E os bifes, pá?
Boas novas: existe uma igreja da carne em Portugal e Rui Martins é o seu profeta.
Já vos chamei a atenção? A ideia é mesmo esta: no meio de tanta porcaria que por aí se faz à carne de vaca - na produção, nos cortes, na confecção -, é importante (indispensável, diria) chamar a atenção do excelentíssimo público para os oásis que nos permitem aplacar a sede de justiça - a justiça de ver bem considerada uma peça bovina - que, carnívoros nos confessamos, ansiamos ver aplicada.
Apesar de Lisboa ter feito das preparações de bifes um orgulho municipal, apesar de, desde que a Europa desapertou os cordões à bolsa doméstica, termos vindo a alimentar a família, o mais quotidianamente possível, a carne bovina, progressivamente mais tenra e mais hormonada; apesar de elevação ao Olimpo da mesa portuguesa do bifecombatatasfritas, do bitoquecomovoacavalo e dos pregos de vaca, a nossa carne é, genericamente, maltratada, os consumidores são, genericamente, pouco menos que ignorantes, as nossas leis aplicáveis à área são, genericamente, autistas em relação às características de sabor.
(E agora chegou - uns anos atrasada e envolta tanto em boatos quanto em mitos - a moda da "carne maturada". Pffff. A maior parte da carne maturada é-o tanto quanto são matutadas as nossas políticas públicas de longo prazo: conversa para entreter cliente ávido de novidades mas suficientemente desconhecedor para acreditar no primeiro profeta que lhe prometa novas sensações, maior qualidade e pouco sacrifício orçamental.)
Encontrar alguém - mais alguém - que saiba do que está a falar, saiba o que está a fazer e, para além disso, saboreie e dê a saborear, sabendo que nervos tocar dentro da nossa matriz de prazer, deixando-nos no lado de cá da gastrossexualidade a uma ténue fronteira do lado de lá - com um sorriso beatífico, o corpo cansado, uma moleza que pede muito a evocação da memória de curto prazo e a satisfação da memória genética de sobrevivência - encontrar alguém assim é motivo para registo, repetição e pedido de adesão clubística.
Já conhecia o Rui Martins - e tenho na memória as peças que ele trouxe, apresentou e preparou no último Congresso dos Cozinheiros - mas há uns dias tive oportunidade de o ver de perto a trabalhar e com ele aprender, num jantar organizado pelo Apartamento.
Sabem o que é O Apartamento? O Apartamento é um "acelerador de partículas urbanas", aquele lugar tranquilo onde nos podemos refugiar das tristezas da cidade, sabendo ser sempre compreendidos e bem-vindos com um miminho: uma conversa, um recato, uma festa de proporções fora da caixa. Sem peneiras e sem name's droping: é bom ter amigos assim, que começaram por ser anónimos e generosos e agora são feitos de cumplicidades várias.
Uma das cumplicidades mais saborosas é a teia de jantares que têm vindo a ser construídos com propostas elaboradas por mãos várias, portuguesas ou nem por isso, autorais ou isso também. Este foi um jantar a que assisti nos bastidores, contente por ver a preparação, por conversar com o autor e por perceber porque caminhos decidiu ir.
Contente também - deslumbrado, diria - pela força dos sabores, pelos modos alternativos com que foram reconstruídos tempos de infância, tempos regionais, de saber que há cozinheiros que não temem a ciência mas que não a derramam em forma de altar sobre as suas criações, usando o conhecimento como ferramenta e não como decoração ou mais um pin na lapela da auto-promoção. Contente também por ver aplicado o que há muito defendo: que não há uma fonte de conhecimento, antes inúmeras e que, para a cozinha portuguesa evoluir, é imprescindível uma ligação, uma teia, uma matriz sólida, consistente e solidária entre os vários actores nela directa ou indirectamente envolvidos, dos produtores aos transformadores, dos pensadores aos investigadores, terminando lógica e imperativamente nos consumidores. Todos com o mesmo nível de consciência, com o mesmo nível de dedicação e, sobretudo, com a mesma vontade de aprender, partilhar e evoluir.
(Claro que, depois - ou antes ou durante - há a questão do dinheiro - mas não está ele subjacente a tudo? Não é por ele, ou pelo que pode pagar, que cá andamos, todos, sem excepção? Haverá outra forma de o garantir em contínuo, no presente e no futuro, que não passe por esta consistência de ligações, por este aprofundamento das trocas, por esta atenção ao outro?)
Não vou falar pelo ou em vez do Rui Martins - a ele caberá tal desígnio fazendo-o, maioritariamente e por enquanto, através do que prepara, obtém, transforma e apresenta. Mas deixo-vos os pratos, com a garantia que todos tinham umami para dar e vender, profundidade de sabor e diversidade de gostos e um equilíbrio assinalável entre o antigo e o contemporâneo, evocando e propondo, relembrando e dando a descobrir. Não chega? Não é bonito passar uma refeição assim, entre a emoção e a razão, entre os sentidos e o pensamento?
Caro chefe, fico à espera da ficha de inscrição.
NOTA IMPORTANTE: Quem for ao Porto, poderá conhecer a cozinha de Rui Martins no RIB Beef & Wine, o restaurante do Pestana Porto Hotel do qual é chefe executivo. Em 2016, conquistou o prémio de Chefe Cozinheiro do Ano 206 no concurso com o mesmo nome.
Já vos chamei a atenção? A ideia é mesmo esta: no meio de tanta porcaria que por aí se faz à carne de vaca - na produção, nos cortes, na confecção -, é importante (indispensável, diria) chamar a atenção do excelentíssimo público para os oásis que nos permitem aplacar a sede de justiça - a justiça de ver bem considerada uma peça bovina - que, carnívoros nos confessamos, ansiamos ver aplicada.
Apesar de Lisboa ter feito das preparações de bifes um orgulho municipal, apesar de, desde que a Europa desapertou os cordões à bolsa doméstica, termos vindo a alimentar a família, o mais quotidianamente possível, a carne bovina, progressivamente mais tenra e mais hormonada; apesar de elevação ao Olimpo da mesa portuguesa do bifecombatatasfritas, do bitoquecomovoacavalo e dos pregos de vaca, a nossa carne é, genericamente, maltratada, os consumidores são, genericamente, pouco menos que ignorantes, as nossas leis aplicáveis à área são, genericamente, autistas em relação às características de sabor.
(E agora chegou - uns anos atrasada e envolta tanto em boatos quanto em mitos - a moda da "carne maturada". Pffff. A maior parte da carne maturada é-o tanto quanto são matutadas as nossas políticas públicas de longo prazo: conversa para entreter cliente ávido de novidades mas suficientemente desconhecedor para acreditar no primeiro profeta que lhe prometa novas sensações, maior qualidade e pouco sacrifício orçamental.)
Encontrar alguém - mais alguém - que saiba do que está a falar, saiba o que está a fazer e, para além disso, saboreie e dê a saborear, sabendo que nervos tocar dentro da nossa matriz de prazer, deixando-nos no lado de cá da gastrossexualidade a uma ténue fronteira do lado de lá - com um sorriso beatífico, o corpo cansado, uma moleza que pede muito a evocação da memória de curto prazo e a satisfação da memória genética de sobrevivência - encontrar alguém assim é motivo para registo, repetição e pedido de adesão clubística.
Groupies: também sou. (Se quiserem a foto do cozinheiro e do tutano, têm de a pedir ao Paulo Amado) |
Já conhecia o Rui Martins - e tenho na memória as peças que ele trouxe, apresentou e preparou no último Congresso dos Cozinheiros - mas há uns dias tive oportunidade de o ver de perto a trabalhar e com ele aprender, num jantar organizado pelo Apartamento.
Sabem o que é O Apartamento? O Apartamento é um "acelerador de partículas urbanas", aquele lugar tranquilo onde nos podemos refugiar das tristezas da cidade, sabendo ser sempre compreendidos e bem-vindos com um miminho: uma conversa, um recato, uma festa de proporções fora da caixa. Sem peneiras e sem name's droping: é bom ter amigos assim, que começaram por ser anónimos e generosos e agora são feitos de cumplicidades várias.
Uma das cumplicidades mais saborosas é a teia de jantares que têm vindo a ser construídos com propostas elaboradas por mãos várias, portuguesas ou nem por isso, autorais ou isso também. Este foi um jantar a que assisti nos bastidores, contente por ver a preparação, por conversar com o autor e por perceber porque caminhos decidiu ir.
Contente também - deslumbrado, diria - pela força dos sabores, pelos modos alternativos com que foram reconstruídos tempos de infância, tempos regionais, de saber que há cozinheiros que não temem a ciência mas que não a derramam em forma de altar sobre as suas criações, usando o conhecimento como ferramenta e não como decoração ou mais um pin na lapela da auto-promoção. Contente também por ver aplicado o que há muito defendo: que não há uma fonte de conhecimento, antes inúmeras e que, para a cozinha portuguesa evoluir, é imprescindível uma ligação, uma teia, uma matriz sólida, consistente e solidária entre os vários actores nela directa ou indirectamente envolvidos, dos produtores aos transformadores, dos pensadores aos investigadores, terminando lógica e imperativamente nos consumidores. Todos com o mesmo nível de consciência, com o mesmo nível de dedicação e, sobretudo, com a mesma vontade de aprender, partilhar e evoluir.
(Claro que, depois - ou antes ou durante - há a questão do dinheiro - mas não está ele subjacente a tudo? Não é por ele, ou pelo que pode pagar, que cá andamos, todos, sem excepção? Haverá outra forma de o garantir em contínuo, no presente e no futuro, que não passe por esta consistência de ligações, por este aprofundamento das trocas, por esta atenção ao outro?)
Não vou falar pelo ou em vez do Rui Martins - a ele caberá tal desígnio fazendo-o, maioritariamente e por enquanto, através do que prepara, obtém, transforma e apresenta. Mas deixo-vos os pratos, com a garantia que todos tinham umami para dar e vender, profundidade de sabor e diversidade de gostos e um equilíbrio assinalável entre o antigo e o contemporâneo, evocando e propondo, relembrando e dando a descobrir. Não chega? Não é bonito passar uma refeição assim, entre a emoção e a razão, entre os sentidos e o pensamento?
"Foie e pêra" - Fígado de boi com pêra bêbada |
(As cores, o sucinto tempo de cozedura) |
Atum e vaca velha = atum com vinagre de katsuobushi (Tranche de atum com vinagre, chiogga, wasabi e rebentos) |
MIlho e jardineira = tortilla com guacamole e lombelo (taco com lombelo, guacamole, pimentos, salsa, coentros, salsa de la vida e cebola) |
(Perante estas tripas do Norte, desculpem-me, só me é permitido um comentário portuense - que sabor filhadaputa! que só de pensar nele fico com a boa aguada!) |
(Anos e décadas remetido à vergonha de ser desperdício, o tutano deveria estar colocado nesse ar rarefeito dos sabores imprescindíveis, da essência do prazer) |
Bacalhau e tutano = feijoada de tripa de bacalhau com tutano assado (Tripas de bacalhau com feijão, enchidos e tutano assado no forno) |
(Falta a língua, que estava do quilé - imaginem-na a partir da foto de baixo) |
Vitela e mostarda = língua de vaca com sementes de mostarda e chalotas (com teriaky e jus) |
Ribeye = japonês (com jus e pimento piquillo) |
(A desfazer-se na boca e nas reticências e com as texturas da cebola...) |
Cebolada = fígado de cebolada (Parfait de fígado com confit de cebola e cebola frita) |
(Rubia gallega, criada em Portugal, sob supervisão de Rui Martins. É excepção, deveria ser regra. Quantas vezes viram um marmoreado destes em carne aqui desenvolvida?) |
Vazia com arroz e Jack Daniels |
Caro chefe, fico à espera da ficha de inscrição.
Os executantes, no final. Sorrisos de satisfação dos comensais, a anteceder as palmas merecidas. |
NOTA IMPORTANTE: Quem for ao Porto, poderá conhecer a cozinha de Rui Martins no RIB Beef & Wine, o restaurante do Pestana Porto Hotel do qual é chefe executivo. Em 2016, conquistou o prémio de Chefe Cozinheiro do Ano 206 no concurso com o mesmo nome.
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