Pão a Pão enche a cozinha este acto
Dá gosto.
Dá duplamente gosto.
Há semanas, tive uma pega com uma querida amiga, basicamente porque ouvíamos as mesmas palavras com significados diferentes, quando não estávamos longe de pretender defender ideias próximas. Girava a conversa à volta da nossa incapacidade em acolher quem recebemos e da incapacidade de quem chega em nos perceber. Notas de um país em auto-estima de terapia, ainda em processo de assimilar, dois mil anos depois, alguns dos pilares da matriz cristã que o forma - amar, partilhar, compreender, aceitar, ouvir - e igualmente os transmitir como essenciais a quem chega. Questões velhas, com respostas fáceis apenas para quem as não quer ver resolvidas. Olhe-se o mundo.
Como os que ainda não ascenderam a um Nirvana provinciano e umbilical sabem, Portugal comprometeu-se a fazer parte da tentativa de solução europeia para o imenso drama que representa a fuga maciça de cidadãos sírios da guerra civil que assola o país há vários anos. Não me interessa discutir os méritos ou deméritos da acção comunitária, ou qualquer pormenor do conflito; entristece-me o modo pouco interessado e muito reactivo como se comporta a sociedade europeia ocidental perante um problema humanitário que, só nos últimos 70 anos, não foi o seu. Somos o que somos, estando prontos para endossar honorários de milhões a desportistas ou cantores, para aceitar obras públicas milionárias pouco essenciais ou para conceder apoios estatais a privilégios pouco comunitários, desde que não nos afectem a zona de conforto. Sair dessa zona de conforto, caminhar o quilómetro extra, assumir a sua crença, cristã ou socialista, solidária ou humanista é, infelizmente, opção para poucos.
Bom - e nestas alturas, gosto muito que os poetas me relembrem as palavras certas -, apesar do negrume e do cinzentismo (e são estas são cores bem diferentes que, para nosso mal. podem co-existir sem atropelo mútuo), há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não.
O projecto Pão a Pão consubstancia um desses gestos de resistência, baseando-se numa palavra que ( apesar de se ter tornado num eco que, de tanto usado, ameaça tornar-se sem sentido para quem a ouve) define uma ideia muito bonita: capacitar. No caso presente, não se trata de ensinar a fazer, antes de possibilitar fazer, criar a capacidade de fazer. Porque acolher não é esmolar - é ajudar a reerguer. É um projecto de integração social de dois grupos particularmente vulneráveis no universo da comunidade síria que nos habita: as mulheres e os jovens adultos e adolescentes (que, por causa da guerra, viram o seu percurso escolar interrompido, não tendo adquirido formação que lhes permite encontrar trabalho especializado) e que o quer fazer a partir da cozinha. Começou pela junção de vários sentimentos - o de saudade dos sabores da sua terra da estudante de arquitectura Alaa Alhariri (principalmente do pão); o da vontade de fazer mais da jornalista (Público) Francisca Gorjão Henriques e da designer Rita Melo - que, inicialmente, idealizaram uma padaria síria a qual, com a evolução do projecto,se "transformou" num restaurante de cozinha síria/levantina: o "Mezze" (um conjunto de pequenos pratos ou entradas, servidos para acompanhar bebidas ou para iniciar uma refeição). Não um restaurante por si só: antes a meta para um espaço multicultural orientado para os grupos atrás citados, de acolhimento e formação e que lhes permita depois receber os visitantes/clientes com a variada e rica cozinha do Médio Oriente e onde igualmente caberão a música, a escrita e todos os mais saberes disponíveis para partilhar.
Recentemente, no espaço de amigos e de experimentação, de abertura e cosmopolitismo militante que é o O Apartamento, (chapeau, meninas e meninos!), comemorou-se entre os mais próximos o bom caminhar do projecto através de um jantar onde puderam ser descobertos (re-descobertos?) alguns dos sabores sírios já cozinhados pelas futuras intérpretes da cozinha do restaurante. Jantar para os muitos colaborantes, ao qual se juntaram alguns amigos de fora, cobaias mais que dispostas, mãos que escrevem o que a boca sente (yours trully, um dos que).
Mesa pejada de entradas - Falafel (sem foto), Tabouli, Baba Ghanouj, Hummus, e umas empadas (das quais perdi o nome - será ajeen ou feitas com massa ajeen? - ajuda, sff) com três tipos de recheio, que me encheram as medidas -, seguidas por um bem característico arroz com borrego , pratos que exprimem bem uma gastronomia convivial, de partilha e conversas, desse tempo lento que sempre corre depressa porque acaba jovem o que a gente ama. Pratos que deixam expectativa para o que pode vir um caso sério de um modo diferente de fazer restauração em Lisboa - será possível que os sisudos portugueses se entreguem numa mesa comunitária, deixando a reserva de lado e partilhem de uma mesma taça, nele enchendo o pão ancestral dos milenares sabores do berço do mundo ocidental?
Pois que assim seja: tomai e comei todos.
NOTAS IMPORTANTES:
O "Mezze" estará localizado numa das remodeladas lojas exteriores do Mercado de Arroios (e viva esta nova política da CML de revitalização dos mercados da cidade sem introdução das médias superfícies!!!), com abertura prevista para Maio.
Para quem se queira juntar a esta ideia e ajudá-la a concretizar-se, foi aberta uma campanha de crowdfunding com o fim único de equipar a cozinha do restaurante. Ler mais aqui: https://ppl.com.pt/pt/fundacao-edp/restaurante-refugiados
E porque a Catarina Furtado - para além de ser muito mais gira do que eu - explica isto muito melhor, aqui fica o video:
Dá duplamente gosto.
Há semanas, tive uma pega com uma querida amiga, basicamente porque ouvíamos as mesmas palavras com significados diferentes, quando não estávamos longe de pretender defender ideias próximas. Girava a conversa à volta da nossa incapacidade em acolher quem recebemos e da incapacidade de quem chega em nos perceber. Notas de um país em auto-estima de terapia, ainda em processo de assimilar, dois mil anos depois, alguns dos pilares da matriz cristã que o forma - amar, partilhar, compreender, aceitar, ouvir - e igualmente os transmitir como essenciais a quem chega. Questões velhas, com respostas fáceis apenas para quem as não quer ver resolvidas. Olhe-se o mundo.
Como os que ainda não ascenderam a um Nirvana provinciano e umbilical sabem, Portugal comprometeu-se a fazer parte da tentativa de solução europeia para o imenso drama que representa a fuga maciça de cidadãos sírios da guerra civil que assola o país há vários anos. Não me interessa discutir os méritos ou deméritos da acção comunitária, ou qualquer pormenor do conflito; entristece-me o modo pouco interessado e muito reactivo como se comporta a sociedade europeia ocidental perante um problema humanitário que, só nos últimos 70 anos, não foi o seu. Somos o que somos, estando prontos para endossar honorários de milhões a desportistas ou cantores, para aceitar obras públicas milionárias pouco essenciais ou para conceder apoios estatais a privilégios pouco comunitários, desde que não nos afectem a zona de conforto. Sair dessa zona de conforto, caminhar o quilómetro extra, assumir a sua crença, cristã ou socialista, solidária ou humanista é, infelizmente, opção para poucos.
Bom - e nestas alturas, gosto muito que os poetas me relembrem as palavras certas -, apesar do negrume e do cinzentismo (e são estas são cores bem diferentes que, para nosso mal. podem co-existir sem atropelo mútuo), há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não.
O projecto Pão a Pão consubstancia um desses gestos de resistência, baseando-se numa palavra que ( apesar de se ter tornado num eco que, de tanto usado, ameaça tornar-se sem sentido para quem a ouve) define uma ideia muito bonita: capacitar. No caso presente, não se trata de ensinar a fazer, antes de possibilitar fazer, criar a capacidade de fazer. Porque acolher não é esmolar - é ajudar a reerguer. É um projecto de integração social de dois grupos particularmente vulneráveis no universo da comunidade síria que nos habita: as mulheres e os jovens adultos e adolescentes (que, por causa da guerra, viram o seu percurso escolar interrompido, não tendo adquirido formação que lhes permite encontrar trabalho especializado) e que o quer fazer a partir da cozinha. Começou pela junção de vários sentimentos - o de saudade dos sabores da sua terra da estudante de arquitectura Alaa Alhariri (principalmente do pão); o da vontade de fazer mais da jornalista (Público) Francisca Gorjão Henriques e da designer Rita Melo - que, inicialmente, idealizaram uma padaria síria a qual, com a evolução do projecto,se "transformou" num restaurante de cozinha síria/levantina: o "Mezze" (um conjunto de pequenos pratos ou entradas, servidos para acompanhar bebidas ou para iniciar uma refeição). Não um restaurante por si só: antes a meta para um espaço multicultural orientado para os grupos atrás citados, de acolhimento e formação e que lhes permita depois receber os visitantes/clientes com a variada e rica cozinha do Médio Oriente e onde igualmente caberão a música, a escrita e todos os mais saberes disponíveis para partilhar.
Perante o olhar atento de Francisca Gorjão Henriques, Alaa Alhariri explica o melhor método para utilizar o |
Mesa pejada de entradas - Falafel (sem foto), Tabouli, Baba Ghanouj, Hummus, e umas empadas (das quais perdi o nome - será ajeen ou feitas com massa ajeen? - ajuda, sff) com três tipos de recheio, que me encheram as medidas -, seguidas por um bem característico arroz com borrego , pratos que exprimem bem uma gastronomia convivial, de partilha e conversas, desse tempo lento que sempre corre depressa porque acaba jovem o que a gente ama. Pratos que deixam expectativa para o que pode vir um caso sério de um modo diferente de fazer restauração em Lisboa - será possível que os sisudos portugueses se entreguem numa mesa comunitária, deixando a reserva de lado e partilhem de uma mesma taça, nele enchendo o pão ancestral dos milenares sabores do berço do mundo ocidental?
Pois que assim seja: tomai e comei todos.
Baba Ghanouj Beringela, tomate, salsa, concentrado de romã, alho, cominhos, azeite, sal e pimenta, aqui com nozes (e, creio, sem o concentrado de romã) |
Hummus O tradicional molho que deverá ser consumido nele "molhando" um pedaço de pita Grão cozido, tahini,(puré de sementes de sésamo) azeite, sumo de limão, cominhos, sal e pimenta |
NOTAS IMPORTANTES:
O "Mezze" estará localizado numa das remodeladas lojas exteriores do Mercado de Arroios (e viva esta nova política da CML de revitalização dos mercados da cidade sem introdução das médias superfícies!!!), com abertura prevista para Maio.
Para quem se queira juntar a esta ideia e ajudá-la a concretizar-se, foi aberta uma campanha de crowdfunding com o fim único de equipar a cozinha do restaurante. Ler mais aqui: https://ppl.com.pt/pt/fundacao-edp/restaurante-refugiados
E porque a Catarina Furtado - para além de ser muito mais gira do que eu - explica isto muito melhor, aqui fica o video:
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