Um jantar de espumantes
É o espumante um vinho para a mesa, capaz de nos acompanhar na descoberta de toda uma refeição, de se enriquecer com as combinações propostas em cada um dos pratos, de fazer parte de uma memória agradada, aspirante a ser repetida?
Foi a esta pergunta, destinada à grande maioria portuguesa dos ensinados pela prática familiar a reservar o "champanhe" (de preferrência "docinho", de preferência discreto excepto na dimensão da bolha e no estouro da rolha) para o bolo da noiva ou de aniversário que, mais uma vez, o Luís Gradíssimo se propôs responder no âmbito dos seus cursos de introdução aos espumantes.
Curso e jantar apadrinhados pelo espaço austero do piso térreo da ala poente da Praça do Comércio, que o senhor marquês desejou, o engenheiro militar Eugénio dos Santos traçou, o Turismo de Portugal alugou e o restaurante Bacalhau da Praça by Chefe Cordeiro gere - e que se tornou apropriado para o requerido recolhimento estudantil (primeiro para o estudo, depois para a festa).
Telegraficamente (porque devem mesmo procurar explicações com quem sabe - o Luís - e não comigo):
1. O nome correcto é "espumante" e não "champanhe" ("Champagne" é denominação de origem exclusiva dos espumantes produzidos na região francesa de Champagne, situada no Norte de França).
2. Em Portugal, as primeiras tentativas de produção de espumante foram efectuadas em 1890, na Escola Práctica de Viticultura e Pomologia da Bairrada. Bairrada que continua a liderar a produção de espumantes em Portugal, sendo responsável por cerca de 50% dos 30 mil hectolitros da produção nacional.
3. Em quase todas as regiões continentais portuguesas se produzem espumantes, podendo os mesmos ter Denominação de Origem mas apenas a região de Távora-Varosa tem Denominação de Origem exclusiva para espumantes.
4. Não existe uma casta "típica" e mais adaptada aos vinhos espumantes - tudo depende da visão do produtor, da sua candidatura ou não ao selo de Denominação de Origem, da sua sensibilidade para o tipo de características que quer obter. Há, no entanto, castas mais usualmente empregues e que, porventura, reflectirão com mais intensidade as características das várias regiões, como sendo o Arinto (pela sua acidez, pela disseminação que tem pelo território nacional); no Douro, a Rabigato, a Viosinho e a Gouveio (em Trás-os-Montes é a casta favorita); no Minho, a Alvarinho e a Vinhão (para espumantes tintos); no Alentejo a Alfrocheiro.
5. Na Bairrada, a casta Baga (tinta) também se utiliza na elaboração de espumantes brancos, (os chamados "Blanc de Noirs").
6. Classificações. São duas as classificações que podem servir ao consumidor como indicadores do tipo de espumante que pode esperar. A primeira, indicadora da quantidade de açúcar presente: do Bruto Natural (menos de 3 gramas por litro) ao Doce (mais de 50 gramas). A segunda, relacionada com tempo de estágio sobre as borras e que é indicadora da dimensão e qualidade da bolha, a cremosidade, a macieza (aumentam com o tempo de estágio): de Reserva (12 a 24 meses de estágio) a Grande Reserva (mais de 36 meses).
7. Duas notas de consumo importantes. Recipiente: uma flute, nunca uma taça (para não dispersar a bolha e os aromas); abertura: retirar a cobertura, alargar a protecção de arame sem a retirar e, envolvendo o conjunto com a mão, rodar lentamente até sentir a rolha soltar-se, sem a deixar voar).
Depois,a prova de vários exemplos:
Finalmente, o jantar.
Três pratos, mais teoricamente consensuais uns, mais caminho a desbravar, risco assumido e consciente por parte do formador outros.
Duas apostas, como forma de percepcionar os tipos de harmonizações possíveis, com o risco da estranheza (por parte dos aprendizes) e a eventual diferença entre o esperado e a realidade: um espumante para dois pratos, dois espumantes para um mesmo prato.
1. Elpídio Bruto (Caves São Domingos) com Pasteis de bacalhau e feijão frade / Bacalhau à Brás
Uns pastelinhos de bacalhau com feijão frade (nota para a cozinha: pasteis óptimos, feijão com o saleiro esquecido em casa) primeiro; um bacalhau à brás de seguida - o mesmo espumante.
Duas castas, das mais "consensuais", Arinto e Chardonnay, em percentagens iguais, a construir um espumante onde se destaca a elegância do aroma, o sabor frutado, acidez cítrica notória e bolha cremosa.
Duas ideias de harmonização para um mesmo ingrediente principal, o bacalhau, as duas por oposições: na primeira, de texturas - elegância versus a textura "rugosa" dos pasteis e do feijão; a segunda, de sabor - acidez versus a cremosidade dos ovos.
Resultou? Resultou, com a bolha a não se intrometer na descoberta das texturas dos pratos e a acidez a contabalançar mas igualmente a acentuar as características do que estava no prato.
Experiência ganha.
Pasteis de bacalhau com feijão frade |
Bacalhau à Brás |
2. Pernil de porco com Quinta das Bágeiras Bruto Natural Rosé / Quinta de Lourosa Espumante Tinto
De seguida, a proposta inversa: para um prato que percepcionamos inicialmente como uma composição, a demonstração que a bebida pode funcionar como "desconstruidora" dessa aparente unidade, realçando cada um dos elementos (ou parcialmente realçando uns e, pela ausência, realçando os restantes) e as suas características, e assim melhor dar a conhecer (e valorizar) o conjunto.
O prato: gordura, sabores fortes (na carne), acidez (nos grelos), textura cremosa (nas batatas).
Um primeiro espumante - Quinta das Bágeiras - rosé, elaborado a partir da casta Baga, com corpo suficiente para não se perder na imensidão da carne, com secura e frescura a contrabalançar a sua gordura e o seu subtil sabor a bem combinar com o gosto do porco.
Já o Lourosa, originário da região dos vinhos verdes, elaborado com Touriga Nacional e Vinhão, propôs uma viagem completamente diferente. Onde as Bágeiras eram rectidão e elegância este intenso espumante, de aroma frutado intenso, de bolha fina, cordão persistente, encheu a boca, relevando a acidez dos grelos, acentuando sabores, revivendo memórias de outras combinações (verde tinto com rojões, por exemplo) e, com elas, estendendo o alcance do prato.
Pudesse o nosso quotidiano ser igualmente pejado de experiências em simultâneo como esta.
Uma última proposta - o doce de um "Pudim Abade de Priscos" (com acompanhamento de gelado de limão) e o espumante de Joaquim Arnaud.
A sobremesa ;- que, bem respeitosamente feita de acordo com a receita original (se usada a denominação não há lugar para invenções ou "toques de autor"), é um dos mais perfeitos representantes do que é mais intrínseco à doçaria portuguesa (o recurso aos ovos e ao açúcar) - com a cada vez mais habitual interferência do "ar do tempo", a introduzir o gelado como suavizante do doce mas que, incongruentemente, desconsidera (porque a ela se sobrepõe) a untuosidade única da composição.
O espumante, elaborado com a casta Chardonnay da região da Lourinhã, com evolução prolongada em cave que lhe proporciounou uma bolha muito fina e cremosidade acentuada, constitui um belíssimo exemplo das potencialidades do espumante nacional. O ligeiro toque cítrico seria suficiente para pontuar o pudim, sem necessidade do gelado que, aqui, foi impositivo e vencedor.
(As fotos, essas, ficaram na intenção porque, no meio da conversa e na discussão das virtudes e defeitos da ortodoxia, me esqueci de as fazer. Ficam, no entanto, e para lembrança vossa, duas fotos "de estúdio" do pudim canónico e do espumante)
Como memória identificativa: um Pudim Abade de Priscos como manda o senhor abade (Autor: Miguel Oliveira) e o espumante Joaquim Arnaud (foto do produtor) |
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