Tágide e as cozinhas do Tejo
No Estuário do Tejo Corvina sobre ensopado de ameijoas e peixinhos crocantes |
Integrado na Lisbon Food Week, decorreu no restaurante Tágide, o Jantar das Cozinhas do Tejo. Criado pelo seu chefe executivo, Gonçalo Costa, teve por objectivo dar a conhecer os sabores de alguns dos habitantes do rio, inspirado nos modos e nos hábitos culinários de algumas das localidades ribeirinhas.
Um jantar onde se cruzaram, como no Tejo de Caeiro, os "grandes navios" e, "para aqueles que vêem em tudo o que lá não está" (sem ironia), "a memória das naus": a História e a cultura popular, as visitas e as migrações, espécies locais que já foram invasoras, ingredientes típicos que um chegaram como exóticos.
Pessoa, lisboeta toda a sua vida adulta, talvez intuísse essa dualidade do rio, entre a grandeza e a singeleza, traduzida também na cozinha popular que quotidianamente deveria consumir nos numerosos restaurantes da Baixa, nessa mescla de influências ribeirinhas e saloias, galegas e beirãs, minhotas e alentejanas, na abundância dos peixes de mar e do rio, nos bivalves do Mar da Palha, na cozinha de raiz francesa que as grandes casas exibiam orgulhosamente.
O poeta morreu há mais de oitenta anos e também grande parte do rio morreu durante muitos anos, especialmente para nós, citadinos, ocupados em revoluções e com invasões, distraídos muitas vezes, elitistas muito mais. O que era abundante e barato - como as ostras - evoluiu para visitante de luxo, peixes como a tainha passaram - graças à poluição em crescendo - a personae non gratae, e o que era distante, rarefeito, do domínio do quase-inacessível transformou-se - por obra da globalização e das novas comunidades chegadas à cidade - corriqueiro.
Há, no entanto e apesar das muitas águas passadas, uma constância neste rio que passa pela nossa aldeia que importa resgatar, conservar e, como foi desde sempre feito, renovar, usando em simultâneo as memórias e as novas visões, os ingredientes endógenos e os sabores recém-chegados, continuando uma prática que sempre foi nossa e na qual se construiu a gastronomia nacional.
Foi com essa perspectiva que este menu me parece ter sido construído, inspirando-se em algum do receituário das comunidades ribeirinhas, recorrendo a espécies antes invasivas agora habitantes caracteríscas e responsáveis pelo presente "sabor" do rio, trazendo "de fora" sabores que em simultâneo nos usam a memória no seu reconhecimento e a ela acrescentam o registo do prazer de novas experiências. Boa construção, bem pensada, bem fundamentada (e gostei de ouvir, no final, Gonçalo Costa a explicar parte dos caminhos pensados), com algumas surpresas e desafios assumidos e, sobretudo, sem gestos gratuitos ou pirotecnia desenquadrada.
Retenho o piscar de olho do cremoso de caldo verde,
os jogos diversos de sabores e texturas da preparação de lucioperca (e gostava de a ver mais presente nos nossos restaurantes),
a brincadeira com as nossas referências cosmopolitas da enguia com uma apresentação a lembrar um maki frito (a que se junta o ponzu),
as conjugações do ensopado de amêijoas com o peixe frito, da textura deste com a da corvina,
a surpresa do prato de carne com a bem-vinda lembrança que o Tejo não se circunscreve à correnteza,
e a maravilha concentrada que é o sorvete de arroz doce com o crumble a acentuar-lhe o sabor.
Ex-libris de um restaurante que conta na sua história a estrela Michelin atribuída entre 1981 e 1992, o Crepe Suzette servido a terminar e igualmente parte integrante da história da cozinha do Tejo (porque na cidade, durante anos, era sobremesa obrigatoriamente constante de muitos dos seus restaurantes de referência) foi uma justa adição a um menu inclusivo.
Uma palavra para as harmonizações, feitas em exclusivo com algumas das referências da Quinta do Arrobe: Espumante Oculto extra bruto; Oculto branco; Quinto Elemento, Reserva branco; Quinto Elemento, Syrah. Vinhos bem representativos da região Tejo, também eles fruto da integração de elementos exógenos (algumas castas) bem adaptados ao terroir, foram uma contrapartida justa, acentuando algumas das características dos pratos e acrescentando valor a uma refeição já de si prazerosa.
E sem lhes pedir tanto como Camões implorou, a contemplar as ninfas adormecidas a partir do fantástico panorama que das janelas se alcançava me despedi da casa, contente partindo.
Tágide
Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 18 & 20
1200-005 Lisboa (Chiado)
Tel. : +351 213 404 010
(O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,)
Um jantar onde se cruzaram, como no Tejo de Caeiro, os "grandes navios" e, "para aqueles que vêem em tudo o que lá não está" (sem ironia), "a memória das naus": a História e a cultura popular, as visitas e as migrações, espécies locais que já foram invasoras, ingredientes típicos que um chegaram como exóticos.
(O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.)
Pessoa, lisboeta toda a sua vida adulta, talvez intuísse essa dualidade do rio, entre a grandeza e a singeleza, traduzida também na cozinha popular que quotidianamente deveria consumir nos numerosos restaurantes da Baixa, nessa mescla de influências ribeirinhas e saloias, galegas e beirãs, minhotas e alentejanas, na abundância dos peixes de mar e do rio, nos bivalves do Mar da Palha, na cozinha de raiz francesa que as grandes casas exibiam orgulhosamente.
(O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.)
O poeta morreu há mais de oitenta anos e também grande parte do rio morreu durante muitos anos, especialmente para nós, citadinos, ocupados em revoluções e com invasões, distraídos muitas vezes, elitistas muito mais. O que era abundante e barato - como as ostras - evoluiu para visitante de luxo, peixes como a tainha passaram - graças à poluição em crescendo - a personae non gratae, e o que era distante, rarefeito, do domínio do quase-inacessível transformou-se - por obra da globalização e das novas comunidades chegadas à cidade - corriqueiro.
(Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.)
Há, no entanto e apesar das muitas águas passadas, uma constância neste rio que passa pela nossa aldeia que importa resgatar, conservar e, como foi desde sempre feito, renovar, usando em simultâneo as memórias e as novas visões, os ingredientes endógenos e os sabores recém-chegados, continuando uma prática que sempre foi nossa e na qual se construiu a gastronomia nacional.
(O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.)
Foi com essa perspectiva que este menu me parece ter sido construído, inspirando-se em algum do receituário das comunidades ribeirinhas, recorrendo a espécies antes invasivas agora habitantes caracteríscas e responsáveis pelo presente "sabor" do rio, trazendo "de fora" sabores que em simultâneo nos usam a memória no seu reconhecimento e a ela acrescentam o registo do prazer de novas experiências. Boa construção, bem pensada, bem fundamentada (e gostei de ouvir, no final, Gonçalo Costa a explicar parte dos caminhos pensados), com algumas surpresas e desafios assumidos e, sobretudo, sem gestos gratuitos ou pirotecnia desenquadrada.
Retenho o piscar de olho do cremoso de caldo verde,
Amouse Bouche Lagostins do rio sobre cremoso de caldo verde |
A Norte do Tejo Marinada de Lucioperca com orelha torcida e romã |
A Norte do Tejo Marinada de Lucioperca com orelha torcida e romã |
Enguia de Salvaterra Enguia em ponzu de escabeche com salada de beldroegas |
Enguia de Salvaterra Enguia em ponzu de escabeche com salada de beldroegas |
No Estuário do Tejo Corvina sobre ensopado de ameijoas e peixinhos crocantes |
A Sul do Tejo Cachaço de porco e achigã fumado sobre feijoada de camarinhas |
A Sul do Tejo Cachaço de porco e achigã fumado sobre feijoada de camarinhas |
Aperitivo de sobremesa Sorbet de arroz doce, yuzu sobre crumble de canela |
Tradição do Tágide Crepe Suzette |
E sem lhes pedir tanto como Camões implorou, a contemplar as ninfas adormecidas a partir do fantástico panorama que das janelas se alcançava me despedi da casa, contente partindo.
Tágide
Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 18 & 20
1200-005 Lisboa (Chiado)
Tel. : +351 213 404 010
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