Um Auto do Alentejo na casa de Garrett
Sou lisboeta de gerações suficientes para não ter "terra" para onde ir nas férias ou em expedições nostálgicas. Sendo lisboeta, sou, por herança, cidadão de todas as paragens; de todas as migrações que a cidade acolheu, de todos os comerciantes que lhe demandaram o dinheiro, de todos os que, recusando o destino, nela viram a oportunidade de o mudar. Sou galego e sou minhoto, sou vareiro e montanheiro, da lezíria e do barrocal, do Atlântico e dos mares do Sul, da costa e da floresta, dos trópicos e da savana.
Dos meus avoengos, não tenho registo de algum ter visto nascer o mundo nas terras de além-Tejo ou de esses horizontes lhe terem servido de abrigo nas suas vidas - se algum norte tenho, a Norte está. E, no entanto, nenhuma sensação supera este sentir de pertença que me enche quando pela gastronomia alentejana passeio. Cada combinação de aroma e sabor que aspiro e provo, cada momento daquele pão e daquele vinho, cada pedaço de doce, é um momento interior de cante, aquele momento em que o alto se suspende para logo o coro entrar uma oitava abaixo (ah, arrepio total e os olhos fechados, um suspiro e um sorriso), e o mundo, o mundo pode parar ou andar que, mais que um jogo de xadrez, toda a vida que vale a pena aí está sintetizada.
O Leopoldo Calhau começou a deixar a sua marca na história gastronómica da Grande Lisboa quando, em 2014, abriu o Sociedade na Parede. Sociedade de bem comer, onde, em vez de uma ortodoxia pouco estimulante, se saboreava uma presença do Alentejo, da terra, se pressentia uma ligação de amor herdada da comida de conforto das memórias caseiras e ali reescrita. Comida em contra-corrente de desconstruções e glorias mediáticas, comida de oferecer e escutar.
O ano passado viu a sua chegada à capital, com a tomada da gestão do espaço restaurativo instalado no edifício do Teatro Nacional D. Maria II - um desafio e um risco, numa parte da cidade que, ainda que inundada de turistas, tende a valorizar mais a imitação do que a criação, a norma do que a alternativa. O caminho, no entanto, faz-se de caminhar, de escolhas, de erros e aprendizagens - e o caminho que este Café Garrett vai seguindo merece ser seguido e parece ser ascensional na preferência de passantes ocasionais ou propositados.
Nos últimos meses, uma das apostas da casa é a de jantares temáticos, onde amigos, matérias-primas ou preparações tradicionais são presença activa na cozinha, quer transformando, quer sendo transformados. Silarcas, Cozido de Grão, Rodrigo Castelo, José Júlio Vintém, vinhos do Esporão ou do Mouchão, foram as presenças mais recentes, a concretizar essa cozinha de afectos, de gestos e de memórias.
Há alguns dias, nova celebração: a dos peixes do rio Guadiana.
Desafios múltiplos.
O da ortodoxia (porque não adoptar o caminho indicado pelos cânones globalmente aceites e reconhecidos?); o do consenso (porque não reproduzir as receitas de memórias?); o da audiência (porque não fugir dos gostos mais extremos?).
Desafios reduzidos a nada.
Pensem num lisboeta com raízes familiares profundas no Alentejo, criado nas matérias-primas e nos temperos, nos aromas e nas preparações alentejanas, com a visão estética e espacial de um arquitecto, uma formação culinária contemporânea e alguns anos de estágio gastronómico diário nas serenas casas de comer do Baixo Alentejo. Peçam-lhe uma descrição do seu mundo, desse mundo que apreendeu por osmose e viveu de fora para dentro, em contágio crescente e indelével. Responderá com livros, com história, com tradição?
Responderá, como respondeu, com oito pratos que, sendo a imagem de si, são a imagem do seu - do nosso, de todos - Alentejo. E assim nasceu este Auto do Alentejo.
Começando, com uma proposta discreta, de partilha, própria para conversas que se iniciam, em forma de aquecimento, azeitonas, pão alentejano, azeite virgem de azeitonas galegas. O pão (conhecem o seu aroma, com um toque de acidez, um outro de azedo...?) que se cheira e insiste em ser provado, muitas vezes. O pão, dividido pelas mãos entretidas, molhado no azeite, as palavras suspensas por um minuto. As azeitonas e o espumante VDG da Adega Cooperativa da Vidigueira, amargor e doçura, contraste levemente estranho, a marcar a igual estranheza entre o interior e o exterior, o Rossio a passar, atarefado, para casa, as luzes amortecidas e a antecipação, a expectativa do jantar.
Já à mesa, sob o olhar austero do Actor Taborda e face às belíssimas fotografias de Eunice Muñoz e Ruy de Carvalho (chapelada, meu pai, por esse amor ao teatro que foi a tua vida e que me levou a vê-los contigo!),
uma entrada em trio, para estabelecer parâmetros e marcar posições: sanduíche de rábano com recheio de sável fumado e uma pasta de coentros, tosta com lúcio acidulado e temperado com pimentos, rissol de peixe do rio. Uma nota do que, sendo de muitos lados, é muito lisboeta - os rissóis como comida portável, o recheio de peixe como comida de casa -, uma inspiração cosmopolita - o peixe marinado no ácido -, e um pouco de irreverência.
Depois, um caldo verde de clorofila que pecou por pouco expressivo (a quase ausência de sal a deixar os sabores aquém do seu potencial), apesar dos dois componentes principais,
ao qual se seguiu um grande prato, acumulação de referências, simultâneamente cosmopolita e regional: uma brandade de sável com chips do mesmo peixe, visualmente a remeter-nos para uma açorda com peixe frito, com um sabor de maior (perdoe-se-me a expressão) erudição, a remeter-nos para outras paragens, a anotação da azeitona desidratada a acrescentar uma perturbação visual que aumenta a curiosidade do cliente (o que é? porquê aqui?), logo satisfeita pela prova, trabalhando memórias (de quem é português) ou lançando pistas de sabor (para quem o não é; recorde-se a localização do restaurante, bem no centro das rotas turísticas pela Baixa). Sabores em estado acutilante, comida de usar a mão na prova deliciada dos chips.
Segundo prato líquido da noite, a sopa de tomate com achigã, convenceu pelo apuro, pela acidez controlada a deixar respirar o gosto do anterior invasor e que agora é figura cobiçada no universo pesqueiro fluvial. Preparação a exigir cuidados extra para atingir equilíbrios de texturas sem nenhum desfavorecer, aprovada sem favor, com um piscar de olho à gema, lembrança das açordas típicas da região.
"Para não insistir nos caldos, resolvi fazer sólida esta caldeirada", dizia-me, no início, Leopoldo Calhau. Foi um gosto prová-la, a este olhar atento ao que a maioria de nós faz quando, distraídos, esmagamos com o garfo as rodelas de batata finais para aproveitar todo o molho da caldeirada que sobra. Uma esmagada de batata assumida, repositório de todo um prato, de toda uma tradição fluvial e marítima de todo o mundo com um porto à porta. Ou um atracadouro.
Surpresa positiva o lúcio-perca, o qual nunca tinha provado. Espécie relativamente recente nas águas fluviais nacionais, este Sander lucioperca (cujo nome provém não, como se poderia pensar, da relação tempestuosa entre as duas espécies citadas, antes das parecenças físicas com as mesmas) já faz figura nas listas de pescadores, pelas dimensões que pode apresentar (usualmente 40 a 80 centímetros, com um máximo de 1,20 m) e pelo bom sabor, agora comprovado. Como as outras espécies invasoras, o crescimento da sua população faz-se à conta das espécies autóctones, menos vorazes, menos agressivas, de menores dimensões, existindo, por parte das entidades, responsáveis alguma monitorização e tentativas de assegurar a biodiversidade. Esta é, usualmente, uma história que não acaba bem para os invadidos, pelo que, temo, não será por muito tempo que se poderão continuar a experimentar os sabores da maior parte das espécies fluviais autóctones que serviram de nutriente às populações ribeirinhas do passado.
Lampreia em cama de migas quase açorda lisboeta foi o prato seguinte. Encontro com uma velha amiga, este ano fugidia pela falta de chuva, um prato de gulodice, muito bem temperado.
Para terminar a sequência de pratos salgados, um ensaio que procurou juntar a memória do fumeiro tradicional da região à da enguia fumada (e que me parece não ser habitual no Alentejo). Eventualmente excessivo para palatos mais delicados, agradou-me por esse lado de opulência da presença do fumo, dessa sensualidade opressiva, barroca, de fascínio pelo temor do fogo mas também pela evocação das cozinhas de chaminé larga e dos seus cheiros, tão típicas do Portugal interior. Encrramento não com pompa e circunstância mas, seguramente, com trovão e chuva grossa.
Uma palavra referente às harmonizações: sendo um jantar realizado sob a égide da Adega Cooperativa da Vidigueira, Cuba e Alvito, foram as mesmas restritas ao seu portfolio. Assim, para além do já citado espumante VDG para as entradas, foram servidos o Vidigueira Antão Vaz com o Caldo de boga e espargos, a Brandade de sável e a Caldeirada com Lúcio-perca; o Vidigueira Reserva com a Sopa de tomate; o Vidigueira Syrah com os pratos finais de Lampreia e Enguia.
No caso do Antão Vaz, pareceu-me que a mineralidade característica dos brancos da região desta casta é menos prevalecente, sentindo-se mais o carácter cítrico que, perante o "caldo verde" menos expressivo, foi demasiado incisivo, desequilibrando a relação. Já na Brandade, e perante a gordura dos fritos, a escolha resultou num maior equilíbrio, servindo o vinho para corrigir e complementar, o que, do mesmo modo, aconteceu na "Caldeirada".
Quanto aos pratos finais, teriam os mesmos beneficiado de um vinho com menos madeira e maior acidez, de modo a contrabalançar a gordura de um e o fumo de outro.
A noite fechou em apoteose com o já famoso Pudim de Noz da Joana, acompanhado por Puré de azevias e Suspiros (o qual me esqueci, ignominiosamente, de fotografar). Final doce, acentuado pelo vinho licoroso da Vidigueira e a promessa de voltar.
Que mereçam muitas récitas na casa de Garrett, Autos Alentejanos como este.
Café Garrett
Teatro Nacional D. Maria II, Praça Dom Pedro IV, Lisboa
Horário:
3ªs às 5ªs - 12:00-23:00
6ªs e Sab - 12:00-24:00
Dos meus avoengos, não tenho registo de algum ter visto nascer o mundo nas terras de além-Tejo ou de esses horizontes lhe terem servido de abrigo nas suas vidas - se algum norte tenho, a Norte está. E, no entanto, nenhuma sensação supera este sentir de pertença que me enche quando pela gastronomia alentejana passeio. Cada combinação de aroma e sabor que aspiro e provo, cada momento daquele pão e daquele vinho, cada pedaço de doce, é um momento interior de cante, aquele momento em que o alto se suspende para logo o coro entrar uma oitava abaixo (ah, arrepio total e os olhos fechados, um suspiro e um sorriso), e o mundo, o mundo pode parar ou andar que, mais que um jogo de xadrez, toda a vida que vale a pena aí está sintetizada.
O Leopoldo Calhau começou a deixar a sua marca na história gastronómica da Grande Lisboa quando, em 2014, abriu o Sociedade na Parede. Sociedade de bem comer, onde, em vez de uma ortodoxia pouco estimulante, se saboreava uma presença do Alentejo, da terra, se pressentia uma ligação de amor herdada da comida de conforto das memórias caseiras e ali reescrita. Comida em contra-corrente de desconstruções e glorias mediáticas, comida de oferecer e escutar.
O Café Garrett e o edifício do Teatro Nacional D. Maria II |
Nos últimos meses, uma das apostas da casa é a de jantares temáticos, onde amigos, matérias-primas ou preparações tradicionais são presença activa na cozinha, quer transformando, quer sendo transformados. Silarcas, Cozido de Grão, Rodrigo Castelo, José Júlio Vintém, vinhos do Esporão ou do Mouchão, foram as presenças mais recentes, a concretizar essa cozinha de afectos, de gestos e de memórias.
Há alguns dias, nova celebração: a dos peixes do rio Guadiana.
As vedetas da noite, em mise en place: A partir da esquerda alta e no sentido dos ponteiros do relógio, sável, lúcio, lúcio-perca, lampreia e enguia |
Desafios múltiplos.
O da ortodoxia (porque não adoptar o caminho indicado pelos cânones globalmente aceites e reconhecidos?); o do consenso (porque não reproduzir as receitas de memórias?); o da audiência (porque não fugir dos gostos mais extremos?).
Desafios reduzidos a nada.
Pensem num lisboeta com raízes familiares profundas no Alentejo, criado nas matérias-primas e nos temperos, nos aromas e nas preparações alentejanas, com a visão estética e espacial de um arquitecto, uma formação culinária contemporânea e alguns anos de estágio gastronómico diário nas serenas casas de comer do Baixo Alentejo. Peçam-lhe uma descrição do seu mundo, desse mundo que apreendeu por osmose e viveu de fora para dentro, em contágio crescente e indelével. Responderá com livros, com história, com tradição?
Responderá, como respondeu, com oito pratos que, sendo a imagem de si, são a imagem do seu - do nosso, de todos - Alentejo. E assim nasceu este Auto do Alentejo.
Começando, com uma proposta discreta, de partilha, própria para conversas que se iniciam, em forma de aquecimento, azeitonas, pão alentejano, azeite virgem de azeitonas galegas. O pão (conhecem o seu aroma, com um toque de acidez, um outro de azedo...?) que se cheira e insiste em ser provado, muitas vezes. O pão, dividido pelas mãos entretidas, molhado no azeite, as palavras suspensas por um minuto. As azeitonas e o espumante VDG da Adega Cooperativa da Vidigueira, amargor e doçura, contraste levemente estranho, a marcar a igual estranheza entre o interior e o exterior, o Rossio a passar, atarefado, para casa, as luzes amortecidas e a antecipação, a expectativa do jantar.
Pão alentejano no azeite da Cooperativa da Vidigueira |
uma entrada em trio, para estabelecer parâmetros e marcar posições: sanduíche de rábano com recheio de sável fumado e uma pasta de coentros, tosta com lúcio acidulado e temperado com pimentos, rissol de peixe do rio. Uma nota do que, sendo de muitos lados, é muito lisboeta - os rissóis como comida portável, o recheio de peixe como comida de casa -, uma inspiração cosmopolita - o peixe marinado no ácido -, e um pouco de irreverência.
De trás para a frente: Sável fumado, rábano e coentros Lúcio, pão e pimentos Rissol de peixe do rio |
"Caldo Verde" com Boga e Espargos verdes silvestres |
Sável, Brandade do mesmo e Azeitona |
Sopa de Tomate com Achigã |
Surpresa positiva o lúcio-perca, o qual nunca tinha provado. Espécie relativamente recente nas águas fluviais nacionais, este Sander lucioperca (cujo nome provém não, como se poderia pensar, da relação tempestuosa entre as duas espécies citadas, antes das parecenças físicas com as mesmas) já faz figura nas listas de pescadores, pelas dimensões que pode apresentar (usualmente 40 a 80 centímetros, com um máximo de 1,20 m) e pelo bom sabor, agora comprovado. Como as outras espécies invasoras, o crescimento da sua população faz-se à conta das espécies autóctones, menos vorazes, menos agressivas, de menores dimensões, existindo, por parte das entidades, responsáveis alguma monitorização e tentativas de assegurar a biodiversidade. Esta é, usualmente, uma história que não acaba bem para os invadidos, pelo que, temo, não será por muito tempo que se poderão continuar a experimentar os sabores da maior parte das espécies fluviais autóctones que serviram de nutriente às populações ribeirinhas do passado.
Caldeirada com Lúcio-perca |
Lampreia com Migas da mesma |
Enguia Fumada com Arroz de fumeiro |
Vidigueira Antão Vaz (Adega Cooperativa da Vidigueira, Cuba e Alvito) |
Vidigueira Reserva (Adega Cooperativa da Vidigueira, Cuba e Alvito) Antão Vaz e Perrum, parcialmente fermentado em barricas de carvalho francês e americano |
Vidigueira Syrah (Adega Cooperativa da Vidigueira, Cuba e Alvito) |
A noite fechou em apoteose com o já famoso Pudim de Noz da Joana, acompanhado por Puré de azevias e Suspiros (o qual me esqueci, ignominiosamente, de fotografar). Final doce, acentuado pelo vinho licoroso da Vidigueira e a promessa de voltar.
Que mereçam muitas récitas na casa de Garrett, Autos Alentejanos como este.
Café Garrett
Teatro Nacional D. Maria II, Praça Dom Pedro IV, Lisboa
Horário:
3ªs às 5ªs - 12:00-23:00
6ªs e Sab - 12:00-24:00
Dom - 12:00-18:00
2ªs - Encerrado
Comentários