Caneja de infundice: uma lambarice para amantes


Parem. Pensem.

Qual é o vosso atractivo na cozinha? Os gostos adquiridos, o conforto? O porto seguro da memória e dos objectos familiares? O apelo do momento, glorificado nas páginas de lifestyle da reduzida imprensa nacional? O doce sabor do conhecido ou do esperado, os flavours suportáveis sem arrepios nem desconforto?

Mudem de texto que este texto não vai por aí. Procurem as pipocas deste mundo, os mistérios pouco misteriosos, as marmitas confortáveis e entretenham-se com o esperado, sem ondas, desafios, contrariedades. Sejam felizes. Mesmo.

Dirijo-me então aos que ficaram.

Lá pela Ericeira "onde o mar é mais azul / nas belas praias do Sul / de dourada e fresca areia" (fresca??? ah, pois, assim eram as rimas do nacional-cançonetismo militante) esconde-se uma tradição jagoz com pelo menos quatro gerações de prática e que não deixa indiferente quem pela primeira vez a prova: a Caneja de infundice.

Convenhamos que contém todos os ingredientes para isso: o nome (o que é uma caneja? que infundice é esta que logo nos rima com imundice?); o mistério (porque que é que nunca com ela me encontrei?); a lenda (todos os iniciados falam dela com nostalgia na voz e um brilho cúmplice ou trocista, conforme o interlocutor nos olhos).

Traduza eu então, neófito de poucas semanas e absolutamente conquistado pela causa.

O que é uma caneja?

A frequência da nossa costa por várias espécies da família dos tubarões ocorreu desde sempre, tendo-os a nossa tradição, por desconhecimento ou simpatia, disfarçado com nomes tão diversos como, entre outros, tintureira, cação, litão ou leitão, bruxa, carraça, cascarra, pata roxa, galhudo ou gata-lixa.

A Portaria 587/2006 que lista as denominações autorizadas em Portugal na comercialização de produtos da pesca e aquicultura é clara nos termos autorizados respeitantes às diversas espécies e géneros daquela família. A  designação "tubarão" abrange a maioria das espécies, sendo excepção as comercializadas sob a designação "cação" (onde são incluídas todas as espécies do género Galeorhinus e Mustelus), "leitão" (todas as espécies do género Galeus, sendo admitidas as designações litão e alitão), e "pata-roxa" (todas as espécies do género Scyliorhinus).

"Caneja" não é uma designação genérica mas é autorizada como nome alternativo unicamente para a espécie Mustelus Mustelus (ou cação-liso). Acreditando na veracidade da lei, será pois esta a espécie utilizada na Ericeira para o pitéu (parecendo-me que o mesmo poderá ser feito com resultados semelhantes utilizando os diferentes "cações" comercializados no país, aceitando que, pelas características fisiológicas, a experiência possa ser tentada com qualquer peixe cartilaginoso).

Algumas das espécies comercializadas em Portugal.
Fonte: FAO "SPECIES PHOTOGRAPHIC PLATES. MEDITERRANEAN SHARKS"
O que é a infundice?

Diz-nos o dicionário que é uma "barrela feita de urina em que se demolhava a roupa muito suja, para depois se lavar mais facilmente", o que nos fará desde logo, sobrolhar (urina?). E não é descabida a alusão, face ao pronunciado aroma que envolve todo o petisco, da sua preparação ao pós-consumo. Adiante veremos.

A "infundice" ligada à caneja é a designação de um modo de preparação deste esqualo e que, sinteticamente, consiste no seu corte em postas e ligeiras salga e seca, sendo as mesmas enroladas em panos brancos e colocadas num local escuro ou enterradas por um período que oscila usualmente entre os dez e os vinte e um dias.



Como em toda a gastronomia popular, os relatos descritivos do processo são quase tão variados quanto o seu número - José Quitério, em crónica primeiro publicada no Expresso e depois recolhida no seu "livro de Bem Comer" apresenta duas, Frederico A. Freire no "Cozinha Saloia" relata uma terceira e por aí fora (espalhadas pela net existem mais umas quantas). Parece-me pacífico, no entanto caracterizá-lo gastronomicamente como um método que altera a textura e flavour (sabor mais odor) do peixe através da acção da ureia (que está presente nos peixes cartilagionosos em maior quantidade do que nos demais) - daí o cheiro característico que o nome do preparo bem traduz.



Porquê o mistério?

Haverá vários factores que condicionaram a divulgação /multiplicação desta prática, desde logo o sabor e cheiro particulares que a muitos afasta por inaceitável. Depois, a sua ligação à classe popular e a práticas de subsistência à memória das quais a restante população, bem pensante e bem sonante, não se agradaria associar. Por fim, a crescente industrialização da produção alimentar que vive de e aumenta a homogeneização e simplificação do gosto, relegando primeiro para fora do jogo e depois para o jogo "gourmet" os produtos heterodoxos.

O mistério, no entanto, começa logo na origem: de onde virão estes gestos, tão localizados e tão pouco comuns num país que fez da salga e da secagem ao Sol a norma da conservação de peixe?

No mundo das credibilidades, duas teorias se apresentam como as mais apoiadas: a do esquecimento de um exemplar (que, recordo, é subproduto da actividade piscatória, aparecendo nas redes e não sendo objecto de captura deliberada, logo com tradicional menor valor comercial) numa saca, a um canto da casa ou do armazém com a surpresa do resultado após alguns dias; a da cópia da prática islandesa de conservação do tubarão da Gronelândia.

Se a primeira me aparece como facilitista (ai, o acaso dá tanto jeito para explicar tanta coisa...!), a segunda, se bem que mais plausível, levanta um número de questões que requerem resposta fundada antes da aceitação definitiva da teoria.

O Hákarl, que é a denominação islandesa do produto da conservação do tubarão (enterrado para "faisandage" / maturação e depois seco ao ar) nasceu com os vikings, sendo provavelmente o cruzamento de duas necessidades: a da preservação duradoura de uma fonte de proteína num clima adverso ou em viagens marítimas de longa duração com a de eliminação da toxicidade do animal (o
Somniosus microcephalus, existente igualmente nas águas do norte da Noruega e Gronelândia). Parece-me que a prática terá chegado à ilha e nela permanecido pelo seu isolamento e menores alternativas na alimentação, mas é apenas minha conjectura. No entanto, e uma vez que o dito tubarão era historicamente pescado nos países referidos por causa do óleo do seu fígado, é natural que de alguma forma houvesse aproveitamento da carne sobrante por parte dos pescadores locais, prática partilhada, no caso da Gronelândia, com as equipagens das diversas frotas bacalhoeiras que a visitavam.

Sendo a tradição da caneja da infundice anterior a 1891 (segundo José Quitério que cita o livro de Baldaque da Silva) parece-me que esta influência só poderá vir através de contactos directos (e não indirectos - livros, relatos mediáticos, etc), muito provavelmente ocorridos durante as campanhas da pesca do bacalhau. No entanto, e curiosamente para o país que gastronomicamente mais apadrinha o seu consumo, nos mais de cinco séculos de história de pesca do mesmo que levamos, só em dois períodos foi a mesma assegurada maioritariamente por frotas nacionais: até ao final do século XVI e entre meados do século XIX e os anos sessenta do século XX, o que são duas janelas temporais uma demasiado longínqua, outra algo estreita.

Tal leva a pressupor uma de duas coisas: ou a influência do hákarl na Ericeira aconteceu a partir de contactos continuados durante um determinado período por um grupo de pescadores embarcados em uma ou várias campanhas ou foi a mesma fruto de um só homem partido e chegado de aventuras marítimas próprias: um Fernão Mendes Pinto aplicado à pesca / gastronomia locais.

De qualquer das maneiras, parece plausível que a confrontação da técnica islandesa com a existência de uma variedade de tubarão na Ericeira possa ter despoletado uma primeira experiência (crendo, erradamente, que, à semelhança do familiar gronelandês, também a caneja seria tóxica?) - nascendo assim a prática jagoz.

Como disse, mais as perguntas que as respostas. E o mistério que permanece: como apareceu a caneja de infudice?


Porquê a nostalgia?

Ia já a escrita longa quando descobri este texto bem explicativo de todo o processo, comprovando algumas das afirmações e hipóteses que tinha avançado (podia ter apagado tudo e colocado só o link mas, depois de todo o trabalho de pesquisa e reflexão, não tive coragem).

Nele se comprova o que senti há umas semanas quando pela primeira vez participei num almoço de caneja: o lado iniciático do que, pela raridade da frequência é um acontecimento de assinalar, a que se junta a extrema resposta dos nossos sentidos.

Ninguém fica indiferente ao excesso de amoníaco que, sem avisar, nos ocupa toda a cavidade nasal a partir do fundo da boca, expulsando o ar e quase despoletando o pânico de não conseguirmos voltar a respirar. Adrenalina pura que, ou rejeitamos para não mais voltar ou repetimos avidamente à procura de mais.

Previamente a este embate, a primeira sensação é odorífera - o mesmo cheiro de amoníaco (que os enjoados e os maldizentes classificam como de "urinol mal lavado", os solidários como de "urinol lavado com excesso de zelo" e os eruditos atribuem à excreção da ureia, presente no sangue dos peixes cartilaginosos como forma de manter a tonicidade de seu sangue próxima à da água do mar e assim evitar perdas de água por osmose) que logo se sente quando se desembrulham os pedaços, e que continua durante a cozedura, prolongando-se à mesa.


Valha o sabor do vinho, cuja percepção é alterada nuns sensores buconasais completamente assoberbados e o azeite que, ao mais ou menos se esbranquiçar, serve de medidor do tempo de maturação do peixe. Depois é apreciar a firmeza da carne que, apesar de não ser bacalhau "lasca que é uma maravilha" e brincar com os protestos da boca, comparar com sensações parecidas provocadas por um São Jorge bem curado ou um corte de vaca maturado a sério. Processos químicos semelhantes, indicadores familiares...


E pronto, fico por aqui que a prosa vai longa e não sei quantos tiveram paciência para seguir o texto até ao fim.

Termino com um obrigado muito reconhecido e cheio de vontade para mais repetições ao Paulo Amado que me convidou (e que bons complementos foram os queijos e os doces!) e ao Chef Júlio Pereira e família que anfitriaram e tão bem nos receberam - pais de peixe, peixões são!



A propósito: conhecem o folar de Olhão? Não? Perguntem ao Paulo que ele explica-vos o que estão a perder...


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No último ano..