Novas (das) Migas de Mora - Pedro Sommer Ribeiro (II)
(continua daqui)
Deixada a bela aventura do almoço, subida a rua de S. Pedro, eis-nos no coração do edifício da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Mora, agremiação fundada em 1940 e que desde então tem socorrido a população e os espaços do concelho num trabalho benemérito que nunca é demais reconhecer e agradecer.
Se há indicador que bem caracteriza uma sociedade é a sua capacidade de se solidarizar e bem defender todos os seus, sem discriminação nem contrapartidas. Neste tipo de associativismo nunca foi Portugal parco e, por esse facto, teremos sempre de nos regozijar. Bem hajam!
Onde também nunca fomos deficitários foi na capacidade de bem nos servirmos à volta de uma mesa: podemos não ser os mais elaborados, os mais requintados ou ter os mais culturalmente avançados factores gastronómicos mas duvido que o prazer obtido à mesa com os sabores e a sua partilha em qualquer parte do mundo supere o que por aqui ocorre diariamente.
Somos o que somos e quem não é para comer não é para trabalhar.
Dito isto, que melhor lugar para juntar solidariedade e partilha, abnegação e prazer, resistência e... resistência, que um restaurante instalado no edifício de uma Associação de Bombeiros Voluntários?
Não há.
Nesta AHBV de Mora, fomos encontrar um feudo de bem comer e melhor receber. Com mais precisão, um feudo de Brotas, de bem comer e melhor receber.
Conhecem a aldeia de Brotas? Deviam. Para além de O Poço, de uma Torre das Águias renascentista em acelerado estádio de dissolução, do maior culto nacional a Nossa Senhora antes de Fátima, parte da aldeia está encaixada no barranco que está na base do milagre que deu origem ao culto, num conjunto formoso que merece visto. Milagre cuja história merece igualmente ser ouvida, bem como as vitórias da devoção a que os séculos assistiram, da imagem que gerações de marinheiros levaram na demanda do mundo e que deram origem à perpetuação do culto em paragens tão longínquas quanto o Brasil ou a Índia, à protecção que terão merecido todos os filhos de Brotas que, combatendo na guerra colonial a morte evitaram.
De Brotas é originária toda a equipa que gere e faz funcionar o restaurante. Encimada pelo casal Lúcia Relvas e Manuel Barbeiro - à boa maneira da tradição, ela na cozinha, ele na sala -, coadjuvada pelos filhos (um na sala, a outra a trabalhar os media sociais) e pela D. Maria Inácia (outra brótense (assim, com o "ó" bem aberto, como me ensinaram) de gema) procede diariamente ao milagre da multiplicação da memória em confecções que deixam perdido de satisfação quem passa e fica.
É do Portugal - nós citadinos confessamos - buscado em nostalgia crescente que se fala nesta casa: das migas tradicionais aos sabores familiares, passados de geração em geração, pela prova e pela prática doméstica.
Comecemos pelas migas de Pedro Sommer e lá iremos depois a esse território mais profundo.
As bochechas, ou os seus sinónimos regionais, burras, faceira, pertencem ao conjunto de matérias do porco que, neste jeito snobe que muitos mantêm, é considerado "menor". "De terceira", dizem-nos, fazendo par com os graúdos "miúdos". Que oportunidades perdidas de prazer para tantos, fechados nas suas redomas de gosto!...
Em verdade vos digo que, bem trabalhadas em lumes tranquilos, as bochechas são das carnes mais saborosas, sem entraves de textura, que podemos provar. Assim quis o Chefe que ficasse provado mais uma vez e assim se fez, começando por estufar de véspera as ditas em vinho tinto, cogumelos e grão, perfumadas com alecrim, em lume suave e tampa colocada.
Depois foi coar o caldo, apurar e rectificar o caldo (diminuir-lhe a acidez do vinho, equilibrar o alecrim), picar os cogumelos e começar a fazer as migas, temperando-as com o caldo,
olhar as disponibilidades e adicionar novas sugestões de gosto.
E, perante o olhar acolhedor dos vinhos de proximidade (o Cananó é produzido na freguesia do Cabeção, no mesmo concelho; o Herdade das Servas na vizinha Estremoz), serviu-se o petisco
ao som do acordeão e das melodias populares,
aos clientes presentes, deliciados cm o sabor e agradavelmente surpreendidos com a inusitada presença do grão e das memórias gastronómicas por ele evocadas.
Quanto às delícias da casa...
Provámos as migas de tomate e de espargos e delas digo que merecem ser provadas e mais provadas. Dá gosto perceber uma cozinha de luta, de busca nos cantos familiares, de perceber que, aqui, regionalismo é hábito e não norma.
Dá gosto perceber que se usam os vinhos de ao pé da porta, sem cedências imediatas a "estrangeirismos" ou conselhos de fregueses alheios da realidade local. Que, sem o pensar, se admite a prática mais natural deste mundo, que é o de unir a cozinha local à produção vinícola local, repetindo a simbiose que foi a responsável inicial por estes sabores, por estes saberes.
Dá gosto descobrir preciosidades em risco de amarelecer de esquecimento, como estas Filhoses de Canudo e da antropologia subjacente, dos homens (só os homens!) a enrolá-los num canudo sobre a perna, em tarde de festa comum e alegria na aldeia e do hábito de as servirem recheadas com arroz doce (sem ovos!).
Dá gosto descobrir e trazer no coração estes licores de receita herdada, de frutos de apanhar ao lado da casa, nos montes e bosques fronteiros, como o Murtinho local, outra das especialidades que a hiper activa Lúcia domina.
Como acabar uma viagem, se não em festa, pratos e travessas e gula e conversa e as experiências, as informações, as sugestões, os sonhos, as realidades em franca e descontraída partilha?
Restaurante/Bar da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Mora
Terreiro dos Frades, nº7, Mora
Tel.: 266 409 100
A equipa de prevenção no dia da nossa visita |
Onde também nunca fomos deficitários foi na capacidade de bem nos servirmos à volta de uma mesa: podemos não ser os mais elaborados, os mais requintados ou ter os mais culturalmente avançados factores gastronómicos mas duvido que o prazer obtido à mesa com os sabores e a sua partilha em qualquer parte do mundo supere o que por aqui ocorre diariamente.
Somos o que somos e quem não é para comer não é para trabalhar.
Dito isto, que melhor lugar para juntar solidariedade e partilha, abnegação e prazer, resistência e... resistência, que um restaurante instalado no edifício de uma Associação de Bombeiros Voluntários?
Não há.
Nesta AHBV de Mora, fomos encontrar um feudo de bem comer e melhor receber. Com mais precisão, um feudo de Brotas, de bem comer e melhor receber.
Conhecem a aldeia de Brotas? Deviam. Para além de O Poço, de uma Torre das Águias renascentista em acelerado estádio de dissolução, do maior culto nacional a Nossa Senhora antes de Fátima, parte da aldeia está encaixada no barranco que está na base do milagre que deu origem ao culto, num conjunto formoso que merece visto. Milagre cuja história merece igualmente ser ouvida, bem como as vitórias da devoção a que os séculos assistiram, da imagem que gerações de marinheiros levaram na demanda do mundo e que deram origem à perpetuação do culto em paragens tão longínquas quanto o Brasil ou a Índia, à protecção que terão merecido todos os filhos de Brotas que, combatendo na guerra colonial a morte evitaram.
De Brotas é originária toda a equipa que gere e faz funcionar o restaurante. Encimada pelo casal Lúcia Relvas e Manuel Barbeiro - à boa maneira da tradição, ela na cozinha, ele na sala -, coadjuvada pelos filhos (um na sala, a outra a trabalhar os media sociais) e pela D. Maria Inácia (outra brótense (assim, com o "ó" bem aberto, como me ensinaram) de gema) procede diariamente ao milagre da multiplicação da memória em confecções que deixam perdido de satisfação quem passa e fica.
Os pratos do dia: migas em quatro variações, nas mãos de Maria Antónia, Lúcia, Pedro e Manuel (da esquerda para a direita e sem "Donas ou Dons" - ora toma que é democrata!) |
Comecemos pelas migas de Pedro Sommer e lá iremos depois a esse território mais profundo.
O cozinheiro, as cozinheiras, o mestre sala e a troca de ideias |
Em verdade vos digo que, bem trabalhadas em lumes tranquilos, as bochechas são das carnes mais saborosas, sem entraves de textura, que podemos provar. Assim quis o Chefe que ficasse provado mais uma vez e assim se fez, começando por estufar de véspera as ditas em vinho tinto, cogumelos e grão, perfumadas com alecrim, em lume suave e tampa colocada.
Depois foi coar o caldo, apurar e rectificar o caldo (diminuir-lhe a acidez do vinho, equilibrar o alecrim), picar os cogumelos e começar a fazer as migas, temperando-as com o caldo,
olhar as disponibilidades e adicionar novas sugestões de gosto.
E, perante o olhar acolhedor dos vinhos de proximidade (o Cananó é produzido na freguesia do Cabeção, no mesmo concelho; o Herdade das Servas na vizinha Estremoz), serviu-se o petisco
ao som do acordeão e das melodias populares,
aos clientes presentes, deliciados cm o sabor e agradavelmente surpreendidos com a inusitada presença do grão e das memórias gastronómicas por ele evocadas.
Quanto às delícias da casa...
O caldo de tomate para as migas... de tomate |
Provámos as migas de tomate e de espargos e delas digo que merecem ser provadas e mais provadas. Dá gosto perceber uma cozinha de luta, de busca nos cantos familiares, de perceber que, aqui, regionalismo é hábito e não norma.
Migas de tomate com peixe frito |
Migas de espargos com carne do alguidar |
Dá gosto perceber que se usam os vinhos de ao pé da porta, sem cedências imediatas a "estrangeirismos" ou conselhos de fregueses alheios da realidade local. Que, sem o pensar, se admite a prática mais natural deste mundo, que é o de unir a cozinha local à produção vinícola local, repetindo a simbiose que foi a responsável inicial por estes sabores, por estes saberes.
Dá gosto descobrir preciosidades em risco de amarelecer de esquecimento, como estas Filhoses de Canudo e da antropologia subjacente, dos homens (só os homens!) a enrolá-los num canudo sobre a perna, em tarde de festa comum e alegria na aldeia e do hábito de as servirem recheadas com arroz doce (sem ovos!).
Filhoses de canudo com açúcar e canela |
Dá gosto descobrir e trazer no coração estes licores de receita herdada, de frutos de apanhar ao lado da casa, nos montes e bosques fronteiros, como o Murtinho local, outra das especialidades que a hiper activa Lúcia domina.
Como acabar uma viagem, se não em festa, pratos e travessas e gula e conversa e as experiências, as informações, as sugestões, os sonhos, as realidades em franca e descontraída partilha?
Restaurante/Bar da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Mora
Terreiro dos Frades, nº7, Mora
Tel.: 266 409 100
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