Três cozinheiros à procura de um Azor

A partir da esquerda: Henrique Mouro, Vasco Lello, Cláudio Pontes
No campo superior da indústria restaurativa competente existem dois planos: o do alimentar e o do espantar.

Não, desculpem, existem três planos de saber.

Há o saber alimentar. Há o saber espantar.

E há o saber sublimar.

Do alimento está a história dos homens cheia. Da necessidade ao engenho. Da cozinha familiar à cozinha de conforto que em muito a sobrepõe. Da fome à fartura. Da infância até à morte, fixado na penumbra da memória, sempre pronto a emergir quando lembrado e evocado.

Do espanto está o presente do Homem (ocidental, aculturado, economicamente desafogado) cheio. Do espanto real, genuíno, intelectualmente estimulante ao fabricado, fotocopiado, gasto. Do fogo-de-artifício ao fogacho. Do inconfundível ao bocejante. Verdade ou encenação. Ocorrência ou liturgia.

O sublimar tem o dom da rarefacção. Precisa da conjugação de momentos, gestos, inspirações, disponibilidades, de uma vida para aprender e de outra para apreender. Jogo de espelhos, de vasos comunicantes, de predisposições. Tem um propósito que parece tão construído sobre acasos que se torna tentador encontrar uma justificação teosófica. Inspirado por Deus. Decidido por deuses.

Começo esta crónica com a memória ainda fresca do jantar "Das Origens para o À Terra", realizado no Azor Hotel, olhando a paisagem em negativo do positivo enquadramento fixado pelas largas janelas da sala de jantar: luzes de presença a pontuarem o negrume da noite micaelense e das águas calmas do porto de Ponta Delgada, num Dezembro subtropical difícil de imaginar pelos continentais.


Eis a memória: um mar português, sem o nevoeiro identificado por um Pessoa pessimista ("nem rei nem lei, nem paz nem guerra / define com perfil e ser / este fulgor baço da terra / que é Portugal a entristecer"), antes um ser luminoso, prenhe de potencialidades, muito bem trabalhado por três cozinheiros - Cláudio Pontes (o chef executivo do Azor Hotel) , Henrique Mouro (quase, quase chef do Areias do Seixo) e Vasco Lello (chef do Memmo Princípe Real) - que, não por coincidência, coincidiram num tempo decisório das suas carreiras, em trabalhar sob a batuta do mesmo mestre (Aimé Barroyer) e que, ainda hoje, mesmo com uma pessoalíssima roupagem, apresentam uma base de criação comum (a que não são alheias as ideias desse - e por isso mesmo - mestre): uma curiosidade pelos ingredientes que os transporta numa descoberta contínua e que se transforma em conhecimento profundo dos mesmos e das suas potencialidades.


Um mar que começou liso, compacto mas cheio de diversidade e que se foi recriando numa onda, a ganhar alento, a criar volume, a mostrar cambiantes, a elevar os comensais e a transportá-los na espuma crescente em crescente intensidade até os pousar na praia, exaustos mas extáticos com a experiência.

E isto é sublimar.

Concretizando.

O cocktail de boas vindas, servido junto ao bar do lobby que, com as suas notas de frutas - deverei, com propriedade dizer tropicais, elas que são produto do arquipélago? -, sintonizou os presentes para os sabores locais e através da elaboração acrescentou o lado contemporâneo.


O trio de entradas, tomate inglês, cornetos de trigo recheados com desfiado de vaca, chips de moreia - um mar&terra de entrada gulosa mas avisadamente leve para mordiscar o palato e sentir com agrado as notas variadas da Joe da Silva (uma American Pale Ale da Oitava Colina), paralelas umas (as notas de maracujá), contrastantes outras (o amargor dos lúpulos) simbólicas outras (algum herbáceo que as ervas do "pasto" incomestível do décor não podiam dar).

Entrada

Novilho sobre trigo ou a vaca no seu pasto

Chips de moreia


Depois os quatro pratos de acento marinho, em ascensão de sabores, muito bem pensados em si e entre si, todos a cruzar identificações de ilhas, a reacender hábitos, a sugerir novas utilizações.

O lírio com uma primeira sugestão do tabaco micaelene (que se iria repetir na sobremesa), o anisado do funcho, o azedo do leite fermentado, as várias texturas. Notaram o verde a quebrar a tonalidade de castanhos e cremes de tudo o resto? Em simutâneo, a bolha suave do Sexy Gold a criar volume, os citrinos que traz a equilibrarem, boa harmonização.

Lírio em tabaco micaelense, leite fermentado e funcho (Vasco Lello)

Sexy Sparkling Gold
"A lula que o Henrique vai trabalhar é enorme!", tinha-me dito anteriormente a Maria de Fátima Moura (vão ao post que ela publicou sobre o assunto e aproveitem para se deleitar com a sua escrita).
Lembrei-me do 20.000 Léguas Submarinas e do horror literário que a lula gigante inspirou durante séculos a marinheiros e aventureiros.

(Fonte: http://sf.co.ua)
Trabalhada em duas texturas (corpo e tentáculos) foi de um prazer imenso a degustar, principalmente o corpo: untuosa, suave, a derreter-se na boca, mantendo o sabor característico. Novamente os diversos diálogos (entre texturas, entre sabores primários), as cumplicidades com o cliente (o milho-rei, as ervas da terceirense BioFontinhas), a exploração das possibilidades do milho com a ponte para uma confecção mais habitual no continente. O rosé utilizado anunciou a transição para vinhos maduros, sendo a sua discreta acidez um contrabalanço para a doçura do milho, e fazendo o mesmo o cremoso para a rugosidade do tentáculo.

Lula gigante, milhos das ilhas e BioFontinhas a trincar (Henrique Mouro)

Rosé da FitaPreta non millésimmé
O espadarte do canal do Faial é uma das inúmeras espécies que podem ser encontradas nas "baixas" do estreito existente entre aquela ilha e a do Pico o qual mereceu honras de personagem num dos livro mais conhecidos do infelizmente cada vez menos conhecido Vitorino Nemésio.

A ele se juntaram dois moluscos, as lapas e as cebolas-do-mar (não confundir as "cebolas" utilizadas com as homónimas herbáceas urginea maritima) a acentuar os sabores marítimos e a aumentar a intensidade do prato. O monocasta Socalcos do Bouro, com notas florais e frutadas pareceu pensado para aumentar a diversidade da experiência, não tendo uma carácter demasiado vincado de  modo a não desvanecer os subtis sabores dos moluscos.

Açores, Açores, Açores, uma súmula de muitas memórias para os locais e uma porta aberta às novas memórias dos presentes.

Espadarte do canal, lapas e cebolas do mar (Cláudio Pontes)
Socalcos do Bouro, Loureiro 2016, verde DOC

O prato seguinte provou como as terminologias clássicas ("de primeira"/ "de segunda", "nobre"/"de pobre") só são válidas nas mãos de cozinheiros desleixados. Senhoras e senhores, olhai o peixe-rei, por muitas gerações relegado para as mesas do canto e que aqui pareceu com honras e por direito próprio como personagem central. De sabor arisco, intensificado pelo molho (de carne) e com a frescura dos espinafres e do ananás, salinidade e acidez com este prato se anunciou a transição para a carne. Simplicidade - na aparência - e, a cada garfada um prazer imenso.

Peixe rei com o rei ananás e os minhotos (Vasco Lello)

Depois, um "enchido" de coelho, com carne de dois cortes, acompanhado pelos ex-tra-or-di-ná-ri-os nabos de Santa Maria os quais, por si, justificam uma visita à ilha (domage, são difíceis de encontrar à venda fora dela - podem sempre combinar com o chef Cláudio... you might get lucky) e a curiosidade do local feijão-arroz. Demonstrativo do que é bem saber equilibrar tradição, regionalismo, concepção, equilíbrio, técnica. Um portento, acompanhado por um outro portento que é a criação de António Maçanita A Proíbida, manifestação legal da proibida casta Isabella, base do vinho de cheiro / morangueiro, o mais açoriano dos vinhos que regulamentações alheias tentam erradicar. Como explicá-lo? Lembra-me outros tempos, tem uma estrutura delicada mas complexa, como uma teia de aromas e sabores que se vão adensando à medida que nos enche a boca e se combina com o alimento. Que beleza.

Coelho regional, feijão arroz e nabos de Santa Maria (Henrique Mouro)


Para terminar, um ossobuco de comer com os olhos, de se derreter na boca, tão suave de textura quanto o puré e o tutano (repararam no piscar de olho da colher?), com a acidez do araçá a açorianizar e a chamar a atenção para o vinhão que o acompanhava. A robustez e acidez características da casta pareceram-me ligeiramente atenuadas o que acabou por constituir uma mais-valia na harmonização com o prato.

100% ossobuco, araçá e alho-roxo (Cláudio Pontes)
Socalcos do Bouro Verde Tinto DOC
No capítulo doceiro, uma pré-sobremesa para limpar o palato e encher de frescura a boca, com o inesperado de se sugar o fruto e se encontrar o recheio trabalhado.

Tamarilho cheio de salva ananás para sugar (João Araújo, chef pasteleiro)
E uma homenagem à Bio Kairós, a horta biológica que abastece o restaurante e que é uma das acções da ONG Kairós, com obra social meritória na ilha e que tem como objectivos a integração no mundo produtivo e a consequente capacitação de pessoas em risco de exclusão social.

Destaco a surpresa do fumo (dentro da saqueta, com o sumo) que só por via nasal se adicionava ao sabor cítrico do sumo.

A Horta Biokairos, da equipa Doce surpresa do Ivan


E assim foi.

Parabéns ao João Couto, director de Food&Beverage do hotel e responsável pelas harmonizações de bebidas.

E porque é merecido e sentido, um agradecimento especial ao Azor Hotel, Turismo dos Açores e SATA Azores Airlines sem os quais a viagem e a comparência ao jantar não teriam sido possíveis.

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No último ano..