Lata de classes
Excesso de horas de trabalho mal pagas e obrigatórias? Comportamentos abusivos? Empresários sem formação específica? Bem vindos ao fantástico mundo de muitas cozinhas, onde a norma parece seguir ao contrário da razão, das boas práticas de trabalho consignadas na lei e das boas práticas sociais...
Não compreendo e nunca hei-de compreender a aceitação pelos lesados da exploração - a roçar a escravatura - a que são sujeitos na sua maioria os mais jovens profissionais de cozinha. Masoquismo ou desinformação?
Estágios feitos de graça (sob o falível argumento de que estão a aprender, quando a "aprendizagem" se ganha mais pela sua colocação no currículo do que o trabalho feito que se limitou, muitas vezes e com sorte, à preparação de parte da mise en place), excesso de horas de trabalho (sendo as que excedem o acordado contratualmente não pagas ou remuneradas muito abaixo do que diz a lei), bullying, incumprimentos vários das regras de salubridade, higiene ou segurança, eis alguns dos itens a que me refiro.
Que isto aconteça sob o olhar diáfano do glamour de que goza a profissão no presente ou sob o riso alarve com que anteriores explorados, actuais enganados ou promitentes empresários acolhem os poucos protestos ou os tímidos reparos de quem corre por fora, mais do que motivo de escândalo, deveria ser factor de reflexão para todos aqueles que, através do seu papel de consumidores, divulgadores ou comentadores ajudam (mesmo que involuntariamente) à perpetuação e consagração do sistema.
Num sistema que copia da organização militar a obediência sem questionamento e a autoridade da antiguidade é difícil contestar os mitos e falsas verdades que a posição a que ascenderam alguns pretendem impor. Apesar do desenvolvimento verificado nas diversas áreas de gestão de uma cozinha - dos recursos humanos ao aprovisionamento, da estrutura de custos à manutenção - da formação possível nos vários instrumentos de optimização (liderança, comunicação) e do alargamento da área de recrutamento a profissionais oriundos de outras áreas do saber, com mais extensiva bagagem cultural, científica e de vida, o discurso continua bolorento, fechado em frase e ideias feitas, sem actualização nem adaptação a este presente.
Como ser social não posso deixar de me sentir indignado com esta exploração com rosto - habitamos o século XXI europeu, num país subscritor da carta Universal dos Direitos do Homem, membro da Organização Internacional do Trabalho, país de direito com direito a ministro titular da pasta do Trabalho - e solidário com os meus compatriotas: um profissional de cozinha tem, como todos os seus concidadãos, direito ao descanso, ao tempo familiar, ao lazer. Afirmar o contrário defender o contrário - que só trabalhando um mínimo diário de 12 a 16 horas se pode atingir o topo da profissão, que só sofrendo abusos diários, verbais e físicos, se ganha a estaleca para vencer - é seguir um caminho fundado na desonestidade intelectual, na incapacidade de liderança ou na imbecilidade gestora. O gestor que assim trabalhe está destinado a todos enganar num futuro mais ou menos próximo. Uma chefia que entenda que a melhor persuasão é a da violência física ou psíquica, exigindo às suas equipas obediência sem questionamento nem oposição não passa de um capataz com toque sem capacidade nem formação de liderança, de um sociopata legalizado, transportado directamente do tempo das pirâmides para este presente envergonhado.
Como empresário de outra área, não posso deixar de me sentir admirado com os argumentos que sempre surgem da inevitabilidade economicista, de como a busca do sucesso, a implementação de uma cozinha de fine dining implica ou o prejuízo ou os cortes nos custos do trabalho. Ou seja, de como só podem ser os trabalhadores da cozinha a compensar o prejuízo.
Só quem não assistiu ao extraordinário desperdício que parece crescer directamente com a categoria do restaurante (o qual não se limita ao reduzido aproveitamento das matérias-primas, estendendo-se à quantidade de comida deitada para o lixo (fruto de mise en place mal planeada ou do exagero das porções servidas), aos consumíveis usados em excesso, à má concepção dos espaços) pode considerar não existir alternativa.
Como consumidor, custa-me a acreditar que de tão sofridas mãos ou penosas cabeças saiam preparações com humanidade. Como pode comida fundada em tanta iniquidade saber a comida de excepção?
Continuamos a assistir (e a consumir...) à abertura de empresas sem suporte, que baseiam parcialmente a sua actividade em trabalho gratuito, concorrendo deslealmente com aquelas - poucas mas resistentes - que procuram cumprir as regras, quer elas sejam laborais, fiscais ou éticas. Pirataria do trabalho, uma vergonha que deveria embaraçar todos os acreditam dever este país um esboço de uma sociedade justa, equilibrada e ética.
Sejamos então, senhoras e senhores, um pouco mais exigentes enquanto consumidores. Tomemos o compromisso de, com as nossas escolhas, com as nossas ausências, ajudarmos a separar o trigo do joio, ajudarmos a tornarem-se as cozinhas lugares de maior justiça, maior equidade, melhor equilíbrio de deveres e direitos. Corramos com a tralha. Abracemos os justos. Procuremos os legais.
Porque os há. Empresários cumpridores. Chefes que, para além da mestria técnica e talento gastronómico, também são lideres e formadores. Alguns dos quais meus amigos.
Um brinde às novas cozinhas portuguesas!
Não compreendo e nunca hei-de compreender a aceitação pelos lesados da exploração - a roçar a escravatura - a que são sujeitos na sua maioria os mais jovens profissionais de cozinha. Masoquismo ou desinformação?
Estágios feitos de graça (sob o falível argumento de que estão a aprender, quando a "aprendizagem" se ganha mais pela sua colocação no currículo do que o trabalho feito que se limitou, muitas vezes e com sorte, à preparação de parte da mise en place), excesso de horas de trabalho (sendo as que excedem o acordado contratualmente não pagas ou remuneradas muito abaixo do que diz a lei), bullying, incumprimentos vários das regras de salubridade, higiene ou segurança, eis alguns dos itens a que me refiro.
Que isto aconteça sob o olhar diáfano do glamour de que goza a profissão no presente ou sob o riso alarve com que anteriores explorados, actuais enganados ou promitentes empresários acolhem os poucos protestos ou os tímidos reparos de quem corre por fora, mais do que motivo de escândalo, deveria ser factor de reflexão para todos aqueles que, através do seu papel de consumidores, divulgadores ou comentadores ajudam (mesmo que involuntariamente) à perpetuação e consagração do sistema.
(Francis Bacon - Screaming) |
Como ser social não posso deixar de me sentir indignado com esta exploração com rosto - habitamos o século XXI europeu, num país subscritor da carta Universal dos Direitos do Homem, membro da Organização Internacional do Trabalho, país de direito com direito a ministro titular da pasta do Trabalho - e solidário com os meus compatriotas: um profissional de cozinha tem, como todos os seus concidadãos, direito ao descanso, ao tempo familiar, ao lazer. Afirmar o contrário defender o contrário - que só trabalhando um mínimo diário de 12 a 16 horas se pode atingir o topo da profissão, que só sofrendo abusos diários, verbais e físicos, se ganha a estaleca para vencer - é seguir um caminho fundado na desonestidade intelectual, na incapacidade de liderança ou na imbecilidade gestora. O gestor que assim trabalhe está destinado a todos enganar num futuro mais ou menos próximo. Uma chefia que entenda que a melhor persuasão é a da violência física ou psíquica, exigindo às suas equipas obediência sem questionamento nem oposição não passa de um capataz com toque sem capacidade nem formação de liderança, de um sociopata legalizado, transportado directamente do tempo das pirâmides para este presente envergonhado.
Como empresário de outra área, não posso deixar de me sentir admirado com os argumentos que sempre surgem da inevitabilidade economicista, de como a busca do sucesso, a implementação de uma cozinha de fine dining implica ou o prejuízo ou os cortes nos custos do trabalho. Ou seja, de como só podem ser os trabalhadores da cozinha a compensar o prejuízo.
Só quem não assistiu ao extraordinário desperdício que parece crescer directamente com a categoria do restaurante (o qual não se limita ao reduzido aproveitamento das matérias-primas, estendendo-se à quantidade de comida deitada para o lixo (fruto de mise en place mal planeada ou do exagero das porções servidas), aos consumíveis usados em excesso, à má concepção dos espaços) pode considerar não existir alternativa.
Como consumidor, custa-me a acreditar que de tão sofridas mãos ou penosas cabeças saiam preparações com humanidade. Como pode comida fundada em tanta iniquidade saber a comida de excepção?
Continuamos a assistir (e a consumir...) à abertura de empresas sem suporte, que baseiam parcialmente a sua actividade em trabalho gratuito, concorrendo deslealmente com aquelas - poucas mas resistentes - que procuram cumprir as regras, quer elas sejam laborais, fiscais ou éticas. Pirataria do trabalho, uma vergonha que deveria embaraçar todos os acreditam dever este país um esboço de uma sociedade justa, equilibrada e ética.
Sejamos então, senhoras e senhores, um pouco mais exigentes enquanto consumidores. Tomemos o compromisso de, com as nossas escolhas, com as nossas ausências, ajudarmos a separar o trigo do joio, ajudarmos a tornarem-se as cozinhas lugares de maior justiça, maior equidade, melhor equilíbrio de deveres e direitos. Corramos com a tralha. Abracemos os justos. Procuremos os legais.
Porque os há. Empresários cumpridores. Chefes que, para além da mestria técnica e talento gastronómico, também são lideres e formadores. Alguns dos quais meus amigos.
Um brinde às novas cozinhas portuguesas!
Comentários
A situação, no entanto, vai muito além da restauração e está estabelecida , a meu ver, em todas as profissões. Pensei até que estava a falar da indústria de confecção de roupa... ou dos designers que trabalham na indústria, para não me alargar demais.
Todo o Portugal trabalhador está escravizado no trabalho, o Código do Trabalho tem o mesmo aproveitamento que as listas telefónicas obsoletas tinham na minha juventude, em que o papel higiénico ainda era um luxo raro e lamento dizer que muitas Empresas se riem das muitas visitas da Autoridade do Trabalho, porque daí nada decorre que realmente seja entendido como incentivo à mudança e ao respeito pela Lei.
Quem precisa de salário ao fim do mês amoucha , porque sabe-se lá onde conseguiria arranjar outro emprego "nestes tempos de crise", os "empresários" aterrorizam os trabalhadores com o espectro do desemprego e depois fazem deles o que querem e sobra-lhes tempo, e nós todos estamos-nos nas tintas para "os outros" e continuamos a consumir como se não houvesse amanhã, completamente insensíveis às condições em que os produtos e experiências que queremos foram produzidos, porque o consumo funciona como o xanax - promove o ego e apazigua as dúvidas existenciais ...
Agradeço a sua chamada de atenção, que ela possa despertar algumas consciências para o poder que cada uma tem nas suas mãos - o de fechar a carteira, negando a fortuna aos malfeitores e ajudando a subir os standards éticos de todas as indústrias.