Cláudio Pontes: Carne matutada (I)

Já provaram carne maturada? Têm a certeza? O que é carne maturada?


"Aging" que entre nós se traduz, quase indiferentemente, por envelhecer ou maturar, é de forma comum definido como um processo de amaciamento (tenderization) da carne. Processo que decorre na fase post mortem que ocorre pela acção das enzimas presentes nos músculos do animal que se mantém activas, e cujos resultados dependem tanto de factores pré-abate (raça, alimentação), condições de abate (especialmente o stress a que o animal terá sido submetido nas horas ou momentos anteriores aos mesmo) e das acções pós-abate (e que terão tanto a ver com as condições do meio onde descansarão as peças, como os eventuais tratamentos no início do processo).

Não sendo a única razão para a utilização do processo, o amaciamento das peças sempre foi uma necessidade, de modo a se ultrapassar a rigidez que advém do estádio de rigor mortis por que passam todos os cadáveres de animais e que resulta da uma maior ligação entre as fibras componentes dos músculos (actina e miasina) e da reduzida acção das enzimas.

(Pausa para recordar as palavras do primeiro crítico gastronómico francês, Grimod de la Reyniere: "A etimologia da palavra faisandage anuncia que o faisão deve ser tão esperado quanto a pensão de um homem de letras que não soube lisonjear ninguém. Naturalmente um pouco coriáceo, é desta longa espera que resulta a sua tenrura e a suculência da sua carne; o que interdita o seu uso àqueles cujos humores se dão mal com a podridão. Suspendem-no pela cauda e comem-no quando dela se desprende. É assim que um faisão suspenso na Terça-feira Gorda, é susceptível de ser colocado num espeto no Domingo de Páscoa." (Almanach des Gourmands, 1803) Recordo que de um a outro feriado vão 47 dias...)

No caso da carne de vaca, existem duas escolas ou dois processos de maturação, ambos recorrendo a câmaras herméticas de temperatura e humidade controladas: o "dry aging" ou maturação a seco em que parte da carcaça ou o corte ainda com o osso é pendurada ou colocada descoberta em prateleiras que permitam a circulação do ar, e o "wet aging" ou maturação húmida, com as peças a maturar sendo seladas em vácuo. Dadas as características destas preparações - com as primeiras a serem seladas pela camada mais exterior que seca por evaporação e as segundas a evoluírem num meio que não só não perde água como, por rompimento das células, aumenta o teor da mesma em contacto com toda a peça - o tipo de enzimas e elementos químicos mais actuantes durante os processos de decomposição são diferentes, originando características sensoriais diferentes.

Maturação a seco (Azor Hotel)

Acresce que o processo, em qualquer das formas, conduz à degradação das proteínas (proteólise) por acção de diferentes enzimas, o que, em termos sensoriais, significa uma carne mais tenra - aliás a qualidade mais referida por gastrónomos e curiosos quando à maturação se referem.

Paremos por um momento.



Não me interesso especialmente, como consumidor, com os níveis de tenrura que possam ser alcançados pelos processos de maturação mais prolongados. Se quero comer uma peça de carne de vaca tenra, opto por um dos cortes tradicionalmente denominados de primeira - assim crismados porque cumpriam o que gerações de carnívoros pouco equipados com cozinheiros competentes mais esperavam de uma peça de vaca (relembro que, especialmente em Portugal, a carne de vaca proveio maioritariamente de animais velhos e geneticamente não apurados para consumo) -  ou por um modo de preparação (como uma cozedura lenta) que permita a desagregação das fibras e torne agradável a mastigação e aumente o prazer da prova (os cortes mais "rijos" são igualmente os mais saborosos). Por esse motivo, exigir ou promover um processo que é pouco rentável (as perdas de água / peso são elevadas) e energeticamente dispendioso, com o principal objectivo de obtenção de uma peça mais fácil de saborear (mais tenra) parece-me redutor e ligeiramente infantil.


Acontece que, como já referi, o processo de maturação não só altera as características das proteínas como cria - altera, acrescenta - novos níveis de flavour (sabores, gostos) esses, sim, irreprodutíveis por outros processos culinários de preparação e transformação.

E este é o campeonato que nos interessa quando falamos de maturação de peças bovinas.

A que sabem então as peças maturadas?



Genericamente, a impressão média mais divulgada das análises sensoriais defende que maturação a seco conduz ao aparecimento de flavours condizentes com os de um assado, a maturação húmida a flavours mais metálicos. Sendo, no entanto, o flavour original das peças tão pouco uniforme, dependendo não só da raça, idade, alimentação, como da actividade efectuada durante o tempo de vida, torna-se difícil encontrar um padrão, pelo que, com grande probabilidade, cada prova de uma peça maturada originará uma experiência diferente, o que só contribui para aumentar a vontade de o continuar a fazer.

Tendo só consumido carne maturada a seco, serei, para além de subjectivo, parcial. Para mim, tem um gosto adocicado, reminiscente de alguma caça, aquilo que os mais antigos atribuíam à mortificação, e um travo para o qual me falta o vocabulário - alguma acidez, um lado acre, um amargor que agita a língua com um final longo.

Cláudio Pontes, o Chef executivo do Azor Hotel, de Ponta Delgada, tem vindo a proceder a várias experiências de maturação a seco de cortes provenientes de carne dos Açores IGP, variando os tempos e o tipo e características da selagem.

Durante grande parte de 2017 - mais precisamente durante 300 dias -, maturou com toda a curiosidade e desvelo deste mundo, duas peças de alcatra, uma proveniente da ilha do Pico, outra de S. Miguel.



Tive oportunidade de provar o resultado, numa especialíssima prova realizada em casa do Mário Cerdeira, portador especial da oferta prometida e que, nos intervalos do intenso trabalho como fotógrafo gastronómico (um dos melhores da nossa praça), coloca o avental e duplica personalizadamente os gestos que, na já longa carreira, foi apreendendo dos Chefs seus clientes.


E que resultado.

Relembrem o queijo São Jorge mais curado que alguma vez provaram. Dupliquem as sensações gustativas que sentiram: o picante, a permanência do flavour adstringente, amargo, que provoca a língua em simultâneo com o prazer e acrescentem a textura de uma carne de lombo, untuosa a que se junta uma sugestão de avelã, uma outra ainda mais subtil de aroma a terra - estarão perto do que senti. Experiência absolutamente memorável, infelizmente de difícil repetição, dada a baixíssima rentabilidade  (a peça perdeu cerca de 90% do seu peso) e os custos inerentes à operação que enviariam - fosse este um trabalho comercial - o preço de cada prato para valores estratosféricos, mas que experiência, repito.



Não desanimem, no entanto, por serem rarefeitas carne com estes períodos extremos de maturação. Procurem a oferta existente, cada vez mais comum de encontrar, pelo menos em Lisboa, questionem a origem - foi importada, a operação ocorreu em instalações do restaurante ou de produtor nacional de confiança? - conversem com o Chef, oiçam a sua opinião e juntem-na às sensações que tiveram durante a refeição. Façam o vosso roteiro, sejam exigentes e descartem as "maturadas" que sabem exactamente ao mesmo de sempre, tirados os enfeites e disfarces. E desfrutem, desfrutem com amizades e amantes que se perdoa tudo quando tão bem sabe.

(Continua aqui, com a entrevista ao Chef Cláudio Pontes)

Comentários

No último ano..