Queijos Serpa e uma novidade
Feira de queijo do Alentejo em Serpa, a possibilidade de bem almoçar, de descobrir e redescobrir diversos produtores, de satisfazer as saudades do cante alentejano, de experimentar a mão em conjunto num divertido show cooking. De aprender.
Primeira surpresa: eis um dos antigos pavilhões da EXPO aterrado na planície como personagem principal de filme sci-fi. Memórias de uma Lisboa que se descobria internacionalizável, de uma auto-estima citadina que passava do less than zero para proporções olímpicas (vozes ambiciosas já proclamavam a candidatura da cidade a sede dos Jogos Olímpicos), da capital de um país que investia algumas centenas de milhões a renovar uma área industrial abandonada sem cuidar de se organizar em torno dos bairros históricos, entregues as avenidas oitocentistas à voracidade do camartelo (e o pior só viria mais de uma década depois) e a classe média pós-2ª Circular a si própria.
O pavilhão da EXPO, com a fachada feita dicionário, lembrete de uma cultura orgulhosa e cruzada de influência árabe, o Mediterrâneo para lá das colunas de Hércules mas tão entrelaçado nos saberes e nos sabores.
Como seara coordenada, os vários grupos de cante ganhavam balanço, começando num embalo silencioso, acompanhado pelos olhares reverentes de colegas e visitantes. Caras seculares, gestos repetidos por gerações. Aos menos abstraídos não poderiam deixar de assaltar parecenças e ligações: o coro das caras que ladeiam as personagens principais dos Painéis de São Vicente de Fora, o restolho sincopado de fundo da versão original do Grândola, o nacionalismo do Estado Novo, o anti-nacionalismo da revolução. Tanto ismo para o mesmo povo, tanta palavra estranha a passar por cima destas palavras de trabalho ou de amor, de saudade ou de nostalgia.
E o queijo?
Paragem inicial nas produtoras expostas. Porte surpreendente para um citadino mais habituado a visões cristalizadas dos rebanhos portugueses de montanha, compostos de dóceis criaturas, fáceis de pastorear e de gostar, os animais apresentados são espelho de uma cultura que busca um maior rendimento ea maximização das potencialidades, face resistente de uma integração europeia que dizimou grande parte do que apenas subsistia.
Voltemos atrás no tempo: pela facilidade da sua criação nas terras montanhosas, a ovelha, proveniente da meseta ibérica, foi domesticada pelas populações locais desde tempos imemoriais. Aos romanos é atribuída a implantação do fabrico de queijo na Lusitânia e sendo a pastorícia o principal modo de vida das populações da zona da serra da Estrela, o queijo tornou-se relevante fonte alimentar apresentando o mesmo, por força das características específicas do meio, características únicas. A pacificação do país vai permitindo que os pastores da serra percorram novos caminhos na procura de condições menos agrestes e mais favoráveis ao gado, transportando o saber da feitura de queijos e os hábitos de criação ovina e caprina. É o know how dos pastores oriundos da Estrela que irá influenciar as populações dessas regiões a passar a ordenhar as raças locais, anteriormente mais viradas para a produção de carne.
O Alentejo interior, uma peneplanície caracterizada pelas grandes extensões planas, solo delgado, escassez de água, aridez do clima estival, não favorece a pequena cultura nem a exploração familiar predominando a lavoura extensiva. Este tipo de exploração possibilita e incentiva a existência do pastoreio em grande escala sendo até hoje a região que concentra a maior percentagem do efectivo
ovino do país (mais de 50%). A raça ovina tradicionalmente dominante é a Merino. Terá sido importada de África, trazida pelos árabes. Na parte SE do distrito de Beja existe um ovino de lã crespa, de pequeno porte, denominado Campaniça. Apesar de as mesmas serem exploradas principalmente pela carne, o leite era um sub-produto valorizado através da produção de queijo sendo a mesma realizada no período da ordenha, o qual durava entre o Natal (época tradicional de venda dos borregos) e Maio/Junho, consoante o secar dos pastos.
Gradualmente, passou a ser utilizado leite de ovelhas de raças estrangeiras e nacionais, nomeadamente a Lacaune e a Serra da Estrela, mais especializadas na produção de leite, sendo a legislação que regulamenta o queijo Serpa omissa quanto às raças utilizadas. No presente, e feira é indicativa, são os ovinos Île-de-France que prevalecem. Que porte de vitelo.
Finalizemos nos queijos que foi por eles que até aqui vos trouxe.
Como todos já provámos, são os queijos nacionais provenientes do leite de vaca, cabra ou ovelha, monocasta ou de mistura. Os tradicionais, com excepção dos açorianos, são todos fabricados a partir dos leites de ovelha ou de cabra, sendo os industriais de leite de vaca inspirados nos modelos estrangeiros.
Já em 1905, o I Congresso de Leitaria apontava que todos os queijos de pasta mole nacionais - Serra da Estrela, Castelo Branco, Alto Alentejo, Rabaçal, Alentejo, Azeitão e Pico - apresentavam tecnologia de fabrico muito idêntica, apenas diferindo em particularidades de tradição, de localidade ou de queijeira. Um mesmo chapéu-de-chuva para uma realidade que o nosso gosto e eventual bairrismo considera muito diversa.
O queijo Serpa DOP é um produto inteiramente artesanal (no presente já existem casos de semi-industrialização) fabricado segundo tecnologia tradicional que consiste no esgotamento lento da coalhada após a coagulação do leite crú de ovelha, sem mistura, por acção de uma infusão de cardo (Cynara cardunculus L.). Fabrico de carácter sazonal, exigindo grande sensibilidade e conhecimento prático para que se consiga obter uma massa homogénea, com determinada consistência, sabor e cheiro. Após o fabrico, os queijos são postos a curar durante um período entre 1 e 2 meses, originando um queijo curado, de pasta semimole, amanteigada.
Nem só do DOP vive Serpa, nem a região circundante, também ela pródiga em variantes, igualmente tentadoras, igualmente satisfatórias na prova, algumas das quais deixo em registo fotográfico:
Deixem-me, no entanto, dizer com muita sinceridade (e voltando ao princípio deste texto): mais ainda do que o saboroso e já conhecido requeijão de leite de ovelha
o que me ultrapassou as medidas foi o ALMECE.
O almece - assim como o requeijão, travia, atabefe - resulta do aproveitamento do soro resultante do fabrico do queijo (superior a 80% do volume total do leite utilizado). Todos são constituídos pelas proteínas (lactoalbumina e lactoglobulina) coaguladas pela acção do calor. O almece que, em termos de preparação difere do requeijão pelo tempo de ebulição a que se deixa o soro, é vendido comercialmente em recipientes fechados, sendo constituído por flocos sólidos em suspensão num líquido translúcido.
É absolutamente delicioso, mais cremoso que o requeijão - mais guloso - e foi capaz de me deixar entretido a prová-lo em fatias de pão alentejano até... um assomo de contenção me ter forçado a parar o que parecia vir a ser a dizimação de todo o conteúdo da caixa.
Provem-no e depois digam.
Primeira surpresa: eis um dos antigos pavilhões da EXPO aterrado na planície como personagem principal de filme sci-fi. Memórias de uma Lisboa que se descobria internacionalizável, de uma auto-estima citadina que passava do less than zero para proporções olímpicas (vozes ambiciosas já proclamavam a candidatura da cidade a sede dos Jogos Olímpicos), da capital de um país que investia algumas centenas de milhões a renovar uma área industrial abandonada sem cuidar de se organizar em torno dos bairros históricos, entregues as avenidas oitocentistas à voracidade do camartelo (e o pior só viria mais de uma década depois) e a classe média pós-2ª Circular a si própria.
O Almece é a melhor coisa do mundo gastronómico português? Se não é, é um belo teaser... |
Como seara coordenada, os vários grupos de cante ganhavam balanço, começando num embalo silencioso, acompanhado pelos olhares reverentes de colegas e visitantes. Caras seculares, gestos repetidos por gerações. Aos menos abstraídos não poderiam deixar de assaltar parecenças e ligações: o coro das caras que ladeiam as personagens principais dos Painéis de São Vicente de Fora, o restolho sincopado de fundo da versão original do Grândola, o nacionalismo do Estado Novo, o anti-nacionalismo da revolução. Tanto ismo para o mesmo povo, tanta palavra estranha a passar por cima destas palavras de trabalho ou de amor, de saudade ou de nostalgia.
E o queijo?
Paragem inicial nas produtoras expostas. Porte surpreendente para um citadino mais habituado a visões cristalizadas dos rebanhos portugueses de montanha, compostos de dóceis criaturas, fáceis de pastorear e de gostar, os animais apresentados são espelho de uma cultura que busca um maior rendimento ea maximização das potencialidades, face resistente de uma integração europeia que dizimou grande parte do que apenas subsistia.
Voltemos atrás no tempo: pela facilidade da sua criação nas terras montanhosas, a ovelha, proveniente da meseta ibérica, foi domesticada pelas populações locais desde tempos imemoriais. Aos romanos é atribuída a implantação do fabrico de queijo na Lusitânia e sendo a pastorícia o principal modo de vida das populações da zona da serra da Estrela, o queijo tornou-se relevante fonte alimentar apresentando o mesmo, por força das características específicas do meio, características únicas. A pacificação do país vai permitindo que os pastores da serra percorram novos caminhos na procura de condições menos agrestes e mais favoráveis ao gado, transportando o saber da feitura de queijos e os hábitos de criação ovina e caprina. É o know how dos pastores oriundos da Estrela que irá influenciar as populações dessas regiões a passar a ordenhar as raças locais, anteriormente mais viradas para a produção de carne.
O Alentejo interior, uma peneplanície caracterizada pelas grandes extensões planas, solo delgado, escassez de água, aridez do clima estival, não favorece a pequena cultura nem a exploração familiar predominando a lavoura extensiva. Este tipo de exploração possibilita e incentiva a existência do pastoreio em grande escala sendo até hoje a região que concentra a maior percentagem do efectivo
ovino do país (mais de 50%). A raça ovina tradicionalmente dominante é a Merino. Terá sido importada de África, trazida pelos árabes. Na parte SE do distrito de Beja existe um ovino de lã crespa, de pequeno porte, denominado Campaniça. Apesar de as mesmas serem exploradas principalmente pela carne, o leite era um sub-produto valorizado através da produção de queijo sendo a mesma realizada no período da ordenha, o qual durava entre o Natal (época tradicional de venda dos borregos) e Maio/Junho, consoante o secar dos pastos.
Gradualmente, passou a ser utilizado leite de ovelhas de raças estrangeiras e nacionais, nomeadamente a Lacaune e a Serra da Estrela, mais especializadas na produção de leite, sendo a legislação que regulamenta o queijo Serpa omissa quanto às raças utilizadas. No presente, e feira é indicativa, são os ovinos Île-de-France que prevalecem. Que porte de vitelo.
Finalizemos nos queijos que foi por eles que até aqui vos trouxe.
Como todos já provámos, são os queijos nacionais provenientes do leite de vaca, cabra ou ovelha, monocasta ou de mistura. Os tradicionais, com excepção dos açorianos, são todos fabricados a partir dos leites de ovelha ou de cabra, sendo os industriais de leite de vaca inspirados nos modelos estrangeiros.
Já em 1905, o I Congresso de Leitaria apontava que todos os queijos de pasta mole nacionais - Serra da Estrela, Castelo Branco, Alto Alentejo, Rabaçal, Alentejo, Azeitão e Pico - apresentavam tecnologia de fabrico muito idêntica, apenas diferindo em particularidades de tradição, de localidade ou de queijeira. Um mesmo chapéu-de-chuva para uma realidade que o nosso gosto e eventual bairrismo considera muito diversa.
O queijo Serpa DOP é um produto inteiramente artesanal (no presente já existem casos de semi-industrialização) fabricado segundo tecnologia tradicional que consiste no esgotamento lento da coalhada após a coagulação do leite crú de ovelha, sem mistura, por acção de uma infusão de cardo (Cynara cardunculus L.). Fabrico de carácter sazonal, exigindo grande sensibilidade e conhecimento prático para que se consiga obter uma massa homogénea, com determinada consistência, sabor e cheiro. Após o fabrico, os queijos são postos a curar durante um período entre 1 e 2 meses, originando um queijo curado, de pasta semimole, amanteigada.
Nem só do DOP vive Serpa, nem a região circundante, também ela pródiga em variantes, igualmente tentadoras, igualmente satisfatórias na prova, algumas das quais deixo em registo fotográfico:
Deixem-me, no entanto, dizer com muita sinceridade (e voltando ao princípio deste texto): mais ainda do que o saboroso e já conhecido requeijão de leite de ovelha
o que me ultrapassou as medidas foi o ALMECE.
O almece - assim como o requeijão, travia, atabefe - resulta do aproveitamento do soro resultante do fabrico do queijo (superior a 80% do volume total do leite utilizado). Todos são constituídos pelas proteínas (lactoalbumina e lactoglobulina) coaguladas pela acção do calor. O almece que, em termos de preparação difere do requeijão pelo tempo de ebulição a que se deixa o soro, é vendido comercialmente em recipientes fechados, sendo constituído por flocos sólidos em suspensão num líquido translúcido.
Almece da Queijaria Guilherme: publicidade à parte, se o virem, comprem-no. Nunca mais quererão outra companhia para o pequeno-almoço, o lanche... (Foto: fabricante) |
Provem-no e depois digam.
Comentários
Comprei uma caixa de almece do Guilherme mas a verdade é que não gostei, tinha um sabor estranho apesar de ter uma boa consistência.
Ainda vou tentar mais uma vez para ver se foi azar e não estou a perder uma delicia....