Lembram-se do Luís Portugal?
Talvez não, que o rio mediático é rápido no seu correr. Numa das edições do
MasterChef foi uma espécie de Zé Carioca bragantino, rápido na frase e quase exasperante no argumentário e na postura, algo facilmente englobável na temporária glória televisiva mas mais difícil de aceitar na minha peneira de gosto. Aprendi a apreciá-lo com o tempo e o convívio, a perceber que, por detrás daquela velocidade, da fúria de viver, existiam argumentos que me apelavam, uma postura de vida que, em parte, paralelamente corria com a minha visão, os meus gostos, a minha portugalidade.
O Luís Portugal é um Fernando Pessoa direito aos nossos afectos: primeiro estranha-se e depois entranha-se, desta vez sem Professor Ricardo Jorge a interditar o nosso consumo.
Há três anos abriu um restaurante na sua terra natal, nele repetindo esse cruzamento entre tradição e contemporaneidade que, desde sempre, constituiu a essência da cozinha regional (não acreditam que a mesma surgiu um dia, pronta a usar para todo o sempre, em tábuas de lei trazidas do cimo da montanha mais próxima, pois não?): memória e criação, dois lados da mesma moeda da aprendizagem, tentativa e erro até ao resultado desejado, a história da nossa cozinha, aqui repetida com bom gosto.
Ao contrário do que o nome poderia supor, nele não encontramos comida de bigode e garrafão de cinco litros, carrascã e despachada para embasbacar turistas ocasionais de visita ao belo conjunto medieval que a cidadela tem para oferecer.
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Domus municipalis: construído no primeiro terço de Quatrocentos, o conjunto do espaço de reunião dos "homens bons" da cidade construído sobre a cisterna, constituiu um dos expoentes arquitectónicos do românico do Nordeste português |
O que temos é o respeito, saído do amor, pelas matérias-primas e pela produção local, transformados tanto da forma mais tradicional, como o Cozido de Butelo e Casulas,
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O butelo e seus acompanhantes |
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... e as casulas, com a magnífica batata transmontana |
como em preparações de transição entre o clássico e o contemporâneo que recombinam formas tradicionais, como os pãezinhos de butelo ou esta bola de butelo,
ou ainda em preparações mais generalizadas, como esta tarte, onde junta ao doce dos frutos endógenos e do mel da região, a acidez tropical do maracujá.
Ainda, porque o mundo não pára nos limites do distrito, e a nossa relação com o outro também se faz de receber, uma sobremesa de chocolate acentuado pela pimenta rosa e a cor local em apontamento discreto mais incisivo na diferença.
Nessa mesma linha de comunhão com o mundo e percebendo que a melhor forma de dar é também aceitar - aprender sempre para melhor oferecer deveria o mote de qualquer profissão, mais ainda no mundo da gastronomia - como comemoração do terceiro aniversário, convidou quatro amigos cozinheiros para, em Sábados consecutivos, festejar a quatro mãos com os clientes: André Silva, Renato Cunha, Paulo Matias e Luís Barradas. Quatro cozinheiros com provas dadas, oriundos de regiões muito diversas neste país e práticas a a fazer supor grandes jantares de partilhas.
Tive a oportunidade de estar presente no primeiro jantar, que juntou Luís Portugal e André Silva e pude comprovar como, de maneiras diferentes, os dois se deixam influenciar pela envolvente gastronómica e de como, vindo de percursos inversos, conseguiram atingir o ponto de equilíbrio num menu equilibrado e contemporaneamente regional.
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Manteiga de pimento assado |
Comida de saborear e de reflectir (quem quisesse...) sobre os modos de integração da memória num quotidiano forçosamente diferente tanto nas disponibilidades da técnica e das ferramentas quanto nas expectativas dos consumidores.
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SAUDAÇÕES
Trufas de butelo com redução de pimento assado e balsâmico (esq)
Trutas e ovas, pepino, maionese de fígado de bacalhau (folha em massa) (dir) |
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Quinta das Corriças, Branco, Tinta Amarela, 2015 |
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Caneloni de alheira com creme de tomate |
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Bacalhau com louro e alho, favas com linguiça da Paradinha Nova, chetnim de pimento assado, maionese de cebola roxa e ovo de codorniz curtido em vinho verde (Luís Portugal) |
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Trabalho de relojoaria transmontana, sob o olhar atento do fotógrafo Mário Cerdeira |
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Quinta das Coriças, Colheita Seleccionada, Tinto 2012 |
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Javali, Castanhas e Maçã (André Silva) |
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Quinta das Corriças, Grande Reserva, Tinto 2014 |
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O Azeite e a azeitona (André Silva) |
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Compotas de fruta da aldeia da Paradinha Nova e Queijo de cabra velho |
Uma palavra para os vinhos, produtos da conterrânea Quinta das Corriças cuja utilização merece ser realçada tanto pela qualidade apresentada quanto pela posição - que deveria ter sempre primazia - de harmonização de produtos ou preparações regionais com vinhos de proximidade. Alguma perplexidade em algumas opções mas, globalmente, casamentos positivos.
Talvez devêssemos - enquanto clientes, enquanto apaixonados pela gastronomia, enquanto portugueses defensores da nossa especificidade cultural - patrocinar residências artísticas aos cozinheiros nacionais em regiões diversas, acolhendo estas os pratos comunitários delas resultantes e ao Portugal profundo chegarem os olhares cosmopolitas revigorantes de uma interioridade que pensamos ao abandono. Inversamente, delas viriam novas pelos quais os nossos olhos cansados de novidades cansadas anseiam, fechando um ciclo de renovação, abrindo portas, abatendo silêncios.
Escrevi estas palavras no final - assim me tinham feito sentir os vários pratos, as sugestões, as ideias, os sabores, as surpresas. Comi com gosto e gostei desta comida de gosto.
TASCA DO ZÉ TUGA
R. da Igreja 68, 5300-025 Bragança (na cidadela, junto ao terreiro de acesso à Torre de Menagem / Museu Militar)
Tel.: 273 381 358
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