Culinária de Lisboa # 45 - Roupa Velha
Querida Mô,
As minhas mais profundas desculpas pelo silêncio de mais de um ano.
Afundei-me.
Deixei-me cair para o lado da indiferença pessoal, à espera da ruptura, sem força para rupturas, a tentar Deus e o Acaso, na esperança de chegar o dia do resgate ou do despejo final, do despejo da casa pelas dívidas acumuladas até à indigência ou do despejo para a vala comum por inanidade dos poucos que restam, pouco disponíveis, pouco dispostos a um último gesto.
Ainda hoje, só dificilmente me encontro respostas, a depressão é como o caminhar na idade, pequenos incrementos diários, pouco perceptíveis, negligenciáveis que, quando observados em somatório compõem a desilusória imagem real.
Houve um momento decisório, em que as tentações do mundo me apareceram indiferentes, em que, por detrás da máscara social, dos gestos perfunctórios, dos sorrisos e das palavras afectuosas, se começou a alastrar um silêncio interior, em que o outro-eu que sempre me confrontou se começou a calar, a frequentar as mesmas ideias, a perder o gosto pelo confronto, pelo desafio, pelo alento? Houve, parece-me intui-lo, mas posso estar enganado, esse momento ser apenas o ápice do acumular das pequenas desilusões, pessoais, próximas e gerais (o que é uma desilusão mais do que o final de uma ilusão?) com que a vida nos vai preenchendo os intervalos das alegrias, verdadeiras e falsas alegrias?
O fecho da empresa municipal para onde os cantos de sereia me transferiram e que as mesmas sereias, sem apelo nem agravo decidiram encerrar, por mal explicados desígnios. A morte de minha mãe. A cidade que se desfaz, perante o pouco esclarecimento de muitos e as vistas curtas de outros. Os projectos falhados. Os maus clientes. As borlas. A social e generalizada ausência de curiosidade, da vontade de aprender, de perceber, de mais saber que, de vergonha, passou a norma orgulhosa.
Quando nos acontecemos num mundo que não sentimos, o que fazer?
Continuar a máscara e ir encerrando contas-correntes, pouco a pouco, nesses incrementos pouco visíveis que passam por entre as gotas de chuva do dia-a-dia dos demais.
E talvez a tempestade passe. Talvez um dia amanheça como a manhã de Natal, depois dos excessos vesperais e, lentamente, reconstrua o caminho repescando as sobras da vida, as humildes sobras da vida e, repetindo os gestos dos nossos antepassados, dos nossos pares, com elas elabore uma "roupa velha" de agradecimento e regeneração.
ROUPA VELHA DE PEIXE À LISBOETA
(Adaptada para o natalício bacalhau cozido com batatas e grelos mas genericamente é um aproveitamento das sobras de qualquer peixe cozido ou assado.)
Peixe cozinhado
Batatas cozidas - A mesma quantidade
1 dl Azeite
2 folhas de Louro
2 Dentes de alho
1 Cebola
2 c. sopa Vinagre
Separa-se a carne do bacalhau em lascas e cortam-se as batatas. às rodelas. Pica-se a cebola e partem-se os dentes de alho ao meio. Numa frigideira faz-se um refogado com o azeite, louro, alho e cebola. Quanto esta começar a alourar junta-se o vinagre e deixa-se ferver 2 a 3 minutos, acrescentando-se então o bacalhau e as batatas. Deixar voltar a ferver, mexendo bem. Rectifica-se de sal e pimenta e serve-se bem quente.
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