Cinco casamentos e um grande final
Generalização, globalização, democratização. Apesar de tantos ãos, ainda temos temporadas na gastronomia portuguesa.
É claro que não podemos reivindicar a normalidade gastronómica europeia - apesar da nova Estratégia para o Turismo 2027, apesar dos visitantes gastronómicos, apesar das coutadas e dos homens dos cães e das caçadeiras, das canas e das botas de cano alto, dos cestos e das cordas nas arribas - a maior parte das nossas temporadas é passada entre amigos e atrás das portas, baixinho e em quase segredo, não vá a ASAE, a guarda fiscal, a ex-guarda florestal, o PAN ou a ANIMAL darem cabo do negócio, do prazer ou da subsistência. Em Portugal, temporadas públicas são as das férias do Ronaldo, do São Carlos ou do La Féria, umas mais lá do que cá, outras mais para lá do que para cá, outras há quem preferia que não fossem cá.
Há, claro, excepções para confirmar esta regra que crismei universal - excepções gastronómicas, entenda-se.
Há a temporada do tomate a sério; das maçãs Riscadinha de Palmela e Bravo de Esmolfe; das cerejas da Cova da Beira e de Penajóia; das favas da Quinta do Poial; dos ouriços-do-mar da Ericeira e dos Percebes de Sagres; das uvas de mesa nacionais (não, essas já não há...), do sável... e da lampreia.
Da lampreia, lampreia, lampreia, provavelmente o peixe que reacções mais extremas gera entre nós: nenhuma paragem no no man's land gastronómico dos actores menores, nada de "não aprecio muito", "não é mau", "hãããã..." - ou se ama, ou se detesta, verbos de sentido único, verbos únicos na relação. Dogmas.
Este ano, muito por culpa de um Inverno pouco chuvoso que iremos penar lá mais para a frente, a lampreia fez-se esperar e só Março viu em força a temporada que, usualmente, se inicia no final de Janeiro, prolongando-se até meados de Abril.
Uma das principais consequências do desejo do projecto Endògenos de divulgação da gastronomia portuguesa, sejam os produtos autóctones sejam as preparações tradicionais em vias de abandono, é a ocorrência de momentos que, por si próprios, são temporadas sintéticas de prazer.
O final do mês de Março assistiu a essa conjugação de factores que tornaram inevitável - e memorável! - um jantar dedicado à lampreia. Não foi só a qualidade do ciclóstomo, finalmente a merecer repasto; foram o espaço e o seu Chef - o restaurante "Flores do Bairro" (Bairro Alto Hotel) e o Bruno Rocha; foi a harmonização dos vinhos, a cargo de Joaquim Arnaud e João Jorge; foi, como sempre, a organização, assegurada pelo Nuno Nobre e o António Alexandre.
1º Motivo: A cozinha
Bruno Rocha (ao centro) ladeado pelos mentores do projecto Endògenos, Nuno Nobre (à esquerda) e António Alexandre |
O excesso de familiaridade é sempre complicado numa relação; por mais amado que seja o objecto da nossa preferência, a repetição leva à sua desvalorização. Pior, a acomodação sentida impede-nos a descoberta de outras facetas, outras sensações, outras alegrias.
No caso da lampreia, a melodia deste bailado entre amador e ser amado oscila, usualmente, entre a importada bordalesa e o lusitano arroz, dança enleante mas... monótona.
O "Flores do Bairro" habituou-nos à escolha consecutiva de grandes oficiantes, deixando sempre, na memória dos seus frequentadores, uma perene emoção. Bruno Rocha não é excepção, provando-o mais uma vez com a opção por uma abordagem mais ecléctica, estudando diversas técnicas de confecção para a obtenção dos pratos do menu, Secar, fritar, grelhar, fumar, guisar, foram alguns dos verbos experimentados e que chegaram à selecção final, resultando em sabores que depressa se entranharam no gosto da maioria dos participantes (unanimidade na aprovação seria, mais que improvável, assustadoramente anti-democrática, não acham?). Parece-me que as fotografias não serão totalmente explicativas, nem farão jus à qualidade do oferecido. Legendo-as com os elementos envolvidos e acrescento aqui algumas notas:
- Disponibilidade para questionar, sem ideias pré-concebidas;
- Atenção às respostas (isto é, percepção dos cambiantes de gosto que, para a mesma matéria-prima, são induzidas por uma variação na mesma técnica ou uma diferente técnica) e discernimento para as aceitar ou recusar;
- Sensibilidade para as conjugações;
- Trabalho exaustivo.
2º Motivo: O vinho e as harmonizações
O Joaquim Arnaud é um produtor multifacetado e multicurioso que reparte a sua actividade criativa entre os vinhos (e o seu portfolio estabelece-se - por enquanto... - entre os vinhos tranquilos das Regiões Lisboa e Alentejo, os espumantes e o Moscatel de Setúbal), o azeite, o presunto de vaca, os enchidos de porco ibérico.
Vem de longe a sua defesa do cuidado que se deve colocar na escolha dos vinhos a servir; a ideia - que partilho - de que a escolha de um vinho não pode ser genérica, procurando-se nas características de cada produtor, de cada marca, de cada colheita, as especificidades que melhor dialogam com o flavour de cada prato. Para isso, para além de um bom conhecimento dos produtos, é preciso sensibilidade e bom senso - que o Joaquim tem em quantidade - e é preciso tempo: tempo de análise, reflexão, prova.
João Jorge e Joaquim Arnaud |
O resultado, foi um conjunto de emparceiramentos muito bem conseguido, a realçar biunivocamente prato e bebida, a possibilitar novos sabores compostos.
Joaquim Arnaud e o branco (ainda não comercializado) da região Lisboa servido com alguns dos pratos Monocasta Arinto 2015, blend de uvas provenientes de 3 produtores da região |
Da Nazaré a Penela, de Lisboa ao Algarve, foram já muitos os lugares e os produtos associados visitados.
Desta vez, Lisboa acolheu a lampreia, peixe marítimo que procura a quase totalidade dos rios nacionais para a desova, sendo assim o seu consumo extensivo entre o Minho e o Guadiana. Monção, Caminha, Sever do Vouga, Penacova, Montemor-o-Velho, Mação, Vila Nova da Barquinha, Tomar, Mértola, Belver, Alcoutim, são algumas das localidades de romaria que tratam este ciclóstomo como seu, erigindo festivais ou casas de repasto em sua honra, atraindo forasteiros, depois de séculos a deleitar os naturais.
À capital não poderiam ter deixado de arribar naturais destes e de outros concelhos com equivalentes amores, doando-lhe o seu saber e sabor e criando nos locais o mesmo gosto, a mesma paixão. Servida tanto nas grandes casas como nos pequenos refúgios restaurativos dos bairros mais populares, não poderia existir sujeito mais representativo para comemoração do projecto.
Divulgação, partilha, investigação. Prazer, festa, comunhão. Não é essencialmente nestas palavras que também se caracteriza a gastronomia portuguesa?
O Jantar
Entremos devagar na noite clara... Manteiga com as ovas da lampreia cozidas, secas e raladas, pele de galinha seca, reduzida a pó, para acrescentar a sabor a fumo, a grelha, azeitona e raspa de limão. Boa de barrar e conversar, servida com o Arinto.
SECA Com broa de milho e manteiga e pele de galinha |
SECA Com broa de milho e manteiga e pele de galinha |
FRITA Com courato de porco e molho romesco |
GRELHADA Com cogumelos shitaki e iogurte de amêndoa |
FUMADA Com ananás dos Açores, wasabi e língua de vitela |
Inteligente e radicalmente, o vinho apresentado voltou a ser o Arinto, a uma temperatura mais elevada que lhe mudou completamente a relação com o prato. O que, teoricamente, poderia ser a necessidade de um tinto verde ou um tranquilo jovem, com pujança para contrabalançar o que parecia ser um prato muito rico e corolário da refeição, foi aqui substituída pela acidez deste branco, com uma temperatura que acentuou as características e o "peso". Surpreendente para este aprendiz, devidamente registado para próximas experimentações.
COM ARROZ De cevada e aveia, curgete grelhada e miso |
As texturas e as temperaturas, a bolha do espumante a intrometer-se,o granizado e o gelado contra o bolo e as framboesas.
Que grande final.
O SANGUE Com beterraba, gelado de pannacotta, bolo de limão e framboesa |
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