É manifesto, manifestemo-nos


"Que Almada Negreiros é um génio, manifesta-se em não se manifestar."

Que precisemos de nos manifestar para tornar alguma coisa relevante poderá ser - se quisermos seguir o caminho que Pessoa traçou - um reflexo da não genialidade da mesma.

Ou talvez não, sejamos justos. Numa realidade com excesso de exposição, o silêncio é uma contrariedade que nunca é cúmplice, sendo mais visto como defeito do que forma de modéstia. Se queremos consideração, há que gritar a plenos pulmões, de preferência com hino pessoal ("Contra os canhões, marchar, marchar!") ornamentado de barrete frígio e agência de comunicação a ajudar.

Vinte revoluções por minuto: a mão do cozinheiro na óptima massada de peixe de Daniel Estriga

Porque nos manifestamos?

Para criar uma identidade. Para divulgar essa identidade.

Para suscitar uma identificação. Para divulgar essa identificação.

Para atingir uma posição. Para divulgar essa posição.

Quase dois mil anos depois, uma ânfora que onde se recriará o "garum"
que fez a fama gastronómica da costa atlântica da Hispânia
(traduzindo: que deu fama e proveito a, entre outras, Olisipo, futura Lisboa)

Distinga-se o que a língua portuguesa teima em agregar: uma manifestação é um momento, uma intervenção no presente, fugaz, passageira, sem pretensões à História; um manifesto é um registo, pretende ser um marco, peça documental, fundadora, fundamental de uma mudança, charneira dessa mudança, anúncio de rupturas. Uma é reacção, outra é acção. Uma é resposta, outra é proposta.

Uma manifestação pode atingir ou não os seus objectivos: é espuma dos dias, outras nascerão, vitoriosas ou não, logo passadas, logo esquecidas.

Um Manifesto que não assuma a radicalidade, a mudança - a revolução - que não queime deuses e ídolos, ideias dominantes ou morais dominadores, é um ovo sem conteúdo: brilhante na perfeição da geometria, no equilíbrio da forma, na lisura da casca, todo forma e nenhuma função, um Narciso de dominó errado, peça decorativa, a ser apeada na próxima mudança da moda.

Corações ao alto: os moldes tradicionais das filhoses de flor /forma da Beira Baixa (o Alexandre Silva emprestou as mãos)

Na Gastronomia pública (a que ultrapassou a mera função de alimentação e ganhou foros de individualidade no século XX, passando a ser temática, arte, área de estudo, objecto de atenção mediática), a apresentação de manifestos começou pelo grito de libertação das regras da cozinha clássica dado por uma comunidade de cozinheiros jovens, integrante da geração crescida no pós-guerra (de 1939-45) que neles, simbolicamente, via o derrube do poder adulto (o Maio de 68, em Paris, as manifestação contra a guerra do Vietname nos EUA, a tomada das rádios pela música rock e pop foram outras manifestações do mesmo). Assimilando a depuração nipónica, assumindo, na cozinha, a desconstrução de costumes e valores reivindicada pelos mais novos, representou uma ruptura que, retirando o seu lado mais imediato (e imediatamente copiado, glosado, criticado, parodiado) e volátil, continua actual e inspiracional para os caminhos que foram e continuam a ser abertos. Mais manifestos chegaram, os que ficaram para a história (e que fizeram história) com uma génese comum - uma ruptura gerada por um criador de génio ou um movimento suficientemente forte para a tornar imparável - e um factor inevitável - um apoio financeiro generoso que, como atrás disse, num mundo estridente, se torna indispensável.

Quando ouvi, pela primeira vez, falar da preparação de um "Manifesto" para a gastronomia portuguesa confessei-me apreensivo - apesar dos bons executantes e do razoável número de boas matérias-primas e produtos tradicionais, não me parecia existir em Portugal nem um criador de rupturas nem um movimento suficientemente abrangente de actores (cozinheiros, pasteleiros, restauradores, críticos, escritores, investigadores) sintonizados em torno de uma ideia e com uma noção bem estruturada do caminho a seguir, nem - e talvez o mais importante - uma maioria de consumidores bem informados, culturalmente activos e gastronomicamente exigentes que permitissem viabilizar não só essa ideia como todo o sistema produtivo necessário para a sua sustentabilidade. Em resumo: sem uma base de produtores (agricultores, pescadores, transformadores), sem uma base de consumidores, sem uma base consistente e alargada de criação, temia que a obra não ultrapassasse o carácter histriónico mas efémero que caracteriza muita da nossa actuação colectiva e gastronómica.

Pedra de sal-gema das minas de Loulé: quantos conhecem, quantos utilizam?

É claro que, para ser justo, não podia deixar de reconhecer o incremento da qualidade técnica do nosso corpo de cozinheiros; o aumento de consumidores traduzido pelos números crescentes de procura turística que nos aproximam da massa crítica necessária para viabilizar uma maior quantidade, qualidade e diversidade de projectos; a mudança geracional que, apesar de mais cosmopolita e mais urbana, apresenta maior interesse e mais carinho pelo que é de produção nacional; a consideração oficial - finalmente! - pelo sector de gastronomia e vinhos, alcandorado, na nova Estratégia Turismo 2027, a activo estratégico qualificador - factores suficientes para considerar que, neste presente, começam a estar criadas condições para começar a agir -  agregar, fermentar, fomentar, desenvolver, iniciar - de forma alternativa, inovadora, criativa (não é a fazer o mesmo que alcançaremos resultados diferentes).

Começar, digo eu.

Aparentemente, estas minhas reservas foram, de alguma forma, as reservas dos promotores e criadores do anunciado Manifesto - a Amuse Bouche / Sangue na Guelra e os 17 cozinheiros convidados / desafiados (Henrique Sá Pessoa, José Avillez, Alexandre Silva, João Rodrigues, Milton Anes, Kiko Martins, Hugo Nascimento, Pedro Pena Bastos, Tiago Bonito, Luís Barradas, Leandro Carreira, Hugo Brito, Manuel Maldonado, Tiago Feio, Rodrigo Castelo, David Jesus e Carlos Fernandes). Deste logo a sua nomeação como "0.0" - o que designa modéstia, propõe e promete evolução - mas também o cuidado na quantidade de ousadia introduzida e a integração de muitos conceitos já aceites pelo senso comum mas que importava (e muito bem) assinalar, num documento que se pretendia definidor de uma postura.

Ao se prestar a ser quase globalmente consensual, ao recusar rupturas, ao refrear ambições de prevalência perdeu este Manifesto a sua força, a sua importância?

Antes pelo contrário. Como me parece ter ficado claro, ainda não estão criadas as condições para o sector se assumir como diferente, condição essencial para o que, julgo, andará na cabeça de todos - a candidatura à "liderança" da gastronomia mundial* (vá lá, admitam, depois do campeonato da Europa de futebol e do Salvador Sobral na Eurovisão, porque não apontar para a Lua?). Como manual de boas práticas, como farol de um caminho acertado, como base de um Movimento colectivo (que foi o objectivo confesso dos seus promotores), como projecto de Constituição da Gastronomia Portuguesa (e, como sabemos, é permitido às constituições mais evoluídas irem admitindo emendas de acordo com a evolução da sociedade) está muito bem, ainda que me pareça que, para falar de "identidade da cozinha portuguesa" fosse desejável a existência prévia de um documento escrito pelos seus autores que definisse exactamente o que entendem por essa identidade.

Enquanto ponto de partida, por mim, está aprovado.

MANIFESTO PARA O FUTURO DA COZINHA PORTUGUESA
  1. Temos orgulho no nosso país, na nossa tradição gastronómica e reconhecemos a riqueza da identidade da cozinha portuguesa!
  2. A nossa identidade gastronómica é a nossa origem, o que nos funda como cozinheiros(as) – é o reflexo do nosso território mas também dos povos e culturas que a influenciam desde séculos aos dias de hoje, contribuindo para a sua riqueza e diversidade.
  3. Promovemos a liberdade para criar e para explorar novos caminhos, novos pratos, novos sabores.
  4. Defendemos que o acto de cozinhar não se esgota na procura do bom sabor. A cozinha é cerebral, interventiva, criativa, subversiva.
  5. A criatividade não pode ser um fim em si mesma; deve ser consciente e informada e exprimir um contributo novo para a nossa cozinha.
  6. Usamos a técnica para potenciar a linguagem individual de cada um de nós enquanto cozinheiro(a), no respeito por uma filosofia alimentar sustentável e de valorização da identidade gastronómica nacional.
  7. Respeitamos a sazonalidade dos produtos e os ciclos biodinâmicos da Natureza.
  8. Incentivamos o consumo responsável e sustentável dos produtos e das espécies animais, da terra e do mar.
  9. Reclamamos o direito de todas as crianças conhecerem a identidade da nossa cozinha, aprenderem a cozinhar comida saborosa, saudável e de qualidade: tão importante como aprender a ler e a escrever!
  10. Reconhecemos o valor dos pequenos produtores, os produtos autóctones e produzidos localmente, fomentando a sustentabilidade dos modos de produção e procurando recuperar produtos esquecidos e diferenciadores do nosso território.
  11. Desafiamos todos os cozinheiros, consumidores, produtores, fornecedores, empresários do sector, jornalistas, investigadores, críticos, artistas, pensadores, a assumirem-­se como agentes de mudança e de promoção da cozinha portuguesa!


Nota final: 

Este Manifesto, apesar da generalidade dos conceitos que o integram é, não só no conteúdo mas na forma, um documento escrito de e para cozinheiros (ver, por exemplo, o seu número 6). Se a intenção era estender a subscrição e adopção aos restantes actores do panorama gastronómico nacional (produtores, analistas, consumidores) não teria sido mais coerente o recurso a um painel com autores de origem mais diversificada que possibilitasse um texto não só com uma visão mas com uma consciência mais abrangentes?

* - Se quiserem, a ser a "next big thing" da gastronomia mundial (é colocarmo-nos na fila, atrás de, pelo menos, México e Coreia que andam a lutar por isto há já algum tempo e com muito mais dinheiro público e privado investido)

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