Nogueira, concelho de Bragança.
Ou broa de milho branco da variedade tradicional "Pigarro" do Minho, caracterizada por produzir pão com elevada qualidade (tem elevado teor em cinzas (teor proteico), o que afeta o pH durante a fermentação, influenciando a qualidade da broa), ao qual se acrescentam o centeio verde e o trigo Barbela, com uma composição que evoca a broa do Vale do Sousa.
Pães com uma acidez marcada, mais impressiva que a plácida paisagem que se generaliza, pães com personalidade, pães feitos com amor e curiosidade, pães lusitanos.
A partir das 9:00, até às 20:00, é ir, descobrir, provar, retornar.
GLEBA, Moagem & Padaria
Rua Prior Crato, nº 14, 16 e 18
1350-352, Estrela, Lisboa
(+351) 966064697
geral@gleba-nossa.pt
O pão não se tornou importante porque toma parte da mais importante cerimónia do mundo cristão; inversamente, foi nela introduzido porque era um elemento fundamental da realidade do seu tempo (e a nascente religião precisava de âncoras que a ligassem aos símbolos contemporâneos mais importantes), continuando a sê-lo no presente, no cadinho de culturas e crenças ocidentais iniciado no crescente fértil e dilatado pelas sociedades que a partir dele se desenvolveram e cresceram beirando o Mediterrâneo, estabelecendo testas de ponte, conquistando territórios, moldando-os à sua imagem de ordem e coerência social.
A nós, portugueses de influência árabe ou norte europeia, o pão continua a moldar o ritmo diário, mesmo ameaçado por modas dietéticas ou medos medicinais. Pequeno-almoçamos uma macia e adocicada sandes de pão de forma ou uma carcaça com queijo fresco, uma fatia de pão de quilo a acamar uma dose generosa de requeijão e mel; almoçamos o calor que chega com uma sardinha a pingar gordura sobre uma fatia de pão saloio, esquecemos o frio com um guisado fumegante empurrado com pedaços de papo-seco ou confortamos a alma com uma açorda melosa ou umas gulosas migas; lanchamos no recato de uma pastelaria um chá com uma torrada voluptuosa e excessivamente barrada com manteiga; jantamos um caldo verde aspergido com pedacinhos de pão de centeio ou um bacalhau adormecido no forno com uma mantilha de broa de milho ralada.
Mesmo ateus comungamos, diariamente e cheios de fé, o corpo do nosso deus.
Lisboa (como o resto do país; mas falemos de Lisboa...) tem o seu panpanião: o pão saloio (que, vindo de Mafra, da região herdou o nome), o papo-seco (de farinha de trigo extra e originalmente embalado em papel de seda, e que emprestou o nome a quem se vestia com aprumo), a carcaça (que o substituiu, nos anos 50 do século XX como forma de aumentar a rentabilidade das padarias face às reduzidas margens que a lei permitia) que nele repousam como arquétipos de um pão que, no presente, se faz com massas industrializadas, normalizadas, higienizadas, iguais no gosto e na impressão do sabor, de apelo fácil e discordância nula.
Por não vir em lata, frasco ou embalagem de cartão, agradecemos a ilusão da sua pureza natural, alegres aceitamos a enfadonha homogeneização do gosto em troca da garantia europeia de higienização completa do produto (finalmente cremos estar cumprido o desejo escrito, em 1910, por um hoje anónimo: "o lisboeta continua esperando o dia em que a machina o há-de livrar de comer pão amassado com o suor do rosto do padeiro, adubado com tudo quanto elle possa tirar do nariz, e preparado em casas que podem confundir-se com estrumeiras. E depois de cozido até chegar à nossa, pode passar por mãos de sarnento, de tuberculoso, de syphilitico, trambolhar pelo chão, rolar nas calçadas sobre excremento, tornar-se em suma n’um repositório de immundicie e agentes pathogenicos").
Felizmente que, como em todas as questões importantes, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não. Na gastronomia, quem entenda que do passado há muito para conservar, adaptando ou actualizando; quem procure manter gestos, matérias-primas, sabores.
Na panificação, contra a corrente dos pães igualitários filhos de farinhas seleccionadas provenientes de cereais apurados em laboratório (nada contra, desde que não se exijam totalitários!), vão nascendo pequenos projectos com propostas bem interessantes, diferenciadas.
Como a Gleba, padaria aberta ao público há cerca de um mês e que, seguindo o lema que norteia a tese que o seu criador Diogo Amorim escreve para o Mestrado em Ciências Gastronómicas, procura aprimorar os produtos que cria juntando o conhecimento científico à tradição empírica, para:
- "Produzir o melhor pão, de forma natural e a partir dos melhores cereais portugueses.
- Trazer de volta o pão que os nossos avós comiam, um produto nutritivo, saudável e extremamente saboroso."
Por aqui produz-se pão feito a partir da farinha de variedades tradicionais, de pequenas produções, procuradas com atenção por todo o país. Variedades moídas na padaria, em moinho de pedra resgatado ao destino e reparado com saber.
O moinho com mós de pedra, pronto a trabalhar |
Pães de trigo Barbela, variedade desde há muito tempo cultivada em todo o distrito de Bragança e que reúne um conjunto de características que lhe proporcionam grande rusticidade e capacidade de adaptação às difíceis condições edafo-climáticas da zona (a par de produzir palha em quantidade e quantidade o que a torna a preferida dos agricultores da zona).
Pão de trigo (variedade Barbela) |
Ou de 100% centeio "verde" originário da aldeia de Nogueira, concelho de Bragança.
Pão de centeio |
Broa de milho |
Pão de trigo (Barbela de Rebordãos, Ttrás-os-Montes) com amêndoa (alfândega da Fé) e figo (Macedo de Cavaleiros) |
Pão de trigo (variedade Morto-Vivo) |
GLEBA, Moagem & Padaria
Rua Prior Crato, nº 14, 16 e 18
1350-352, Estrela, Lisboa
(+351) 966064697
geral@gleba-nossa.pt
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