Um prego de atum de atravessar a cidade
Um prego. Pôr no prego. Pregar.
Pregar.
À cozinha tradicional de Lisboa começa-se por aderir como ao catolicismo: por herança familiar cultural, pela segurança que oferece à infância, por traduzir e significar um mundo - o nosso mundo. Por mais que a neguemos depois, que sucumbamos aos cantos de sereia do facilitismo alimentar ou à sofisticação da ideia da diferença, da justiça ou do equilíbrio ambiental, no fundo da nossa memória manter-se-à sempre como o lugar tranquilo onde vivemos os anos da inocência e para onde retornamos quando procuramos uma âncora, um apoio, uma certeza.
Filha, na sua maioria, de progenitores incógnitos nascidos por todo o mundo, de aquém e além fronteira, a que a luz e a água, a riqueza e a escassez, o mar e a horta deram carácter e meneios, a esta cozinha de tascas e casas burguesas, de vielas e avenidas, corresponde um sentir específico, o sentir dos pequenos e quotidianos gestos, em sintonia com a discreta e pouco erudita arquitectura que caracteriza a maioria da cidade. O seu sabor é o das coisas domésticas, dos almoços domingueiros e das idas às hortas, ao futebol e à revista, das memórias das terras de origem e das lembranças das terras visitadas. Viveu mundo, a cozinha de Lisboa e fez-se mundo.
Sobreviveu popular no século XX para escapar ao esquecimento que a adulação pela culinária clássica francesa lhe queria impor. Poucos, como Olleboma ou Maria de Lourdes Modesto, foram seus arautos, dessa exigência de a manter viva e bandeira de uma cidade, rosto dos seus cidadãos, lisboetas, alfacinhas.
Na Lisboa do presente oscila entre o luto das velhas casas que os bairros históricos já não querem, rendidos à gentrificação, e a sua adopção por parte das novas gerações e de franjas de turistas mais ilustrados na arte da descoberta do genuíno.
Viajemos até à rua Nova do Carvalho, paradigma dessa indecisão contemporânea, entre a recuperação e a reconstrução, entre a sobriedade e o feérico, entre o bom gosto e o kitsch. Até há poucos anos poiso de prostitutas e marinheiros, de dancings hard-core e pensões de amores provisórios, de casas de pasto populares que aplacavam os outros apetites ao bairro e à população breve do Cais do Sodré. Hoje, seguindo os passos pioneiros de quem transformou uma loja de artigos de pesca numa bem sucedida casa de comeres especializada em conservas a que se seguiu a adaptação a lugar de moda do prédio que albergava algumas dessas casas de mau porte, a rua é um sucesso comercial, um caminho literalmente cor-de-rosa para o equivalente actual das ruas Direitas medievais, plenas de comércio e gente. Por comércio leia-se hotéis e restaurantes, por gente, leia-se clientes dispostos a pagar o qualquer preço para uma estadia ou refeição na cidade que está na moda.
A mais recente abertura viu nascer uma marisqueira, num primeiro andar de um prédio recentemente recuperado à decadência de décadas, com vista privilegiada para a animação e para o arco sob a vizinha rua do Alecrim. De marisqueiras está a cidade bem fornecida: há-as com renome internacional e infindáveis filas à porta; moribundas, à espera de uma salvadora classificação camarária que parece inspirada em Godot; bem apetrechadas, com produto de elevadíssima qualidade e diversidade e preço a condizer; desinspiradas, desactualizadas, distraídas, vaporosas, um pouco de tudo.
Curiosamente, com esta proximidade do mar e a secular apetência pelas suas riquezas, de mariscos não se encontra muita variedade, nem nas receitas nem nas casas restaurativas de Lisboa. Pratos típicos e específicos da capital são raros, destacando-se, luminosas, as Ameijoas à Bulhão Pato (receita que, ao contrário da vox populi, não foi criada pelo poeta romântico, antes em sua homenagem) e a Santola fria. Usualmente servidos simplesmente cozidos de modo a realçar o seu sabor intrínseco (e porquê tentar melhorar o que, ao natural, se aproxima da perfeição?), os mariscos são prato forte tanto de marisqueiras quanto de cervejarias, estendendo-se a oferta a alguns restaurantes de cariz generalista: caracóis, bitoques, toalhas de papel, imperiais e tremoços convivem em pleno e com agrado geral com gambas e santolas, lagostins e sapateiras, percebes e bivalves. Poucas são as casas que podemos citar ávidas de pairar acima da mediania, explorando as variedades de cada espécie disponíveis na costa portuguesa, poucas são as que, pela sua dimensão, poderemos apresentar como templos da especialidade, como palácios do extremo mariscar. Como na arquitectura da cidade, o negócio é mais de filigrana do que de lingotes.
Voltemos à rua Nova do Carvalho, para um almoço de apresentação. Pesqueiro 25, assim se crismou a neófita casa, irmã mais nova da ainda recente mas bem sucedida casa original que oficia, desde o Verão do ano passado, em São Martinho do Porto, com a colaboração inicial de Rodrigo Castelo, o proprietário dessa Taberna Ó Balcão de bem comer, situada em Santarém.
Espaço tranquilo, de decoração aberta às características pombalinas originais, onde a descontracção impera, num espírito que emula as casas de comer que em tempos foram frequentes na Baixa, nas sobrelojas dos prédios da reconstrução, feitas para os almoços da pequena-burguesia onde era de norma a comida dos 2 bês (boa e barata) e um anónimo Bernardo Soares se alimentava.
Descontracção à mesa mas não na cozinha onde, pelo provado, é elevada a consideração pela matéria-prima, tanto na sua escolha quanto na confecção. Em destaque, os magníficos lagostins de mar e as amêijoas reais da lagoa de Óbidos, a que se junta a sopa de lavagante, consistente, apetitosa.
Por esta amostra e considerando por indução que o restante marisco disponível apresentará as mesmas qualidades, já seria este lugar recomendável, a demandar por quem por perto estiver e a uma marisqueira quiser dedicar o seu tempo de refeição.
No entanto... há mais. Se os pregos do lombo já são peças de apreciável gosto gastronómico, dignos herdeiros da gulodice nocturna lisboeta - imaginem-se a dentar um exemplar como o da fotografia, os dentes a rasgarem aquela altura de carne ma passada, os sucos, a textura levemente crocante do pão aquecido e a imprescindível mostarda inglesa a picar o suficiente para tornar a experiência ainda mais excitante -
o prego de atum - ah, o prego de atum...! - é um monumento de homenagem ao bom gosto... da peça e ao nosso desejo, ao desejo de mastigar uma peça plena de umami, e que agrega notas de mar e notas de "carne". E aqui sim, por esta razão se torna este um local de atravessar a cidade, de ser o demandar foras das horas de procura intensa - a meio da tarde, a meio da noite (a cozinha fecha depois da meia-noite) - e, tranquilamente sentado à varanda e a ver esta Lisboa ou numa mesa bem acompanhada, a matar o desejo e a falar ou pensar em outros desejos, o provar e pensar quão bom é, apesar das nuvens, ser português, lisboeta e, chapelando Almada Negreiros, TUDO!
Pesqueiro 25
Rua Nova do Carvalho, 15 , Lisboa
Aberto todos os dias, entre as 12:00 e a 01:00
Pregar.
À cozinha tradicional de Lisboa começa-se por aderir como ao catolicismo: por herança familiar cultural, pela segurança que oferece à infância, por traduzir e significar um mundo - o nosso mundo. Por mais que a neguemos depois, que sucumbamos aos cantos de sereia do facilitismo alimentar ou à sofisticação da ideia da diferença, da justiça ou do equilíbrio ambiental, no fundo da nossa memória manter-se-à sempre como o lugar tranquilo onde vivemos os anos da inocência e para onde retornamos quando procuramos uma âncora, um apoio, uma certeza.
Filha, na sua maioria, de progenitores incógnitos nascidos por todo o mundo, de aquém e além fronteira, a que a luz e a água, a riqueza e a escassez, o mar e a horta deram carácter e meneios, a esta cozinha de tascas e casas burguesas, de vielas e avenidas, corresponde um sentir específico, o sentir dos pequenos e quotidianos gestos, em sintonia com a discreta e pouco erudita arquitectura que caracteriza a maioria da cidade. O seu sabor é o das coisas domésticas, dos almoços domingueiros e das idas às hortas, ao futebol e à revista, das memórias das terras de origem e das lembranças das terras visitadas. Viveu mundo, a cozinha de Lisboa e fez-se mundo.
Sobreviveu popular no século XX para escapar ao esquecimento que a adulação pela culinária clássica francesa lhe queria impor. Poucos, como Olleboma ou Maria de Lourdes Modesto, foram seus arautos, dessa exigência de a manter viva e bandeira de uma cidade, rosto dos seus cidadãos, lisboetas, alfacinhas.
Na Lisboa do presente oscila entre o luto das velhas casas que os bairros históricos já não querem, rendidos à gentrificação, e a sua adopção por parte das novas gerações e de franjas de turistas mais ilustrados na arte da descoberta do genuíno.
Viajemos até à rua Nova do Carvalho, paradigma dessa indecisão contemporânea, entre a recuperação e a reconstrução, entre a sobriedade e o feérico, entre o bom gosto e o kitsch. Até há poucos anos poiso de prostitutas e marinheiros, de dancings hard-core e pensões de amores provisórios, de casas de pasto populares que aplacavam os outros apetites ao bairro e à população breve do Cais do Sodré. Hoje, seguindo os passos pioneiros de quem transformou uma loja de artigos de pesca numa bem sucedida casa de comeres especializada em conservas a que se seguiu a adaptação a lugar de moda do prédio que albergava algumas dessas casas de mau porte, a rua é um sucesso comercial, um caminho literalmente cor-de-rosa para o equivalente actual das ruas Direitas medievais, plenas de comércio e gente. Por comércio leia-se hotéis e restaurantes, por gente, leia-se clientes dispostos a pagar o qualquer preço para uma estadia ou refeição na cidade que está na moda.
A mais recente abertura viu nascer uma marisqueira, num primeiro andar de um prédio recentemente recuperado à decadência de décadas, com vista privilegiada para a animação e para o arco sob a vizinha rua do Alecrim. De marisqueiras está a cidade bem fornecida: há-as com renome internacional e infindáveis filas à porta; moribundas, à espera de uma salvadora classificação camarária que parece inspirada em Godot; bem apetrechadas, com produto de elevadíssima qualidade e diversidade e preço a condizer; desinspiradas, desactualizadas, distraídas, vaporosas, um pouco de tudo.
Curiosamente, com esta proximidade do mar e a secular apetência pelas suas riquezas, de mariscos não se encontra muita variedade, nem nas receitas nem nas casas restaurativas de Lisboa. Pratos típicos e específicos da capital são raros, destacando-se, luminosas, as Ameijoas à Bulhão Pato (receita que, ao contrário da vox populi, não foi criada pelo poeta romântico, antes em sua homenagem) e a Santola fria. Usualmente servidos simplesmente cozidos de modo a realçar o seu sabor intrínseco (e porquê tentar melhorar o que, ao natural, se aproxima da perfeição?), os mariscos são prato forte tanto de marisqueiras quanto de cervejarias, estendendo-se a oferta a alguns restaurantes de cariz generalista: caracóis, bitoques, toalhas de papel, imperiais e tremoços convivem em pleno e com agrado geral com gambas e santolas, lagostins e sapateiras, percebes e bivalves. Poucas são as casas que podemos citar ávidas de pairar acima da mediania, explorando as variedades de cada espécie disponíveis na costa portuguesa, poucas são as que, pela sua dimensão, poderemos apresentar como templos da especialidade, como palácios do extremo mariscar. Como na arquitectura da cidade, o negócio é mais de filigrana do que de lingotes.
Voltemos à rua Nova do Carvalho, para um almoço de apresentação. Pesqueiro 25, assim se crismou a neófita casa, irmã mais nova da ainda recente mas bem sucedida casa original que oficia, desde o Verão do ano passado, em São Martinho do Porto, com a colaboração inicial de Rodrigo Castelo, o proprietário dessa Taberna Ó Balcão de bem comer, situada em Santarém.
Espaço tranquilo, de decoração aberta às características pombalinas originais, onde a descontracção impera, num espírito que emula as casas de comer que em tempos foram frequentes na Baixa, nas sobrelojas dos prédios da reconstrução, feitas para os almoços da pequena-burguesia onde era de norma a comida dos 2 bês (boa e barata) e um anónimo Bernardo Soares se alimentava.
Descontracção à mesa mas não na cozinha onde, pelo provado, é elevada a consideração pela matéria-prima, tanto na sua escolha quanto na confecção. Em destaque, os magníficos lagostins de mar e as amêijoas reais da lagoa de Óbidos, a que se junta a sopa de lavagante, consistente, apetitosa.
Lagostim do mar |
Gambas cozidas |
Gambas com alho |
Amêijoas à Bulhão Pato |
Sopa de lavagante |
No entanto... há mais. Se os pregos do lombo já são peças de apreciável gosto gastronómico, dignos herdeiros da gulodice nocturna lisboeta - imaginem-se a dentar um exemplar como o da fotografia, os dentes a rasgarem aquela altura de carne ma passada, os sucos, a textura levemente crocante do pão aquecido e a imprescindível mostarda inglesa a picar o suficiente para tornar a experiência ainda mais excitante -
Prego do lombo |
o prego de atum - ah, o prego de atum...! - é um monumento de homenagem ao bom gosto... da peça e ao nosso desejo, ao desejo de mastigar uma peça plena de umami, e que agrega notas de mar e notas de "carne". E aqui sim, por esta razão se torna este um local de atravessar a cidade, de ser o demandar foras das horas de procura intensa - a meio da tarde, a meio da noite (a cozinha fecha depois da meia-noite) - e, tranquilamente sentado à varanda e a ver esta Lisboa ou numa mesa bem acompanhada, a matar o desejo e a falar ou pensar em outros desejos, o provar e pensar quão bom é, apesar das nuvens, ser português, lisboeta e, chapelando Almada Negreiros, TUDO!
Prego de atum |
Pesqueiro 25
Rua Nova do Carvalho, 15 , Lisboa
Aberto todos os dias, entre as 12:00 e a 01:00
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