Não invocarás o nome da Senhora em vão
Já passou uma semana e o sentimento de incredulidade mantém-se: terá mesmo acontecido este momento de televisão gastronómica onde, apesar da boa vontade e competência dos especialistas convidados, a nulidade se aproximou do absoluto e a indigência se mostrou rainha?
Aprendi com os jornalistas dos anos 70 de A Bola que, na linguagem jornalística portuguesa (nos dicionários só apareceria muitos anos depois) coexistiam duas palavras homófonas com significados socialmente diferentes: História e estória (history e story, na língua inglesa). A primeira era profunda, ponderada, clássica e tratava da vida o que da vida sobrava após a depuração do Tempo; a segunda era contemporânea, muito menos elitista, apercebia-se do pó dos dias e a tudo atendia, das grandezas ao detalhe. Se uma era criteriosa na escolha, a outra era curiosa. Onde a primeira exigia validação, rigor e método, à segunda bastava a emoção e a avidez do ouvinte.
No título do programa de gastronomia que a RTP estreou a semana passada - "História da Gastronomia Portuguesa" - optaram os autores por incluir a primeira. Compreende-se: é mais pomposa, mais académica, confere à emissão um carácter nobre. Erro deles, má fortuna a nossa: o que se viu no primeiro episódio foi um acumular de "estórias", apresentadas sem contínuo temporal, de desigual relevância para o período, deixando a sensação de que, muito mais do que ensinar, ilustrar, demonstrar (não é esse o objecto de uma História?) o programa não passará de um veículo para a promoção dos cozinheiros escolhidos e para a facturação da produtora envolvida (já que, segundo alguns dos participantes, pelo menos os especialistas convidados participaram pro bono).
Dizem-me que, para o povo, o produto deve ser levezinho (para indigestão já bastaram as tripas), sem muita informação (para as cabeças não se cansarem a pensar), e com a presença de figura em alta (ou pertencendo a uma classe profissional em alta): uma espécie de programa da manhã, cheio de expressões de espanto, de encanto, de descoberta. Mesmo que o espanto seja artificial ou ignorante, o encanto difícil de explicar e a descoberta o seja apenas por quem nunca de perto com ela contactou ou se tenha mostrado pouco disponível para a encontrar no seu percurso de vida profissional.
Sejamos exigentes: se pegamos na História e a anunciamos como instrumento, então que a usemos bem. Com os seus critérios, com os seus parâmetros e com a sua disciplina.
Não é aceitável que se apresente como objectivo a explicação da gastronomia portuguesa a partir de um livro de referência e se passe, no caso do século XX, pelos registos que o distanciamento temporal considera terem sido os mais relevantes, como cão por vinha vindimada. Tanto o Tratado Completo de Cozinha e Copa de Bento da Maia como o Culinária Portuguesa de Olleboma tiveram, apesar das palavras dos convidados, tratamento de rodapé, quando foram os primeiros e maiores responsáveis pelas cartas de alforria que tanto a cozinha burguesa como a regional tiveram no princípio do século. Teria sido interessante e pedagógico vincar que foi Olleboma a primeiro tomar como tema o receituário português (na senda da propaganda nacionalista defendida pelo regime de então), precedendo em muitos anos as enormes e válidas recolhas de Maria Odete Cortes Valente e Maria de Lourdes Modesto.
Do mesmo modo merece algumas reticências a relevância dada a Mestre João Ribeiro (não "Chefe Mestre João", não "Mestre Chefe João", não "João Mestre Ribeiro" como o apresentador-cozinheiro sofredoramente nos foi apresentando o seu partido colega). Não está em causa a importância e fama do seu labor, muito menos a alta qualidade (para os critérios da época) do que produziu - mas com uma cozinha (veja-se o seu caderno de receitas, editado pela Assírio & Alvim) que se baseou exclusivamente em receituário alheio, a maior parte da chamada cozinha internacional, não teria sido melhor deixar para outros a relevância anunciada (que me parece assentar exclusivamente nos artigos encomiásticos de José Quitério), como por exemplo o seu Chef e mentor, Mestre Manuel Ferreira (autor do muito esquecido e ignorado "A Cozinha Ideal" e verdadeiro pai do muito interessante "Bacalhau à Conde da Guarda" erradamente atribuído a João Ribeiro)?
Porquê escolher para receita representativa do século, de um século em que se identificou e glorificou o receituário regional e popular português, uma receita francesa, onde, segundo os intervenientes, a única nota de originalidade foi a utilização de ... aguardente de bagaço?
Que relevância tem, para além da mera curiosidade gastronómica, o facto de o chefe da cozinha do melhor hotel da capital comprar os seus ovos à residência do primeiro-ministro (incidentalmente: não era Salazar que mercandeava o produto do seu galinheiro, antes D. Maria, a sua governanta)?
Também me parece muito pouco aceitável que os últimos cinquenta anos (!) do século tenham ficado por referir. Nada sobre as influências trazidas pela afluência de um milhão de portugueses habitantes nas ex-colónias em 1975. Nada sobre a influência das comunidades imigrantes e da generalização de casas de comer de origem asiática. Nada sobre a diferença na alimentação trazida pelo enriquecimento da sociedade, principalmente após adesão à CEE. Nada sobre as consequências domésticas / alimentares da generalização do trabalho feminino. Nada, se quisermos ser rigorosos, sobre a melhoria da qualidade alimentar, ajudando a demolir a ideia de que "no passado é que se comia bem".
Finalmente - e como sempre - o triste Lisboa-centrismo da emissão, esquecendo que a gastronomia portuguesa é muito mais do que a capital do país.
Como disse, este é muito mais um caso de "estórias" do que de História. Não precisavam de ter invocado o nome da Senhora.
Notas ainda a tempo:
1 - No segundo programa acentua-se um pendor cosmopolita que não sei se se origina num involuntário provincianismo dos autores ou na errada ideia de que assim se demonstrará a internacionalização da gastronomia portuguesa... Se a escolha das Tripas à moda de Caen como representativas do século XX já esticava a corda do possível, a inacreditável inclusão da pizza Margherita e das suas origens no episódio dedicado ao século XVI parece a versão televisiva do encher chouriços a que, nós portugueses, nos dedicamos com tanto afinco...
2 - Não podiam ter explicado ao apresentador-cozinheiro que não era preciso estar tão excitado com a descoberta do manuscrito que foi pertença da Infanta D. Maria de Portugal, uma vez que bastava ir à INCM e comprar um exemplar da reedição por eles efectuada há uns anos?
Comentários
Vi os dois e também fiquei com a ideia que eram limitados. Tentando ver o copo meio cheio, pensei que não dando para mostrar tudo, mais valia falar bem de menos coisas... Esperei para ver os 6 episódios antes de tirar conclusões ou sobretudo difundi-las.
Por razões familiares não me sinto especialmente à vontade para puxar o tema, e por razões de idade também não, mas pergunto: não faria sentido também referir a relevância da Revista Banquete, por exemplo?
Abraço,
Duartecalf
Delicioso!
Quando a malta das produtoras TV se proclamam denominadoras sobre qualquer tema e neste caso historias gastronómicas...
Parabéns pelo texto, Pedro Cruz Gomes! Olha que o Sobral esteve muito bem na jantarada!!!
Claro que sim, considerando a importância das revistas de culinária - da que a Banquete foi precursora - na formação do gosto, especialmente nas populações urbanas, na divulgação de métodos, técnicas e novas abordagens. No presente, a Banquete é especialmente importante para a percepção do Portugal gastronómico dos anos 60/70, devendo fazer parte da análise desse período, em conjunto com os livros referidos e os programas de Maria de Lourdes Modesto. Do mesmo modo que é importante o estudo dos primeiros anos da TeleCulinária.
Um episódio seria eventualmente pouco para tanta coisa, o que não obsta a que o mesmo devesse ter sido melhor programado - e mesmo melhor editado, já que parece ter ficado muita conversa e muitas observações relevantes na mesa de montagem.
O produto até poderia assumir-se como info-entretenimento desde que retirasse a História do nome...! Uma espécie de Chef Brother, ou assim...