Mar adentro
Pela tardinha, o céu momentaneamente azul antecipava o que viria a caracterizar o especial jantar do dia, a ter lugar no restaurante Terraço do Martinhal Sagres: o reflexo do mar e as nuvens como espuma da rebentação, as linhas que a passagem dos aviões deixava, uma indicação de viagens em direcção ao Sul e do continente para o mar. Um percurso ao longo das ofertas da costa a consubstanciar o percurso de vida de dois criadores - Daniel Estriga, (CONCEITO FOOD STORE) o cozinheiro, João Barbosa, o produtor de surpreendentes vinhos (NINFA) a que se juntou o caminhar do casal Chitra e Roman Stern, os proprietários e mentores deste projecto family resort.
Tantas vidas, tantos olhares, tantas experiências e ideias a confluir na mesa, nos pratos que alguns insistem em considerar apenas como comida mas que, pelo menos para mim, são muito, muito mais.
O íntimo e muito egoísta prazer que sempre sinto quando participo nestes jantares de generalização rarefeita vem acompanhado por uma mal afastada tristeza pelo silêncio relativo a que projectos tão estimulantemente autorais acabam por ser votados pela gritaria das modas, pelo néon das facilidades, pelas lantejoulas das muitas vezes injustas e apressadamente avaliadoras redes sociais. Vejam-me assim, aqui e agora a denunciar a injustiça neste caso praticada e que tento colmatar - que grande jantar, que tão acertada combinação que casamento que foi mais que a soma das (já de si boas) partes!
Comece-se pelos objectivos: uma refeição composta apenas de pratos com produtos do mar como proteína principal, a evocar e celebrar a riqueza e diversidade da fauna da costa portuguesa atlântica, de Cascais a Sagres. Uma viagem, um percurso de sabores, pela mão de alguém que, persistentemente, tem feito do seu restaurante em Bicesse um lugar de experimentação e confirmação, de bons momentos. Uma refeição pensada em conjunto com os vinhos do produtor João Barbosa, a considerar as suas possibilidades e variedades, num esforço dual de audição de sentidos. Grandes vinhos, filhos nítidos de um terroir muito característico e praticamente único do país, juntando os solos argilo-calcários (com presença de calcário activo) e, principalmente, a salinidade (os vinhedos são vizinhos das Salinas de Rio Maior, uma mina de sal-gema) ao clima de transição entre a proximidade marítima da região de Lisboa e o interior da região Tejo, mais seco, com a serra dos Candeeiros como divisória e protectora, em encosta virada a Sul.
Passe-se então aos resultados: uma entrada, seis pratos, uma sobremesa, harmonizados com quatro vinhos, numa sucessão que aqui se explana:
Ninfa Colheita Branco 2015
Um vinho muito especial, com uma bem distinguível salinidade, frescura, um toque vegetal, a sair da maioria dos trilhos dos vinhos brancos nacionais. Da minha experiência, um dos raros que me agradaria beber a solo, junto ao mar, num dia de Primavera, quente mas não escaldante, com a companhia certa, a pensar na companhia certa ou a escrever sobre a companhia certa... Vinho de carácter - isto é, um vinho que se recorda, que assume a diferença, vinho de risco porque contrário à corrente, vinho verdadeiramente "fruto da videira e do trabalho de homem", no caso de um produtor com saber, sabor e paixão.
Uma entrada logo a marcar posição: o impacto visual da quase abstracção das formas geométricas simples - círculo, linha, quadrado - e o trabalho sobre sabores marinhos que se revela na boca e faz paralelo com as notas de sal do vinho. Dado o mote, iniciadas as conversas.
E eis que o primeiro prato desenvolve os vários temas: Cascais e o polvo da memória do Chefe, notas exóticas (exteriores, se quiserem) do abacate e da lima, untuosidade e acidez a acordar com o vinho, o trabalho sobre as texturas. Sabores que a memória reconhece enriquecidos - dobrados, realçados, provocados - pelas novas adições.
Continuando a viagem evocativa, passagem por Sesimbra e o gosto do espadarte, emblema da vila, chamariz de pescadores desportivos de todo o mundo desde os anos 50 do século passado. Uma técnica internacional para uma referência mundial, também aqui o sabor e a textura da carne a encontrar um bom interlocutor no vinho. Quanto às algas, a encantarem com o seu crocante e a relembrarem o tão pouco utilizadas que sempre foram na nossa culinária, apesar da presença fortíssima nas duas costas. Visualmente a fazer-me lembrar a dualidade da sociedade japonesa, entre a contenção e o minimalismo e a explosão pop (o gel, quase recriação da bandeira do Sol Nascente).
Ninfa Rosé 2015 (Alfrocheiro e Aragonês 50/50)
Um rosé também fora dos padrões mais habituais, ainda com a leveza inerente mas com uma frescura e, especialmente, diversidade de estímulos (está bem, não quis escrever complexidade...) que o tornam interessante de ouvir. Mineralidade menos acentuada que o anterior mas ainda presente, uma nota de fumo que se viria a revelar em sintonia com o comido. Sensata escolha para os dois próximos pratos, a continuar a harmonia perfeita sentida anteriormente.
Prosseguindo para a vizinha Setúbal, um choco frito re-olhado (e não gostaria de utilizar nem "recriado" nem "reinterpretado") com uma sucessão de técnicas a deixá-lo em simultâneo crocante, suave, texturado, crestado - bonito -, com "hóstias" de merengue e tinta de choco a evocar o carvão e a acentuar o crocante trazendo, com isso, a memória das batatas fritas a que, gulosos e pouco ortodoxos, dificilmente conseguimos resistir. Prato de um amarelo explosivo, realçado pelo negro omnipresente, desconcertantemente apelativo (apaixonados pelo preto ocidentalmente de luto?).
Continuando o caminho para Sul, sem roer uma laranja mas com a lassidão do tempo quente, seguiu-se um lombo de sargo servido com uma massada que fez as delícias de todos e que a todos tornou mais gulosos. Em linha com as propostas anteriores, o jogo bem acentuado de texturas, notando e muito bem o chefe a necessidade de contrabalançar a suavidade e cremosidade da massa e do peixe com a de alguma forma agressiva folha de arroz. Gostei do pormenor da salicórnia, a oferecer em concentrado o sal, a crocância, o sabor marinho, com o contraponto - que também o é na cor (vermelho complementar do verde) - do tomate, do seu sabor a terra e Sol e textura suave.
Não resisto a repetir-me: ai a massada, tão pouco maçada de voltar e voltar a provar até ao rapar do tacho..
Ninfa Escolha Sauvignon Blanc
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Terceiro actor, um vinho de idade adulta, de uma contenção que explode na boca e com um corpo que exige contrastes. Alguma acidez e ainda a memória sugerida do terroir salino. Apresenta ainda as características notas herbáceas típicas da casta as quais casaram muito bem com o tom herbáceo do prato de raia.
Prato que poderia servir de tema para uma aula sobre texturas e equilíbrios, e que, irónica ou involuntariamente acentua pela inversa a importância do pão. Composição melosa, com a suavidade dos canónigos (ou alface-de-cordeiro) e cantar em uníssono com a da raia, a precisar urgentemente de equilíbrio, dado muito sensatamente pelo pão frito. Sabores subtis, postos em perspectiva pelo acre da fritura. Maturidade.
Ninfa Tinto, Colheita
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Aragonez, Touriga Nacional, Alfrocheiro num vinho sem estágio em madeira, bem longe do que é mais usual e aparenta ser o "gosto comum" actual. Óptimo e escolha interessante para o último prato antes das sobremesas, um acentuar de gostos que se comportou bem com este tinto.
A gordura da cavala contrastada com os taninos do vinho, bem acompanhada de notas orientais, com o exotismo das especiarias a acolher as notas de fruta vermelha. Um final muito bem pensado e a coroar uma refeição onde se saúda o diálogo perfeito entre os dois autores possibilitando o pleno de harmonizações.
Passando à sobremesa, idealizada em conjunto com o chef pasteleiro no Penha Longa Hotel Golf Resort, Diogo Lopes, uma graça evocativa do ambiente atlântico, com o cremoso em forma de peixe e os verdes do granizado dados pelas algas empregues. Mais uma vez, um trabalho não só sobre o sabor, complementaridades e aplicação de matérias-primas menos usuais, mas sobre as texturas. Acidez, doçura, sal, crocantes, cremosos. Muito bom
Parabéns ao criador e a apresentadora, parabéns ao produtor e anfitriões. Visitem o Conceito, experimentem as criações de João Barbosa, desfrutem o bom serviço do Martinhal Sagres. Com nenhum ficarão desiludidos.
Tantas vidas, tantos olhares, tantas experiências e ideias a confluir na mesa, nos pratos que alguns insistem em considerar apenas como comida mas que, pelo menos para mim, são muito, muito mais.
O íntimo e muito egoísta prazer que sempre sinto quando participo nestes jantares de generalização rarefeita vem acompanhado por uma mal afastada tristeza pelo silêncio relativo a que projectos tão estimulantemente autorais acabam por ser votados pela gritaria das modas, pelo néon das facilidades, pelas lantejoulas das muitas vezes injustas e apressadamente avaliadoras redes sociais. Vejam-me assim, aqui e agora a denunciar a injustiça neste caso praticada e que tento colmatar - que grande jantar, que tão acertada combinação que casamento que foi mais que a soma das (já de si boas) partes!
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Daniel Estriga, cozinheiro e proprietário do Conceito Food Store |
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João Barbosa, produtor (Adegas Porta de Teira (Tejo) e Valle de Junco (Alentejo)) |
Ninfa Colheita Branco 2015
Um vinho muito especial, com uma bem distinguível salinidade, frescura, um toque vegetal, a sair da maioria dos trilhos dos vinhos brancos nacionais. Da minha experiência, um dos raros que me agradaria beber a solo, junto ao mar, num dia de Primavera, quente mas não escaldante, com a companhia certa, a pensar na companhia certa ou a escrever sobre a companhia certa... Vinho de carácter - isto é, um vinho que se recorda, que assume a diferença, vinho de risco porque contrário à corrente, vinho verdadeiramente "fruto da videira e do trabalho de homem", no caso de um produtor com saber, sabor e paixão.
Uma entrada logo a marcar posição: o impacto visual da quase abstracção das formas geométricas simples - círculo, linha, quadrado - e o trabalho sobre sabores marinhos que se revela na boca e faz paralelo com as notas de sal do vinho. Dado o mote, iniciadas as conversas.
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Entrada Brioche de algas, manteiga de algas, creme de bacalhau, coentros e grão |
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Polvo da Linha (Cascais) Polvo cozinhado à lagareiro, puré de abacate e lima, emulsão de alho negro e ripas de espargo |
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Gladiador dos Mares (Sesimbra) Tataki de espadarte marinado com molho ponzu, gel de alga nori e salada de algas |
Ninfa Rosé 2015 (Alfrocheiro e Aragonês 50/50)
Um rosé também fora dos padrões mais habituais, ainda com a leveza inerente mas com uma frescura e, especialmente, diversidade de estímulos (está bem, não quis escrever complexidade...) que o tornam interessante de ouvir. Mineralidade menos acentuada que o anterior mas ainda presente, uma nota de fumo que se viria a revelar em sintonia com o comido. Sensata escolha para os dois próximos pratos, a continuar a harmonia perfeita sentida anteriormente.
Prosseguindo para a vizinha Setúbal, um choco frito re-olhado (e não gostaria de utilizar nem "recriado" nem "reinterpretado") com uma sucessão de técnicas a deixá-lo em simultâneo crocante, suave, texturado, crestado - bonito -, com "hóstias" de merengue e tinta de choco a evocar o carvão e a acentuar o crocante trazendo, com isso, a memória das batatas fritas a que, gulosos e pouco ortodoxos, dificilmente conseguimos resistir. Prato de um amarelo explosivo, realçado pelo negro omnipresente, desconcertantemente apelativo (apaixonados pelo preto ocidentalmente de luto?).
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O Choco de Setúbal (Setúbal) Choco (marinado em limão e alho, cozido, frito e braseado), maionese de limão e alho, "carvão" com merengue e tinta de choco, limão desidratado |
Continuando o caminho para Sul, sem roer uma laranja mas com a lassidão do tempo quente, seguiu-se um lombo de sargo servido com uma massada que fez as delícias de todos e que a todos tornou mais gulosos. Em linha com as propostas anteriores, o jogo bem acentuado de texturas, notando e muito bem o chefe a necessidade de contrabalançar a suavidade e cremosidade da massa e do peixe com a de alguma forma agressiva folha de arroz. Gostei do pormenor da salicórnia, a oferecer em concentrado o sal, a crocância, o sabor marinho, com o contraponto - que também o é na cor (vermelho complementar do verde) - do tomate, do seu sabor a terra e Sol e textura suave.
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Sabor a Férias em Porto Côvo Sargo com folha de arroz polvilhada com alga, massada com raia e lingueirão, espuma de ouriço do mar, salicórnia, espuma de pimento amarelo |
Ninfa Escolha Sauvignon Blanc
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Terceiro actor, um vinho de idade adulta, de uma contenção que explode na boca e com um corpo que exige contrastes. Alguma acidez e ainda a memória sugerida do terroir salino. Apresenta ainda as características notas herbáceas típicas da casta as quais casaram muito bem com o tom herbáceo do prato de raia.
Prato que poderia servir de tema para uma aula sobre texturas e equilíbrios, e que, irónica ou involuntariamente acentua pela inversa a importância do pão. Composição melosa, com a suavidade dos canónigos (ou alface-de-cordeiro) e cantar em uníssono com a da raia, a precisar urgentemente de equilíbrio, dado muito sensatamente pelo pão frito. Sabores subtis, postos em perspectiva pelo acre da fritura. Maturidade.
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Nem só de pão vive o Alentejo (Costa Vicentina) |
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Raia cozida a vapor, fígado de raia, canónigos e pão frito, amêndoa hidratada e molho à Bulhão Pato |
Ninfa Tinto, Colheita
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Aragonez, Touriga Nacional, Alfrocheiro num vinho sem estágio em madeira, bem longe do que é mais usual e aparenta ser o "gosto comum" actual. Óptimo e escolha interessante para o último prato antes das sobremesas, um acentuar de gostos que se comportou bem com este tinto.
A gordura da cavala contrastada com os taninos do vinho, bem acompanhada de notas orientais, com o exotismo das especiarias a acolher as notas de fruta vermelha. Um final muito bem pensado e a coroar uma refeição onde se saúda o diálogo perfeito entre os dois autores possibilitando o pleno de harmonizações.
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Cavala do Infante (Sagres) Cavala, puré de escabeche, rabanete laminado, salicórnia, gel de algas, caldo thai |
Passando à sobremesa, idealizada em conjunto com o chef pasteleiro no Penha Longa Hotel Golf Resort, Diogo Lopes, uma graça evocativa do ambiente atlântico, com o cremoso em forma de peixe e os verdes do granizado dados pelas algas empregues. Mais uma vez, um trabalho não só sobre o sabor, complementaridades e aplicação de matérias-primas menos usuais, mas sobre as texturas. Acidez, doçura, sal, crocantes, cremosos. Muito bom
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À pesca com Diogo Lopes Cremoso de cítricos envolto em chocolate branco; granizado de algas, tangerina e porto, areia de cascais triturada. |
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Pérolas Trufas de chocolate branco, laranja e alecrim |
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Daniel Estriga e Vanessa Pinto Cerqueira (que teve um desempenho impecável na apresentação de cada prato): um pairing perfeito |
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