Culinary Arts: Denominações e velhas cismas



No mais recente almoço no restaurante de aplicação da EHTL olhava o menu enquanto esperava o primeiro prato e não pude deixar de sorrir com a ironia implícita dos nomes colocados aos pratos - Vieira da Silva, Imperador da Bolívia, Sinaloa França, Sol de Inverno - e de pensar no importante que é para os cozinheiros (fundamental, para quem se quer aventurar no disputado e rarefeito salão da cozinha de celebridade) procurarem igualmente uma aprendizagem lateral, o mais ampla possível, tanto nos anos de formação como durante toda a sua carreira.



Não se trata apenas da construção de uma cidadania informada e interveniente nos labirintos sociais e culturais (a qual deveria ser assumida como uma obrigação por todos) - antes o armar-se com suficientes modos de comunicação com os seus clientes, enriquecendo o essencial (a satisfação através das preparações culinárias) com o fundamental (a acentuação das emoções através de uma boa gestão das expectativas e da descoberta de uma linguagem comum).

Feno, pedras e mar
Uma outra sugestão de leitura para a lista que me chamou a atenção foi a de uma possível lição de história gastronómica, mais propriamente a da evolução da cozinha restaurativa.



Descendem os cozinheiros ocidentais actuais de um modelo fundamentalmente decidido, na viragem do século XIX para o XX, por Escoffier o qual, pelos resultados obtidos, fez escola e se fez escola. Para além da organização dos meios humanos e operacionais, a fixação, optimização, sistematização de uma culinária de base francesa estabeleceu o standard para uma cozinha luxuosa, reflexo do poder económico de quem a procurava, rapidamente adoptada pelos restaurantes e hotéis com pretensões de todo o mundo ocidental.

Vieira da Silva: qual vieira? qual Silva?
O piscar de olho ao cliente que foi igualmente o desafio dos alunos
Uma das características deste modelo foi o da normalização das nomenclaturas, instituindo-se e  fixando-se ingredientes, quantidades e modos de confecção para cada denominação a qual se assumia não como tradução desses elementos antes como símbolo do resultado. (1)

Filha de um tempo de industrialização acelerada, também a cozinha passou a ser uma linha de montagem, revelando-se o talento de cada operário através da capacidade de cumprir objectivos (rapidez, aproximação ao referente) quer por si quer pela equipa chefiada. Zero inovação, infinita obediência aos cânones.

Imperador da Bolívia: o sujeito bem à vista, mas onde procurar o país?
A História avança e com ela a disponibilidade dos seres humanos, a prevalência dos gostos, o esgotamento dos sistemas. To make a long story short, a emergência de sociedades mais adolescentes possibilitou o estado actual da restauração ocidental: ausência generalizada de cânones, liberdade de expressão, maior complacência dos clientes e maior abertura à diferença. Um bom exemplo são as denominações dos pratos: muitas vezes abandonando o simbolismo normativo, procuram uma zelosa pré-explicação que, no afã de tudo esclarecer, perde quem a tenta seguir: ingredientes principais, secundários, técnicas corriqueiras ou obscuras, quais créditos finais em filme de grande produção. Em alternativa, são os cânones grafitados com os vulgares "à maneira do Chefe", "revisitado", levando ao engano quem, distraído, se fia na norma ou entende como ligeiro apontamento o que é incumprimento.

Sinaloa França:  depois de se saber do cartel, o carré d'agneau sentiu-se mais acompanhado. E que dizer da moleja, a qual ninguém citou?
Gostei, assim, deste estilhaçar irónico (chapeau, Chef Nuno!) do estilhaçado hábito contemporâneo, a par do quebra-cabeças de referências que fui convidado a decifrar (umas vezes com sucesso, outras com ajuda - mas no continuar a aprender é que está o ganho).

Sol de Inverno: Madalenas e Simones

É assim a Escola: a deles que também é nossa.

(1) Por exemplo, uns Ovos Fritos à Portuguesa eram ovos estrelados colocados sobre metades de tomate recheadas e arroz e levadas previamente ao forno - incidentalmente, todas as receitas à portuguesa, incluíam, obrigatoriamente, tomate; um Linguado, ou outro peixe, à la Meunière seria sempre frito em manteiga muito quente, depois de ter sido polvilhado com farinha, regado com algumas gotas de sumo de limão, temperado com sal e pimenta, e guarnecido com raminhos de salsa escaldada sobre os quais se deitou, no último momento, manteiga quase noisette, a ferver (Fonte: Le Guide Culinaire, A. Escoffier)

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No último ano..