23 estrelas Michelin em Lisboa


Um jantar comemorativo para 450 pessoas, elaborado por vários chefs cujos restaurantes somam 23 estrelas Michelin... em Lisboa? Sim, mas não se preparem para me enviar um e-mail a solicitar marcações: o jantar-ceia, seguido por baile, para comemorar o 125º aniversário do Grémio Literário já aconteceu a 30 de Setembro de... 1972.

(Fonte: Lx70  Joana Stichini Vilela, Pedro Fernandes, Nick Mrozowski, D. Quixote, 2014)
Face à riqueza actual da cidade e ao crescimento económico português pós-entrada na CEE (1), somos tentados a considerar como definitiva e global a ideia de, nas décadas precedentes, termos sido um país pobre, marginal, longínquo de quaisquer novidades, actividades, manifestações. Globalmente seríamos - até porque era essa ou ideologia oficial ou porque, de facto, nos faltava o necessário para deixarmos de o ser - mas, a espaços e em variados sectores, (infelizmente quase sempre só em Lisboa) soubemos estar a par do que melhor se fazia no mundo, sendo ponto de passagem para os grandes nomes, proporcionando a alguns ou mesmo a muitos vislumbres desse primeiro mundo que desesperávamos por igualar.

Não falando da obra da Fundação Gulbenkian que, durante décadas, foi patrono de quase toda a cultura que por aqui se fez ou viu, tivemos durante alguns anos o São Carlos como sala de concertos das grandes vozes operáticas mundiais (a Traviata de Maria Callas e Alfredo Kraus em 1958 constituiu um exemplo, difundido em disco), espelhados muitas vezes nas récitas populares, com os mesmos participantes, no Coliseu dos Recreios.

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A histórica gravação de La Traviata: coro e orquestra do
Teatro Nacional de São Carlos, ao vivo, no Teatro de Ópera que
substituiu a grandiosa e de curta vida edificação construída sob a égide
do rei D. José I
Na restauração, o panorama foi quase sempre soturno, já que a prática reservava à sala e às próprias casas o estrelato, não fazendo sentido tournés ou apresentações dos cozinheiros que, com mais ou menos fama, faziam como os Papas até Paulo VI: da sua Roma pouco se afastavam. Esse mundo começou a mudar por volta dos anos 70 do século passado e dele suspeitou um pouco Lisboa em 1972, com a realização do jantar comemorativo dos cento e vinte cinco anos do Grémio Literário. Decidido a várias mãos, teve a glória de até à capital trazer onze grandes Chefs franceses, responsáveis de restaurantes que, no conjunto, exibiam vinte e três estrelas Michelin.

Um acontecimento, pelo menos para os 450 comensais. Reservado a sócios do Grémio e acompanhantes, para além dos convidados, entre os quais se incluíam as Misses Europa, Áustria e Suécia (sem dúvida, um chamariz tão importante quanto os autores dos pratos!), comandados por Pierre Lenôtre, Paul Bocuse e colegas prepararam 32 pratos no que terá sido o primeiro grande happening gastronómico contemporâneo civil do país (deixemos de lado jantares de Estado e de casamentos reais como o do Infante D. Afonso, em Évora, no século XV).

Cozinha rigorosamente gaulesa, como mandavam a tradição culinária e a aculturação nacional da época ainda que, registe-se, uma muito curiosa abertura aos ventos da Nouvelle Cuisine dado o ultra-conservadorismo vigente nas instituições.

Paul Bocuse que já era a grande estrela que soube ser até à sua morte, ocorrida no ano passado, foi cabeça de cartaz e o mais destacado pela imprensa. No entanto, a alguns dos seus companheiros não ficaria mal a titularidade de cabeça de cartaz da nouvelle cuisine, talvez mais - à luz de cinquenta anos passados - do que a Bocuse.

Roger Vergé, com a sua cozinha do Sol, simultânea homenagem à cozinha de sua mãe e da mediterrânica Provença, sabendo manter-se fiel aos mandamentos definidos pelo par Gault e Millault ("Não cozinharás demasiado os alimentos / Utilizarás produtos frescos de qualidade / Tornarás ligeira a tua carta / Não serás sistematicamente modernista / Investigarás os contributos da nova tecnologia / Evitarás marinadas, faisandages, fermentações, etc / Eliminarás os molhos ricos / Não ignorarás a dietética / Não falsificarás as tuas apresentações / Serás inventivo") seria um possível candidato. A sua "cozinha feliz", antítese da cozinha feita para impressionar, usando técnicas de confecção naturais e saudáveis, combinando os produtos locais "como um arranjo de flores selvagens do jardim" ainda hoje permanece actual, contemporânea das presentes preocupações de sustentabilidade e sazonalidade. "Encontrar harmonias simples entre produtos naturais e acentuar o sabor de cada um através do contacto com um sabor complementar" - não vos parece uma opção escrita neste final da segunda década do século XXI?

Jean Troisgros, o mais velho dos dois "Frères Troisgros" (que faleceria precocemente em 1983), seria outro inegável candidato. Aluno do verdadeiro percursor da Nouvelle Cuisine - Fernand Point (trabalhou no início da sua carreira, durante dois anos, no aclamado "La Pyramide") -, soube criar, com o irmão, uma cozinha aparentemente simples, extremamente criativa onde se realçavam os sabores e as texturas do diversos elementos do prato.



11 “Príncipes da Grande Cuisine Française”, lhes chamou a imprensa e o tempo não lhes apagou a realeza.

Terá sido a única vez que as cozinhas do Grémio albergaram tantos estrelados - nunca os visitantes espanhóis do Guia terão apostado em recompensar o chef da casa pela eficácia da sua cozinha... - ainda que, à sua volta e nesse Chiado-centro-do-mundo ocorram quais cogumelos (também eles dependentes da chuva... de humor dos inspectores) outros centros de estrelato tanto no presente quanto no passado.

Recorde-se o pioneirismo do Aviz, o restaurante que mestre João Ribeiro abriu na rua Serpa Pinto após o encerramento do Aviz Hotel (1* entre 1974 e 1976), seguido pelo Tágide (1 * entre 1981 e 1992), também na rua Ivens, o brilhantismo do Tavares (e poderíamos discutir durante toda uma temporada qual a época em que o Tavares mais brilhantismo atingiu...) recompensado com 1* nas edições de 2010 a 2012 (com José Avillez e Aimé Barroyer) e, actualidade, o Alma e o Belcanto, bi-estrelados na actualidade.

Ainda que sem estrelas francesas, relembro, porque dele tive a fortuna de participar como comensal, um outro jantar, igualmente realizado no Grémio Literário e, nas palavras de José Bento dos Santos que o prefaciou ao vivo, "o mais importante jantar realizado neste dia em todo o mundo". Celebrando uma das grandes preparações de luxo francesas - o "Canard à la Presse", com direito a panteão no histórico "Tour d'Argent" - e desenhado e chefiado por quem provavelmente, nos dias de hoje, é o chef português melhor habilitado para o fazer - Nuno Diniz -, comemorou indirectamente esses tempos de pompa e circunstância gauleses, tão admirados e copiados entre nós.


Cerise et Foi gras

Bouillabaisse

Canard à la presse et Gratin Dauphinois

Tatin de poire, Sorbet d'Agrumes et Ananas

Canelés, Financiers et Chocolat

A prensa: a transformadora da carcaça na essência do prato,
peça rara no nosso país
Sempre se comeu bem, ali pelos lados da rua Ivens, ao Chiado. Que o digam o nosso Eça ou o nosso Marcelo que, entre muitos outros, por lá deixaram memória.


(1) - Agora, União Europeia

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