Culinary Arts, Season 4: o fim da História


Pode uma aula de História atingir os seus objectivos sem que a maioria dos seus destinatários a reconheçam como tal?

Pode, com a necessária dose de audácia, irreverência e aquela atitude de não se levar a sério no trabalho que se leva muito a sério.

Veja-se o derradeiro almoço de aplicação da turma de Culinary Arts da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa que agora se graduou: pratos representativos da História da cozinha ocidental, pratos com histórias - as originais e as que agora se acrescentaram às memórias de executantes e consumidores.


Cinco pratos, cinco nomes fundamentais da restauração francesa que se revelaram, mais do que pela biografia, ou por palavras circunstanciais, num conjunto de preparações que, pelo ar rarefeito que alcançaram, atravessando o seu Rubicão, ganharam o domínio dos deuses culinários.

Em quatro, o denominador comum da Nouvelle Cuisine. Como não quero ser eruditamente cansativo quando o almoço o não foi, prefiro aqui deixar algumas histórias destes mesmos criadores, recorrendo a dois jornalistas / críticos americanos que, no começo dos anos 1970 assistiram de perto ao começo dessa revolução nada silenciosa.

As primeiras estão presentes num texto de Raymond Sokolov, crítico gastronómico do New York Times nos anos 1970, retirado das suas memórias, "Steal the Menu: a Memoir of Forty Years in Food":

(Em 1972)
"Saí do avião a pensar vir a encontrar pouco mais do que uma pequena mudança em relação ao modo como as coisas estavam no mundo glacialmente avançado da culinária francesa quando saí do escritório de Paris da Newsweek em 1967. Nada do que tinha lido na imprensa gastronómica me preparara para a agitação que finalmente trazia mudanças radicais à comida francesa após a paralisia da Depressão, a tragédia da guerra e os vinte e cinco anos de recuperação do pós-guerra. (...)

Contei a Karen o meu plano para comer num restaurante de três estrelas nos arredores de Lyon, dirigido por Paul Bocuse, de quem tinha ouvido falar em 1967; o chefe do escritório, Joel Blocker, tinha-o proposto, sem sucesso, para uma reportagem de capa da Newsweek sobre jovens chefs franceses que teria sido presciente. Desde então, o restaurante homónimo de Bocuse, tinha aumentado de duas para três o número de estrelas no Guia Michelin. Até eu sabia disso. Karen Hess, no entanto, não mostrou nenhum interesse em Bocuse ou na minha viagem. Apesar da obsessão com a comida, ela, como a maioria dos parisienses, ainda não tinha percebido que vivia no meio de um momento de mudança histórica na culinária francesa. (...)

No comboio para Lyon, peguei numa cópia da edição regional do semanário L'Express, que um passageiro deixara no meu assento. Tinha Bocuse na capa com o seu alto toque branco. O artigo saudava-o como chefe de fila, o líder, de um momento revolucionário na história culinária francesa. Tudo começara numa outra cidade do Vale do Ródano, Vienne, na cozinha de Fernand Point, onde Bocuse, Guérard e os irmãos Jean e Pierre Troisgros, que agora floresciam em Roanne, tinham estagiado e aprendido com Point sobre o que aparentava ser uma cozinha simplista mas que se revelara uma desconstrução e reabilitação de toda a tradição e prática de cozinhar.

Bocuse - Loup en croûte
Assim instruído, jantei no Bocuse com Jack. Na manhã seguinte, tornei-me o primeiro das dezenas de jornalistas anglófonos a ser levado pelo grande homem num passeio pelos mercados de Lyon, onde realizou uma espécie de volta de compras localvoristas ao amanhecer. Depois, continuámos com um plat du jour de meio da manhã na sua tasca favorita, um tipo de bar-bistro conhecido localmente como um bouchon.

De volta a Paris, sentei-me na pequena sala de jantar do Le Pot au Feu para uma refeição de sabores surpreendentes escondidos em pratos de informalidade enganosa. Noutro almoço, provei pratos fora de moda no L'Archestrate de Alain Senderens. Alguns deles, como o ensopado de enguia do século XIV chamado brouet d'anguille, tinham sido ressuscitados dos primeiros dias da culinária francesa. Senderens também reviveu o intrincado tratamento clássico do queijo de cabeça, tête de veau en tortue e criou um tratamento subtil de nabos em cidra acompanhados com puré de aipo.

Senderens - Canard Apicius

Foi uma semana espectacular para um gastrónomo norte-americano, mas para um jornalista americano de comida, foi o furo de uma vida.



No dia 6 de abril, quinta-feira, depois da Páscoa, dei o meu melhor para descrever o novo mundo em que havia tropeçado, a "revolução gentil" que logo seria conhecida como a nouvelle cuisine. Paul Bocuse foi o mais teatral desses Jovens Turcos, como pessoa e na cozinha. Serviu-me um robalo inteiro envolvido em massa folhada com o formato de um peixe com escamas, com um molho béarnaise atomatado, aquilo a que Escoffier chamava de sauce Choron. 




Menu do Restaurant Paul Bocuse
(Fonte: "Steal the Menu: a Memoir of Forty Years in Food", Raymond Sokolov)

Mas foi a tasca-de-vinte-lugares de Michel Guérard, que serviu a comida mais voltada para o futuro.Uma fatia de foie gras des Landes, foie gras fresco do sudoeste da França preparado no restaurante, chegou inteiramente sem adornos, sem aspic ou trufa ou mesmo salsa. Mas este foie gras era de uma suavidade e potência que dispensava complementos. Para os que desejavam algo mais variado para entrada, havia a salade gourmande -feijões profundamente verdes misturados com fatias de trufa, foie gras fresco, pedaços de fundos de alcachofra e um molho de vinagrete evanescente."

Pronto.

Como me entusiasmo na pesquisa e gosto de partilhar, aqui fica igualmente um texto sobre Michel Guérard escrito dois anos depois (estava o Abril prestes a florescer entre nós e o Tavares, levado pelas agruras do PREC, prestes a oferecer refeições económicas) para as páginas da Gourmet, pelo jornalista Joseph Wechsberg:


"Michael Guérard é o proprietário e chef do Le Pot au Feu, um pequeno restaurante com um ar fora de moda no fora de moda subúrbio de classe trabalhadora, de Asnières. A rue des Bas parece um bom cenário para o que os franceses chamam romain policier, um romance policial. Mas M. Guérard é frequentemente alvo de conversas entre comensais sérios em Paris, e ultimamente começa a ser difícil conseguir uma mesa no seu restaurante, que tem lugar apenas para trinta pessoas. Guérard pertence ao grupo pequeno (cerca de uma dúzia de membros) que se chama, com franqueza e sem modéstia, "la grande cuisine française" (a grande cozinha francesa) ´(...) O grupo inclui alguns dos artistas mais interessantes que actualmente actuam na cena gastronómica francesa. O porta-voz não oficial é Paul Bocuse. Dois membros célebres confidenciaram-me: "Guérard é provavelmente o mais imaginativo de todos nós". Aparentemente Michel Guérard tem o que mais interessa num artista - o respeito de seus colegas artistas. (...)

O Le Pot au Feu está instalado numa sala tipo celeiro, que alguns convidados mais impressionáveis ​​podem considerar charmoso e outros apenas assim-assim, com desconfortáveis ​​banquetas ao longo da parede, cobertas de um tecido de nylon, toalhas e guardanapos vermelhos e um bar na parte traseira. Tudo parece terrível, mas não é. Na noite em que estivemos lá, todos os clientes pareciam conhecer-se, com o Sr. Guérard servindo como a ligação invisível. Os comensais recebem dois potes pequenos de manteiga, uma doce, a outra ligeiramente salgada. Há uma lista de vinhos pequena e requintada, mas ninguém reclama. Tomámos algo que nunca tínhamos experimentado: um branco, repito branco Beaujolais, fresco, frutado e leve. Embora fosse servido num jarro e não me pudessem precisar a origem, era inconfundivelmente Beaujolais. (...)

Ninguém no Pot au Feu vem para ver e ser visto. Existe um tipo de excitação diferente. Um francês com dois queixos perto de nós assobiou com admiração quando lhe foi servido o merlan à la julienne de legumes segundo Fernand Point. Guérard, um dos poucos chefs franceses de destaque que não é membro da Escola de Point, há muito admira o grande maître e nomeou uma de suas criações mais originais em honra de Point. Guérard parece-se com o maître na sua filosofia; adora desafios e gosta de tornar as coisas difíceis para si mesmo, tendo a imaginação e a técnica necessárias. (...)

O badejo de Guérard estava delicioso, cozido num consommé com legumes e servido com um recheio feito de cogumelos e trufas e um molho contendo um pouco de manteiga, mas sem natas. Caracteristicamente, Guérard perguntou no final do nosso jantar: "Estava suficientemente leve?"


Guérard - Pot-au-feu de la mer

Os jovens artistas da cozinha em França entendem que menos pessoas do que antes se podem dar ao luxo de comer os molhos pesados e cheios de natas feitos pelos chefs mais antigos, por mais excelentes que sejam. Comedores sérios começam a solicitar uma cozinha mais leve, mesmo nos templos da gastronomia francesa, onde a palavra "calorias" já foi considerada sacrílega. Isso complica os assuntos para o chef. A cozinha leve e quase transparente de Guérard diz a verdade e nada mais do que a verdade. (...)

Prove-se, por exemplo, o pâté d'anguille à la mousse de cresson de Guérard. Parece fácil: um patê feito de enguia com um puré de agrião. Na verdade, o prato é uma obra-prima da imaginação, design e execução. Muito trabalho (talvez seja preciso dizer, de técnica virtuosa) é feito na pequena cozinha, menor do que a de muitas casas americanas, onde Guérard trabalha com três jovens e uma máquina de lavar louça. Mas as dimensões de uma cozinha não têm relação com a qualidade dos alimentos produzidos. Tudo deve ser cuidadosamente pensado e organizado. A salade gourmande é apenas isso: feijão verde, foie gras, espargos e trufas. A terrine paysanne Prieuré Saint-Saturnin, feita com fígados de galinha e ganso, era luxuriante, mas não muito leve. Infelizmente, não estávamos na temporada do foie gras frais de Landes préparé à la maison, o qual, dizem, é extraordinário. A sua última criação é poissons cuits sous les algues (suivant arrivage), o peixe cozido em algas marinhas, o que parece bastante atraente, mas não houve arrivage (entrega) quando estivemos lá. Outra especialidade é o ragoût fin Bontoux, feita com coquillettes, trufas, foie gras e molejas. Não é de admirar que os colegas artistas de Guérard admirem a sua imaginação. É compatível com seus padrões exigentes: ele extrai o melhor dos melhores ingredientes disponíveis, a qual é a única maneira de praticar a gastronomia. Ele usa vinagre em alguns pratos e gosta do contraste entre doce e azedo - a influência chinesa - e seu canard confit à la maison, frio ou quente, é ligeiramente caramelizado e tem a cor de canard laqué. 

(...)  O Guia Michelin dá a Guérard duas estrelas; talvez sintam que o ambiente não é suficiente para a terceira estrela. Ele alcançá-la-á. Guérard entende a verdade básica de que a gastronomia exige novas ideias antigas ou ideias antigas e novas, desenvolvidas com provocação. Está sempre a experimentar. Um excelente cozinheiro nunca pára de fazer isso."

(Em "La Grande Cuisine Française", Joseph Wechsberg, Gourmet Magazine, Abril 1974)

Já a Lièvre à la Royale, pela força do seu carácter mítico, ultrapassa as fronteiras das escolas. Começando por ser um prato emblemático das grandes cozinhas nobres e burguesas, atribuído inicialmente a Carême, foi o centro de enorme debate na entrada do século XX, devido à existência de duas receitas - uma, do senador da República Aristide Couteaux que, em 1898, a oferece ao mundo com os trinta dentes de alho, sessenta chalotas, duas garrafas de Chambertin e uma solitária lebre macho; a outra a de Ali-Bab, pseudónimo de Henri Babinski, que no seu livro "Gastronomie Pratique" contrapôs uma composição mais perfumada, que não menos pesada, retirando a preponderância de alhos e chalotas e introduzindo o foie gras e as trufas, acrescentando-lhe um carácter que me parece mais erudito, ao propor ainda que a carne fosse arranjada numa ballotine e reforçando a untuosidade do molho com, para além do foie gras, algumas gemas.

Com uma versão ou outra, os excessos calóricos, a justaposição do molho aos sabores "puros" da carne, o largo tempo de preparação sumulavam tudo o que os cultores da Nouvelle Cuisine procuravam contrariar.

Até que Bocuse, na sua obra "La Cuisine du Marché" a recupera, oferecendo-lhe o seu talento, o seu sentido de gosto e de cozinha.

Guerras à parte, é um tour de force que qualquer cozinheiro com escola (e uso o termo no seu sentido ideológico e não formativo) deseja realizar. Foi assim com Nuno Diniz , que vi neste grupo o talento necessário para o coadjuvar.

E valeu a experiência.

Carême - Lièvre à la Royale
As fatias da ballotine


Já a sobremesa, estava doce... e foi doce de comer.

Bras - Le gateau de Potimarron
(sorry guys... a mão da colher foi mais rápida do que a da máquina fotográfica...)

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No último ano..